terça-feira, 2 de julho de 2024

my baby just cares of me

Willy Spiller, Dancers, Studio 54, New York, 1979


dança comigo?
foi o seu convite
a dez mil
quilômetros de mim

sim

Amanda Ribeiro, in: Máquina de costurar concreto. Ed. Peirópolis
 

Palavra de mulher preta

Natasha Shaneek

Palavra de Mulher Preta
Mulher preta de palavra
Preta de palavra
Palavra de Preta

Lava alma preta
Palavra sagrada de mulher
Se a minha alma é preta
E a minha sociedade não me aceita
Minha palavra sagrada sangra

Palavras que nos irmanam
Separam o joio do trigo
… o barro do rio que decanta
… encantam os versos da preta
… palavras que declama



Clama, canta, encanta
De-cantaremos o preconceito
Até que ele reme para o longe
Fique sem eira nem beira…
Vá para o ontem…

Palavra de mulher preta
Mulher preta de palavra
Preta de Palavra
Palavra de Preta

Elizandra Souza, in: As 29 poetas hoje. Ed. Companhia das Letras

domingo, 11 de fevereiro de 2024

as mulheres perdidas

Linoca Souza











eu preciso saber os nomes
daquelas mulheres com quem eu teria caminhado
alegremente como fazem os homens em grupo
balançando os braços, e daquelas mulheres
suadas com quem eu teria me juntado
depois de uma partida difícil para jogar conversa fora.
do que teríamos chamado umas às outras, rindo,
brincando na nossa cerveja? onde está minha gangue,
meu time, minhas irmãs extraviadas?
todas as mulheres que poderiam ter me conhecido,
onde nesse mundo estão seus nomes?

(s.d.)

Lucille Clifton, in: Você lembrará seus nomes: antologia de poetas negras dos Estados Unidos do século XX. Ed. Bazar do Tempo

quarta-feira, 31 de janeiro de 2024

Em trânsito


 









1.

trilhos trilhos trilhos
sou um homem a caminho do trabalho

na plataforma da estação
o vento sopra nas minhas costas

estampa a paisagem
diante dos meus olhos:

céu
postes
pontas

dos dois lados da ponte
homens e automóveis
tentam a travessia

2.

trilhos
trilhos
trilhos

na plataforma da estação
o vento
dobra esquinas nas minhas costas
o rio
é uma língua de água negra
dentro
dos meus olhos

por onde quer que eles se metam
veem antenas
guindastes
peças
enferrujadas
à espera
de uma improvável reposição

3.

a caminho do trabalho
sou um homem entre outros
na plataforma

— osasco
ou jurubatuba?
osasco ou jurubatuba? —

alguém me pergunta
enquanto o expresso aponta
vertiginosamente
na estação

não importa

vou tomar esse trem
pela última
primeira
vez

ainda não fiz cinquenta anos
dá tempo de mudar alguma coisa

Alberto Martins, in: Em trânsito. Ed. Companhia das Letras


quinta-feira, 16 de novembro de 2023

.

Xavier Dolan - Les Amours Imaginaires
















(A EPOPEIA DO AMOR COMEÇA NA CAMA COM OS LENÇÓIS
DESARRUMADOS FEITO UM CAMPO DE BATALHA)
é ali que eu começo a nascer para a madrugada & suas
vertigens onde você meu amor se enrosca em
meu coração paranoico de veludo verde & as delícias de continentes
alaranjados dormem em seu rosto de pérolas turvas oh tambores do
                                                                                          [amor
sem parar rumo às tempestades PLANETÁRIAS & suas
cachoeiras tristes & pesadas como lágrimas
gosto de gostar & a TV da alma amanhece bêbada & tenta
dizer alguma coisa

Roberto Piva, in: Morda meu coração na esquina. Ed. Companhia das Letras

quinta-feira, 7 de setembro de 2023

24:04

 Anna Cunha












ando assim
a buscar os pássaros em meio a tanto barulho
a chorar pinturas de Boldini
a lembrar-me de ti.
ando assim
ao vento deixando seu abano soar suave
a rir de minhas saias
a fazer-me dançar os pés
ando assim
sincera e sonora
sentindo o ventre pulsar
embalado a poesias
agarrado pelos dedos
silenciado às pinceladas
escrevo-te assim
subitamente
deixando com que as palavras me tomem
descompassadas
a transbordar
escrevo-te assim
como quem corta o espelho
com a unha do verso.

Lorena Martins, in: Água para viagem. Ed. 7Letras


quarta-feira, 9 de agosto de 2023

XIII

Luis Camnitzer














e é preciso correr é preciso ligar é preciso sorrir é preciso suor
é preciso ser livre é preciso ser fácil é preciso a roda o fogo-de-artifício
é preciso o demónio ainda corpulento
é preciso a roda sob o cavalinho
é preciso o revólver de um só tiro na boca
é preciso o amor de repente de graça
é preciso a relva de bichos ignotos
e o lago é preciso digam que é preciso
é preciso comprar movimentar comércio
é preciso ter feira nas vértebras todas
é preciso o fato é preciso a vida
da mulher cadáver até de manhã
é preciso um risco na boca do pobre
para averiguar de como é que eles entram
é preciso a máquina a quatro mil vóltios
é preciso a ponte rolante no espaço
é preciso o porco é preciso a valsa
o estrídulo o roxo o palavrão de costas
é preciso uma vista para ver sem perfume
e outra menos vista para olhar em silêncio
é preciso o logro a infância depressa
o peso de um homem é demais aqui
é preciso a faca é preciso o touro
é preciso o miúdo despenhado no túnel
é preciso forças para a hemoptise
é preciso a mosca um por cento doméstica
é preciso o braço coberto de espuma
a luz o grito o grande olho gelado

E é preciso gente para a debandada
é preciso o raio a cabeça o trovão
a rua a memória a panóplia das árvores
é preciso a chuva para correres ainda
é preciso ainda que caias de borco
na cama no choro no rôgo na treva
é precisa a treva para ficar um verme
roendo cidades de trapo sem pernas

Mário Cesariny,
in: Poesia. Ed. Assírio & Alvim

quarta-feira, 26 de julho de 2023

acordo perfeito

Mike Pavlovsky












já faz tempo que quero saber 
já faz tempo que eu esqueço  
de procurar a resposta 
já faz tempo que de tempos  
em tempos eu queria  
sair voando desordenadamente  
como um balão, desaparecendo  
como um balão estourado 
um balão que vai perdendo o gás 
no começo vai ser tudo  
bem desesperador 
aí depois vai ser só o vento 
eu e o vento 
dançaremos no compasso  
do mundo, nada imposto
nada certo, nada errado  
nada fora do lugar 
ficarei com o vento 
até que cansaremos os dois 
eu de ser carregada  
ele de me carregar 
e pousaremos a esmo 
até que mil anos de decomposição  
nos façam sumir de uma vez.

Marília Valengo, in: Grito em praça vazia. Ed. 7Letras

terça-feira, 30 de maio de 2023

Insônia

                                                                                A José Carlos Audíface de Brito

Quero escrever um poema irritado.
Quero vingar meu sono dividido
(busco palavras que interroguem essa alquimia
do poema, que vire a noite em fogo vário
e a lua em pegada escondida atrás do muro
— vagaroso desmoronar de extinto voo).
Quero um poema ainda não pensado,
que inquiete as marés de silêncio da palavra
ainda não escrita nem pronunciada,
que vergue o ferruginoso canto do oceano
e reviva a ruína que são as poças d’água.
Quero um poema para vingar minha insônia.

Rio de Janeiro, março de 1950

Olga Savary, in:  Coração subterrâneo. Ed. Todavia

POEMA DIDÁTICO

Anna Cunha













Já tive um país pequeno,  
tão pequeno  
que andava descalço dentro de mim.  
Um país tão magro  
que no seu firmamento  
não cabia senão uma estrela menina,  
tão tímida e delicada  
que só por dentro brilhava.  

Eu tive um país escrito sem maiúscula.  
Não tinha fundos  
para pagar a um herói.  
Não tinha panos  
para costurar bandeira.  
Nem solenidade  
para entoar um hino. 

Mas tinha pão e esperança  
para os viventes  
e sonhos para os nascentes.  

Eu tive um país pequeno,  
tão pequeno  
que não cabia no mundo. 

Mia Couto, in: Tradutor de chuvas. Ed. Caminho