dança comigo?
foi o seu convite
a dez mil
quilômetros de mim
sim
Amanda Ribeiro, in: Máquina de costurar concreto. Ed. Peirópolis
Palavra de Mulher Preta
Mulher preta de palavra
Preta de palavra
Palavra de Preta
Lava alma preta
Palavra sagrada de mulher
Se a minha alma é preta
E a minha sociedade não me aceita
Minha palavra sagrada sangra
Palavras que nos irmanam
Separam o joio do trigo
… o barro do rio que decanta
… encantam os versos da preta
… palavras que declama
Clama, canta, encanta
De-cantaremos o preconceito
Até que ele reme para o longe
Fique sem eira nem beira…
Vá para o ontem…
Palavra de mulher preta
Mulher preta de palavra
Preta de Palavra
Palavra de Preta
Elizandra Souza, in: As 29 poetas hoje. Ed. Companhia das Letras
1.
trilhos trilhos trilhos
sou um homem a caminho do trabalho
na plataforma da estação
o vento sopra nas minhas costas
estampa a paisagem
diante dos meus olhos:
céu
postes
pontas
dos dois lados da ponte
homens e automóveis
tentam a travessia
2.
trilhos
trilhos
trilhos
na plataforma da estação
o vento
dobra esquinas nas minhas costas
o rio
é uma língua de água negra
dentro
dos meus olhos
por onde quer que eles se metam
veem antenas
guindastes
peças
enferrujadas
à espera
de uma improvável reposição
3.
a caminho do trabalho
sou um homem entre outros
na plataforma
— osasco
ou jurubatuba?
osasco ou jurubatuba? —
alguém me pergunta
enquanto o expresso aponta
vertiginosamente
na estação
não importa
vou tomar esse trem
pela última
primeira
vez
ainda não fiz cinquenta anos
dá tempo de mudar alguma coisa
Alberto Martins, in: Em trânsito. Ed. Companhia das Letras
(A EPOPEIA DO AMOR COMEÇA NA CAMA COM OS LENÇÓIS
DESARRUMADOS FEITO UM CAMPO DE BATALHA)
é ali que eu começo a nascer para a madrugada & suas
vertigens onde você meu amor se enrosca em
meu coração paranoico de veludo verde & as delícias de continentes
alaranjados dormem em seu rosto de pérolas turvas oh tambores do
[amor
sem parar rumo às tempestades PLANETÁRIAS & suas
cachoeiras tristes & pesadas como lágrimas
gosto de gostar & a TV da alma amanhece bêbada & tenta
dizer alguma coisa
Roberto Piva, in: Morda meu coração na esquina. Ed.
Companhia das Letras
Anna Cunha
ando assim
a buscar os pássaros em meio a tanto barulho
a chorar pinturas de Boldini
a lembrar-me de ti.
ando assim
ao vento deixando seu abano soar suave
a rir de minhas saias
a fazer-me dançar os pés
ando assim
sincera e sonora
sentindo o ventre pulsar
embalado a poesias
agarrado pelos dedos
silenciado às pinceladas
escrevo-te assim
subitamente
deixando com que as palavras me tomem
descompassadas
a transbordar
escrevo-te assim
como quem corta o espelho
com a unha do verso.
Lorena Martins, in: Água para viagem. Ed. 7Letras
E é preciso gente para a debandada
é preciso o raio a cabeça o trovão
a rua a memória a panóplia das árvores
é preciso a chuva para correres ainda
é preciso ainda que caias de borco
na cama no choro no rôgo na treva
é precisa a treva para ficar um verme
roendo cidades de trapo sem pernas
Mário Cesariny, in: Poesia. Ed. Assírio &
Alvim
A José Carlos Audíface de Brito
Quero escrever um poema irritado.
Quero vingar meu sono dividido
(busco palavras que interroguem essa alquimia
do poema, que vire a noite em fogo vário
e a lua em pegada escondida atrás do muro
— vagaroso desmoronar de extinto voo).
Quero um poema ainda não pensado,
que inquiete as marés de silêncio da palavra
ainda não escrita nem pronunciada,
que vergue o ferruginoso canto do oceano
e reviva a ruína que são as poças d’água.
Quero um poema para vingar minha insônia.
Rio de Janeiro, março de 1950
Olga Savary, in: Coração
subterrâneo. Ed. Todavia