terça-feira, 31 de agosto de 2010

Não se mate

Alone Gut
Carlos, sossegue, o amor
é isso que você está vendo:
hoje beija, amanhã não beija,
depois de amanhã é domingo
e segunda-feira ninguém sabe
o que será.

Inútil você resistir
ou mesmo suicidar-se.
Não se mate, oh não se mate,
Reserve-se todo para
as bodas que ninguém sabe
quando virão,
se é que virão.

O amor, Carlos, você telúrico,
a noite passou em você,
e os recalques se sublimando,
lá dentro um barulho inefável,
rezas,
vitrolas,
santos que se persignam,
anúncios do melhor sabão,
barulho que ninguém sabe
de quê, praquê.

Entretanto você caminha
melancólico e vertical.
Você é a palmeira, você é o grito
que ninguém ouviu no teatro
e as luzes todas se apagam.
O amor no escuro, não, no claro,
é sempre triste, meu filho, Carlos,
mas não diga nada a ninguém,
ninguém sabe nem saberá.

Carlos Drummond de Andrade, in: 23 Livros de Poesia - Vol. I. Ed. Nova Reunião

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

O Intratável

Nonnetta
Afirmação: Ao contrário de tudo e contra tudo, o sujeito afirma o amor como valor.

1. Apesar das dificuldades da minha história, apesar das perturbações, das dúvidas, dos desesperos, apesar da vontade de me livrar disso, não paro de afirmar em mim mesmo o amor como valor.
Todos os argumentos que os sistemas mais diversos empregam para desmistificar, limitar, apagar, enfim, depreciar o amor, eu os escuto, mas me obstino: "Sei bem, mas contudo...". Transfiro as desvalorizações do amor para uma espécie de moral obscurantista, para um realismo-farsa, contra os quais ergo o real do valor: oponho a tudo "o que não vai bem" no amor, a afirmação do que vale nele. Essa teimosia, é o protesto do amor: debaixo do concerto de "boas razões" para amar de outro modo, amar melhor, amar sem estar apaixonado, etc., uma voz teimosa se faz ouvir que dura um pouco mais de tempo: voz do Intratável apaixonado.

Roland Barthes, in: Fragmentos de Um Discurso Amoroso. Ed. Francisco Alves

domingo, 29 de agosto de 2010

Amanda Cass
Ai de mim, se for amor, como atormenta.

Gabriel García Márquez, in: Memória de Minhas Putas Tristes. Ed. Record

Poema que aconteceu

Nenhum desejo neste domingo
nenhum problema nesta vida
o mundo parou de repente
os homens ficaram calados
domingo sem fim nem começo.

A mão que escreve este poema
não sabe o que está escrevendo
mas é possível que se soubesse
nem ligasse.

Carlos Drummond de Andrade, in: Alguma Poesia. Ed. Record

[...] Passei uma semana inteira sem tirar o macacão de mecânico nem de dia nem de noite, sem tomar banho, sem fazer a barba, sem escovar os dentes, porque o amor me mostrou tarde demais que a gente se arruma para alguém, se veste e se perfuma para alguém, e eu nunca tinha tido para quem. [...]

Gabriel García Márquez, in: Memória de Minhas Putas Tristes. Ed. Record

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

parada cardíaca

Lilya Corneli
essa minha secura
essa falta de sentimento
não tem ninguém que segure
vem de dentro

vem da zona escura
donde vem o que sinto
sinto muito
sentir é muito lento.

Paulo Leminski, in: Distraídos Venceremos. Ed. Brasiliense

partida

Katarina Sokolova

o espelho partido
multiplicou
o adeus.

Sônia Godoy

terça-feira, 24 de agosto de 2010

A Adriana Calcanhotto

Berlim 1.7.93

Adriana C.
Minha sempre deusa, continuo andando pelo mundo, chorando ao telefone, prestando muita atenção, divertindo gente, a fome dos meninos da Iugoslávia nas ruas ricas da West-Berlim dói tanto ou mais quanto os nigrinhos do Rio, há dez meses acordo e não tenho ninguém do lado - os meus amigos, cadê? — vou/irei à Tchecoslováquia, talvez Hungria, Jakarta, mas perdi alguma coisa no Brasil, "à tarde Maria dorme", tenho medo, matam turcos e a estrada é enorme, mas tua voz e tua música me aconchegam entre Paris/Amsterdam/Berlim/Praga/London/ tudo é muito igual e belos os alemãezinhos ao sol do verão fugaz deles. Te mando retalhos e amor.

Caio F.

Caio Fernando Abreu, in: O Essencial da Década de 90. Ed. Agir

Mar:

1. grande extensão de água salgada que cobre a maior parte do coração; 2. estrada ondulada pintada de verde ou azul; 3. galáxia que eventualmente goteja através dos olhos; 4. medicamento homeopático utilizado para cura de males não corpóreos; 5. um dos membros de uma família de sete; 6. país onde nascem as pérolas; 7. beirada do mundo; 8. constelação de peixes; 9. ser assexuado que vive a lamber corpos e que, quando muito irritado, costuma engoli-los vivos; 10. tábua onde o vento brinca de fazer renda; 11. cômodo que mais valoriza um apartamento novo; 12. conteúdo das conchas; 13. o outro nome do silêncio; 14. grande corporação internacional que fabrica náufragos; 15. espelho utilizado pelo céu em dia de festa; 16. independente da cor, a cor dos olhos de quem é objeto de amor; 17. terra natal de Jacques Costeau; 18. amigo traiçoeiro que separa e une enquanto sorri; 19. adeus que vai e vem; 20. lugar para onde corre o rio formado pelas dores do mundo; 21. o namorado da lua; 22. monarquia absolutista comandada por Netuno; 23. causa da existência da bacalhoada; (Ex.: "O mar é salgado, amor meu, porque houve um dia, muito longe, em que eu ainda não tinha encontrado você. E a vida, ah que vida? Escorria, seca, pelo meu rosto.")

André Gonçalves, in: Coisas de Amor Largadas na Noite. Ed. Ideias Inc.

domingo, 22 de agosto de 2010

da desordem dos recomeços

Magritte
Em nenhuma das costuras que nos remendam ficaremos inteiros: eu, você, você, eu. Hão de se esgarçarem aos impactos, hão de se arrebentarem nas rochas.
Em nenhum dos retoques ficaremos refeitos. Duas cicatrizes de feridas que sempre doerão e continuarão se abrindo pelo ardor de memórias.

Em todos os consertos nos sobrarão rachaduras. Seremos sempre esse desencaixe. Mãos que não se entrelaçam, suores que não colam, pés que não se enroscam. A cara metade deformada pelo tempo e pela tênue linha entre o amor e ódio, filhos da mesma chama: brasas de uma única fogueira, que fagulham juntas mas morrem por ventos de distintas direções. Um contorno mal feito, uma descombinação, um descompasso, uma desproporção.
Uma história sem pé nem cabeça.

Samantha Abreu
Coração de gente — o escuro, escuros.

João Guimarães Rosa, in: Grande Sertão: veredas. Ed. Nova Fronteira

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Espera

Nonnetta
Tumulto de angústia suscitado pela espera do ser amado, no decorrer de mínimos atrasos (encontros, telefonemas, cartas, voltas).

(Schonberg)

1. Espero uma chegada, uma volta, um sinal prometido. Pode ser fútil ou imensamente patético: em Erwartung (Espera), uma mulher espera seu amante, de noite, na floresta; quanto a mim, só espero um telefonema, mas é a mesma angústia. Tudo é solene: não tenho noção das proporções.

Roland Barthes, in: Fragmentos de Um Discurso Amoroso. Ed. Francisco Alves

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Para Ana

Tem uma folha branca
Que não espera por mim
Que não convida pra nada

Tem uma cama limpa
Que não me espera
Nem me chama

Tem uma vida branca
Que tão limpa não é minha

Minha folha
Minha cama
Minha vida
Todas estão sujas
Com o sujo de minhas mãos
Que nada sabem de espera.

Lia Beltrão

domingo, 15 de agosto de 2010

Quando o amor vem à tona

Nonnetta
Talvez o que mais nos assuste quando o amor vem à tona seja essa habilidade que ele tem para revelar os nossos medos todos. As nossas belezas. As nossas feiuras. As nossas sementes que puderam florescer com viço. As nossas sementes que não conseguiram dizer suas flores. As nossas sementes que temem florir. Talvez o que mais nos assuste quando o amor vem à tona seja essa habilidade que ele tem para revelar as nossas borboletas que souberam se desvencilhar dos casulos. As nossas crisálidas apavoradas por se saber com asas, embora sonhem, encantadas, com o néctar da vida. As nossas feras vorazes e ressentidas. Talvez o que mais nos assuste quando o amor vem à tona seja essa habilidade que ele tem para revelar os nossos avanços. A nossa estagnação. Os nossos fracassos. As nossas vergonhas. As nossas vaidades. A nossa arrogância, que muitas vezes não é outra coisa senão um disfarce que o embaraço usa para esconder o conflito por sentirmos tanto afeto sem saber direito como expressá-lo. Como fazê-lo circular.

Talvez o que mais nos assuste quando o amor vem à tona seja essa habilidade que ele tem para revelar a existência de feridas que pensávamos estar cicatrizadas, mas que ele delata sem cerimônia, sem medir palavras, olhando bem dentro dos nossos olhos, que ainda não estão, não. Que algumas bolas de ferro muito antigas continuam presentes, embora, teimosos, tentemos avançar mesmo com elas, arrastando todo o peso do mundo, em vez de escolher a pausa necessária para soltá-las dos nossos pés. Talvez o que mais nos assuste quando o amor vem à tona seja essa habilidade que ele tem para revelar que quanto mais a luz canta, mais a sombra se mostra. Que embora a gente insista em fugir da sombra correndo para debaixo do sol, ela nos acompanha, incansável, até aceitarmos integrá-la. Que precisamos olhá-la com carinho e deixar que caminhe com a gente sem tentar fugir dela.

O amor nos desnuda a alma, nós que muitas vezes, ao longo da vida, nos enchemos de peças de roupa de tudo o que é tipo, físicas ou sutis, óbvias ou disfarçadas, para tentar escondê-la. Saber a própria alma nua e não ter jeito de tapar-lhe as partes íntimas, de inibir sua exibição, de pedir-lhe modos, é um desconforto dos grandes para quem se acostumou a viver pequeno por parecer mais cômodo, sem arredar os movimentos do território áspero do ilusório controle. É um desconforto dos grandes para quem se acostumou a tratar a emoção com recato, sob o custo de amordaçar a alegria fluida do tambor do prazer. Essa que ressoa, sempre, mesmo que aparentemente silenciosa, no nosso coração. O amor chega e abre as janelas, escancara as portas todas, rasga o tecido frágil das redomas que criamos para nos proteger, a gente se assusta. Olhando de perto ou de longe, não é sem razão.

É no encontro em que eu olho verdadeiramente o outro, em que consigo amá-lo com todas as belezas e esquisitices que ele tem, em que consigo admirá-lo do jeito que ele é, em que consigo ouvir com a alma que também venho dos lugares de onde ele vem, que eu me vejo com mais nitidez. Desfeitas algumas ilusões, a impressão que dá é que conhecemos o outro é de nós mesmos. Que perspicácia da vida, meu Deus, isso de fazer as pessoas se encontrarem por meio do amor, que, quando vem à tona, latente que pulsa a maior parte do tempo, remexe em tudo, esvazia falsas verdades, inaugura saberes e sabores, bagunça o coreto todinho, faz a gente olhar para a própria nudez. E começar a gostar dela. A respeitá-la.

A princípio, quando o amor vem à tona, a gente acha que precisa se entender com o outro, sobretudo. Não é verdade, o chamado principal é de outra natureza. Com o outro, se a fluência permitir dos dois lados, pode acontecer um encontro lindo, real e imperfeito, como todos, e é claro que a gente torce por isso. Pode não acontecer também, às vezes o tempo de duas pessoas, por mais que se gostem, não coincide para o desafio bom da vivência mútua do afeto. Mas, o amor pelo outro é, principalmente, esse espelhamento: no fundo, quando vem à tona, o chamado é para nos entendermos com nós mesmos. Com a nossa história. Com as nossas sementes. As nossas flores. As nossas borboletas. As nossas feras. As nossas feridas. As nossas luzes. As nossas sombras. A nossa alma.

Os espelhos materiais de casa não contarão nunca o que o espelho do outro nos mostra. O amor, sendo divino pelo seu caráter criativo e transformador, é também o que de mais humano existe. No amor, com todas as minhas singularidades, eu me irmano com toda gente. E reconheço que, embora não saibamos muito bem o que fazer com a essência desse lume, com tudo o que dispõe e possibilita, ele clareia os caminhos e nos faz avançar, nos ajuda a ser mais parecidos com nós mesmos. Mais inteiros. Mais espontâneos. Mais livres. Mais generosos. Embora não saibamos muito bem o que fazer com o amor, ele sabe o que faz com a gente. Ninguém, arrisco, permanece igual depois da diferença de um encontro de amor. Alguns se acovardam tanto, que às vezes parece que é pra sempre. Outros, passam a ter mais coragem, ainda que com todo o medo. Mas, pra gente viver não é preciso mesmo não ter medo. É preciso, apesar dos medos todos, ter valentia para ser e sentir, essa capacidade que o amor, habilidoso, consegue burilar com toda a calma do mundo em nós.

Ana Jácomo

sábado, 14 de agosto de 2010

Classificado

Amanda Cass

Vendo urgente dor semi-nova, com pouco uso, leve arranhão na borda superior esquerda causado por um sorriso irresponsavelmente atirado pela janela. Aceito troca por alegria mesmo que com defeito ou melancolia regada a coca-cola. Não aceito esperança porque, mesmo sendo a última, acaba morrendo. Tratar com o proprietário.

André Gonçalves, in: Coisas de Amor Largadas na Noite. Ed. Ideias Inc.

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

O homem dos sonhos

Lilya Corneli

Pra encontrar o homem dos seus sonhos
Ela se enfeita, se maquia, se penteia
E vai dormir.

Raiça Bomfim

III

Lilya Corneli
A minha Casa é guardiã do meu corpo
E protetora de todas minhas ardências.
E transmuta em palavra
Paixão e veemência

E minha boca se faz fonte de prata
Ainda que eu grite à Casa que só existo
Para sorver a água da tua boca.

A minha Casa, Dionísio, te lamenta
E manda que eu te pergunte assim de frente:
À uma mulher que canta ensolarada
E que é sonora, múltipla, argonauta

Por que recusas amor e permanência?

Hilda Hilst, in: Júbilo, Memória, Noviciado da Paixão. Ed. Globo

II

Lilya Corneli
Porque tu sabes que é de poesia
Minha vida secreta. Tu sabes, Dionísio,
Que a teu lado te amando,
Antes de ser mulher sou inteira poeta.
E que o teu corpo existe porque o meu
Sempre existiu cantando. Meu corpo, Dionísio,
É que move o grande corpo teu

Ainda que tu me vejas extrema e suplicante
Quando amanhece e me dizes adeus.

Hilda Hilst, in: Júbilo, Memória, Noviciado da Paixão. Ed. Globo

Seriam garças?

Lara Fairie
seriam garças?
a despirem lentamente
suas vestes
suas demoras
suas mágoas?

seriam garças?
a rodearem esperas
vertigens e voos
a enrodilharem miragens
nesse manso tempo?

seriam garças?
estampadas levemente
em vontades nuas
escondidas
nessas tuas aragens
de mudo lamento

seriam garças?
essas brancas esgarçaduras
do vento
ou apenas sou eu
entremeada
que respiro nelas?

Paula Cajaty

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Aviso

Se me quiseres amar,
terá de ser agora: depois
estarei cansada.
Minha vida foi feita de parceria com a morte:
pertenço um pouco a cada uma,
pra mim sobrou quase nada.

Ponho a máscara do dia,
um rosto cômodo e simples,
e assim garanto a minha sobrevida.

Se me quiseres amar,
terá de ser hoje:
amanhã estarei mudada.

Lya Luft, in: Para Não Dizer Adeus. Ed. Record

quarta-feira, 11 de agosto de 2010


É no silêncio que eu vivo, aprenderei outra linguagem? Não há palavras ainda para inventar um mundo novo. Como estou cansado. Paro de cavar, olho a montanha. Os dois picos erguem-se ao longe, hieráticos, com a solenidade de um universo vazio. Foi a voz que aprendi, essa da grandeza e do silêncio, de um mundo primitivo.

Vergílio Ferreira, in: Alegria Breve. Ed. Verbo

terça-feira, 10 de agosto de 2010

Modo de amar

Katia Chausheva
não fales das tempestades
que colhes por debaixo dos
meus frágeis vestidos escuros
(não contes como sou feita de escuros)
nem da fúria com que os arrancas de mim

não fales do meu anel
de como envolve teu dedo
(não contes que dedo)
nem o que eu faço com ele
pra te ouvir chorar.

Silvana Guimarães

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Pés

Artur K.
Por muito tempo, meus pés serviram para caminhar. Levar-me pra lá e pra cá, pisar na lama, torrar nas pedras quentes do meio-dia. Sempre tive muitas cócegas nos pés. Você descobriu por acaso e passou a me torturar com os dedos leves. Depois vieram os beijos e depois a língua. Aos poucos, meus pés não queriam mais caminhar. Desejavam a boca que os tinham desviado dos antigos caminhos. Hoje, meu corpo começa pelos pés.

Lia Beltrão

Acabou

Katia Chausheva
Guardo a mágoa do fim.

Tudo não acabou como uma sinfonia, num crescendo,
ou um temporal, entre clarões
- (como um gemido dilacerante,
ou um lancinante adeus...).

Na verdade,
não saberíamos mesmo explicar como acabou.

Acabou.

J. G. de Araújo Jorge

Edifício

Alone Gut
Recolhe os cacos
dessa paixão cheia de cor
E antes que desbote
Faz um alicerce forte
Ergue uma parede que suporte
Todo o peso da sua dor.

André Gonçalves, in: Coisas de Amor Largadas na Noite. Ed. Ideias Inc.

Eu saberia

Seu nome, seu rosto, sua presença
Seus olhos, seus sinais, seu cheiro

Seus poros, seu suor, sua pele
Seus beijos, sua boca, sua voz

Seus passos, seu andar, seu rastro
Seus dedos, sua mão, seu aceno

Sua falta, sua demora, sua ausência
Sua sombra, seu retrato, seu epitáfio

Quem era mesmo, você?

Nydia Bonetti

domingo, 8 de agosto de 2010

À noite

Katia Chausheva
É a noite,
quando me sinto mais só,
que meus pensamentos ganham forças ignoradas,
para imprimir-te em meus olhos,
e te imporem aos meus sentidos...

Em vão estendo os braços para buscar-te...
Me debato nesta ânsia crescente e fugaz,
como um nadador exausto, a agarrar-se
às miragens finais...

J. G. de Araújo Jorge

sábado, 7 de agosto de 2010

palavras desnecessárias

Caroline Feitosa
nosso encontro durou
o tempo de uma despedida

se eu pudesse voltar àquele ponto
eu te puxava para um canto
beijava eu te beijava tanto
e pronto.

Líria Porto

os sete pecados capitais


Preguiça

Já há muito o sol clareava a manhã quando ela abriu os olhos, espreguiçou por quinze minutos, rolou na cama e decidiu que aquele dia seria o dia de fazer nada. Que a poeira dormisse sobre todos os móveis e que a louça da antevéspera esperasse na pia pelo dia seguinte.







Luxúria

Deitada sobre o desencontro sentia ainda o cheiro do vinho azedo nos lençóis, os farelos que lhe beliscavam a carne e as marcas de todos os humores que deixavam em sua boca o gosto travado da última noite. Os beijos que tatuaram em seu corpo ásperas cicatrizes e as marcas das mordidas que ficariam para sempre em sua alma.




Ira

Um calor vermelho lhe subia das entranhas e a vontade era arreganhar as janelas e fazer o mundo todo ouvir aquele sentimento que ontem fora o eco de todos os uivos e hoje, pela manhã, despertava apenas a possibilidade do silêncio. Que ele se perdesse em outros abraços, que morresse em outros orgasmos. Que se fodesse pelas esquinas de outros desencontros.



Inveja

Foi a luz do sol que mostrou a ele suas carnes flácidas, a raiz branca de seus cabelos, os rictos que a maquiagem desfeita revelava. E ele vira claro o que a noite tornara opaco. Quisera ser a mulher da capa da revista com as carnes duras e o coração protegido por músculos comprados em academias e consultórios.






Orgulho

E ele saberia o que perdera quando se perdesse em outros abraços. Diria não, se ele voltasse e lhe pedisse um sim. Jamais o telefone, a campanhia da porta, o encontro de fim de noite.






Avareza

Trancafiar os sentimentos no fundo da alma. Economizar sorrisos. Capitalizar afagos. Atar no meio das pernas qualquer possibilidade de dádiva. Fechar as mãos a todas as posses que não a de si mesma. Dona de seus quereres os guardaria no cofre da alma atemporal e a ninguém seria permitida a chave. Ou o segredo.





Gula


Enlouquecida e nua devorou a dor.


Ro Druhens

alívio . . .

Alone Gut

Lembro apenas que chovia. E que, quando abri os olhos, você escorria de mim e aumentava a poça sob meus pés. E que estava frio. E que alguém ouvia Lizt. E que, engraçado, eu chorava de fora para dentro. Isso foi ontem. Ontem foi há muito tempo. Hoje já é amanhã. Não chove mais. Nem fora nem dentro. E o silêncio faz um barulhinho bom danado dentro de mim.

André Gonçalves, in: Coisas de Amor Largadas na Noite. Ed. Ideias Inc.

Dúvida

Katia Chausheva
Amor
a tua voz
e a minha sensação de vácuo

de liberdades paralelas
ontem
esquinas encontradas
no ângulo dos lábios

Amor
a tua lâmpada de nevoeiro
sulcado
manhãs de aves
súbitas
com noites inventadas

nada
é o teu rosto
insetos de vertigem
sem paisagem.

Maria Teresa Horta

Vagos

sentei minha ausência
ao lado da tua ausência

ficamos assim

nós dois sem ninguém
num banco de jardim.

Líria Porto

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Não quero jardim
Quero um jardineiro
Que traga flores pra mim.

Lia Beltrão

amputado

Por que ainda dói
esse amor
que já não sinto?

Sônia Godoy

Quase como se pudesse voar

Lara Fairie
pudesse, desaprenderia
as coisas mais caras
as coisas várias
inúmeras essenciais
que empalidecem o verbo.

pudesse, deslembrava
gestos e sorrisos
misturava as histórias
apagava essa geografia
guardada em dedos
aflitos desbravando a pele.

pudesse, mais um pouco,
desamarrava mágoas
deslaçava suavidades
quase como se fosse voar.

pudesse tanto
e tantas vezes,
começaria eternamente
desse zero redondo
esquecia o mundo
e partia, suavemente,
a reaprender violáceas
a redescobrir assombros.

Paula Cajaty

I

Marta Laura
É bom que seja assim, Dionisio, que não venhas.
Voz e vento apenas
Das coisas do lá fora

E sozinha supor
Que se estivesses dentro

Essa voz importante e esse vento
Das ramagens de fora

Eu jamais ouviria. Atento
Meu ouvido escutaria
O sumo do teu canto. Que não venhas, Dionísio.
Porque é melhor sonhar tua rudeza
E sorver reconquista a cada noite
Pensando: amanhã sim, virá.
E o tempo de amanhã será riqueza:
A cada noite, eu Ariana, preparando
Aroma e corpo. E o verso a cada noite
Se fazendo de tua sábia ausência.

Hilda Hilst, in: Júbilo, Memória, Noviciado da Paixão. Ed. Globo

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Epigrama Nº5

Gosto da gota d'água que se equilibra
na folha rasa, tremendo ao vento.

Todo o universo, no oceano do ar, secreto vibra:
e ela resiste, no isolamento.

Seu cristal simples reprime a forma, no instante incerto:
pronto a cair, pronto a ficar - límpido e exato.

E a folha é um pequeno deserto
para a imensidade do ato.

Cecília Meireles, in: Viagem / Antologia Poética. Ed. Nova Fronteira
[...] Os dias. Fiquei triste por causa desta luz diurna de aço em que vivo. Respiro o odor de aço no mundo dos objetos.

Mas agora tenho vontade de dizer coisas que me confortam e que são um pouco livres. Por exemplo: quinta-feira é um dia transparente como asa de inseto na luz. Assim como segunda-feira é um dia compacto. No fundo, bem atrás do pensamento, eu vivo dessas ideias, se é que são ideias. São sensações que se transformam em ideias porque tenho que usar palavras. Usá-las mesmo mentalmente apenas. O pensamento primário pensa com palavras. O "liberdade" liberta-se da escravidão da palavra. [...]

Clarice Lispector, in: Água Viva. Ed. Círculo do Livro

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Renovação

Posso olhar para uma fonte de beleza incontáveis vezes sem me acostumar com o seu encanto. Posso renovar, a cada novo olhar, a minha admiração. A beleza nunca está concluída para o sentimento. Há detalhes imperdíveis que só se revelam com o tempo dos olhos.

Ela sempre será diferente. O meu olhar nunca será igual.

Ana Jácomo

Bum!

Nonnetta
Era um amor que começou pequenininho.
Depois foi crescendo, crescendo, crescendo...
Acabou que ficou um amor tão grande, tão grande, mas tão
grande que explodiu. E eles ficaram ali, olhando um para o
outro, com os restos do amor no chão. E cada um foi para
um lado, soprando os pedacinhos que sobraram para ver se
nascia, pelo menos, um amorzinho novo.

André Gonçalves, in: Coisas de Amor Largadas na Noite. Ed. Ideias Inc.

Pé:

Vânia Medeiros
1. pneu de gente; 2. indivíduo que, quando está de pé, está deitado, e quando está deitado, está de pé; 3. veículo locomotor movido a sonhos; 4. órgão externo do aparelho dançomotor ; 5. fábrica de chulé; 6. Alphaville do bicho de pé; 7. se torto, candidato a lateral esquerdo da Seleção Brasileira de futebol; 8. se “na bunda”, sinônimo de adeus; 9. se “de valsa”, antônimo de timidez; 10. se “de moleque”, festa no céu da boca; 11. se “de pano”, tema de música de Frankito Lopes; 12. triturador de uvas; 13. motivo da existência das botinhas ortopédicas; 14. o viagra do podólatra; 15. se “de galinha”, sinônimo de pânico; 16. se “de mesa”, sonho masculino; 17. se “direito”, medida da altura da tranquilidade; 18. se “de serra”, festa a noite inteira; 19. indivíduo que, se sem par, vive pulando; 20. se gelado, lazarento; 21. termômetro para piscinas; 22. motivo de pavor nos formigueiros; 23. melhor amigo da massagem; 24. se "de meia", futuro em maços; 25. parte do ser amado mais procurada em noites frias. (Ex.: “Coloca aqui teus pés juntinho aos meus, amor, que dentro de mim está ventando e sinto muito, muito frio".)

André Gonçalves, in: Coisas de Amor Largadas na Noite. Ed. Ideias Inc.

terça-feira, 3 de agosto de 2010

Felicidade:

DeviantART
1. invólucro onde se guardam sorrisos; 2. momento em que os ponteiros do relógio decidem dançar valsa; 3. líquido viscoso que escorrega por entre os dedos; 4. pedaço de gente com cheiro de talco; 5. movimento espontâneo dos cantos da boca em direção às orelhas; 6. sobrenome do azul; 7. olodum dentro do peito; 8. conjunto de círculos concêntricos em rubro e branco para onde se atiram dardos em forma de coração; 9. roçar de pés por sob o cobertor em noites com temperatura inferior a 18 graus; 10. tia-avó da alegria; 11. erva da qual se faz um chá afrodisíaco; 12. movimento elíptico do Sol em torno do ser amado; 13. nome dado à gota salgada que despenca dos olhos em dia de festa; 14. sensação de se ter feito o que se deveria ter feito; 15. oitava cor do arco-íris; 16. retângulo onde se inserem flagrantes registrados em nitrato de prata; 17. desejo súbito de voar; 18. distúrbio psicológico que causa avalanche de gargalhadas; 19. silêncio que se segue à trovoada; 20. exibição permanente da arcada dentária sem motivos justificados aos olhos dos desprovidos de inocência. (Ex.: “Vem, amor, me dá um beijo e me arranha as costas, que hoje eu quero sentir o gosto da felicidade.")

André Gonçalves, in: Coisas de Amor Largadas na Noite. Ed. Ideias Inc.

bicho

Alone Gut
amor é bicho que morre, meu bem
mais que peixe, se afoga
mais que pássaro, se joga
de qualquer penhasco
sem pena
dele
nem de ninguém.

André Gonçalves, in: Coisas de Amor Largadas na Noite. Ed. Ideias Inc.

Coloral

Quando ele foi embora, ela tratou logo de tirar todas as flores e cores da casa. Pintou todas as paredes de bege.

Aquelas flores só faziam cheirar a cemitério. Ficavam sobre o aparador, estáticas e cabisbaixas, velando toda a energia que com ele tinha se esvaído.

A casa fica sóbria assim, pálida. Ao contrário dela, entregue às alucinações, às pontas de viagens inacabadas e um alcoolismo anestesiador.

Coisas muito coloridas têm cara de criança ou de prostituta.

O estranho era que, mesmo com tudo em bege tão discreto, longe dele ela estava se sentindo um pouco dos dois.

Samantha Abreu