sexta-feira, 30 de julho de 2010

o amor é uma aposta estranha
o vencedor pelo vencido
cada um com o seu drama
contudo, não é nada
e o mundo inteiro reclama
quantos cavalos errados
para o único que ganha.

Zoe de Camaris

quinta-feira, 29 de julho de 2010

"Meu coração não se cansa de ter esperança..."

Nonnetta
Demorei muito tempo para começar. Demoramos demais para perceber que é preciso descobrir o começo, algum começo. Nos atrasamos e aí lá se foi milhões de cartas, de erros, de um sim quando era não, e de um não que talvez pudesse nos iniciar. As outras pessoas também não sabiam, e mesmo se desconfiassem saber, não poderiam indicar um caminho que só nós mesmos seremos capazes de desvendar.

A vida é mata fechada, quem está vindo agora também está vindo para descobrir algo de novo. Ainda há muitas ilhas, ainda há um deserto infinito no coração de alguém. Ainda temos medo do escuro, e penso que cresce conosco, silencioso e sempre presente. Nosso caminho é feito do que trouxemos desde muito tempo, desde o intervalo, desde um adeus que não sabíamos, de uma solidão que nos abraçou sem que percebessemos.

Trouxemos a solidão desde que guardamos o primeiro bilhete de amor, desde que o primeiro beijo nunca se repetiu, desde que aprendemos a somar um com um e descobrimos que dois era melhor. Não aprendemos a ser sozinhos, nem tão pouco a sermos completos. Sempre nos faltará alguma coisa, sempre teremos alguma coisa ausente e tão doce que doerá no sorriso. Só a vida nos ensinará que para sermos mais, precisaremos nos dividir. Ser metade sempre será mais completo do ser inteiro.

Você deve se achar o máximo, deve se achar a estrela do céu de Hollywood e no fundo você não sabe nada, não sabe nem quem é você, nem quem você está prestes a se tornar. Na verdade você está longe, mas eu entendo, te compreendo, precisamos dilacerar o coração primeiro, entregá-lo a alguém que irá machucá-lo e devolvê-lo com um rosto tão leve que o aceiteremos de volta, e não importa se demoraremos a outra metade da vida tentando juntar pedaço por pedaço para enfiá-lo no peito novamente, o entregaremos de novo mais cedo ou mais tarde, inocentes, o pegaremos nas mãos e deixaremos alguém o levar. Só muito tempo depois é que compreendemos o amor, só depois que o peito tiver sido aberto muitas vezes, de termos escritos muitas cartas, de termos encontrado muita gente, depois que do coração só restar uma ferida, aí estaremos prontos. Pois o amor virá depois que se anular a felicidade que julgamos. Deixamos o amor chegar quando estivermos em milhões de pedaços, para cuidar, para curar, para nos ajudar a construir.

Cáh Morandi

garimpo

busco a palavra exata
que diga do que penso
e nunca sinto
palavra-abismo
de espaços vastos
palavra-nada
— como pedra —
lava de vulcão extinto.

Márcia Maia

inércia

exausta
deito-me à margem do dia
sem viço.

e sonho
alheios sonhos antigos
sem nexo.

Márcia Maia

quarta-feira, 28 de julho de 2010

Memória falha

foi tanta a espera
que a memória falha um pouco
geme um pouco
finge que esquece
e se mistura enevoada
feito hiato, sombra
lembrança inexata
de um gosto bom.

a saudade vem mais forte
na medida certa da proximidade.

Paula Cajaty

Quase

o sorriso dela foi largo
cheio de certezas
dessas que voam leves no vento
sentiu o aconchego na distância de seu abraço
a ansiedade apertada de um beijo
sempre soube agradar com poesia
não, não era amor
mas era quase.

Paula Cajaty

terça-feira, 27 de julho de 2010

Cores

Teu azul,
Muito mais azul que o meu,
Sem pedir licença,
Entrou por minha janela branca
E azulou
Toda a minha sala

Mas teu azul
Em nada combina
Com meus móveis vermelhos
Então eis a dúvida:
Pintar as paredes ou trocar meus móveis?

Renata Pereira

Companheira solidão

ah, companheira
eu e você nessa noite inteira
ontem, amanhã, você aqui comigo
não tem nenhum perigo
porque eu estou assim no seu cuidado
ah, companheira
fica do meu lado
que eu não quero nenhuma choradeira
estar só não é um tédio,
é uma inspiração
veja, companheira,
pulsa meu coração
e eu escrevo assim dessa maneira
obrigada, companheira
por me dar esta canção.

Patrícia Moresco

domingo, 25 de julho de 2010

Devaneio vicioso

Mais alguns segundos
para que eu possa terminar este cigarro
e aspirar
no trago
a sensação violenta
de ser invadida por ti.

Eu me completo do teu
tóxico jeito
de amar.
Um curto grau
de devaneio vicioso.

A ponta eu guardo
para posteriores abstinências.

Samantha Abreu

VII

Rios de rumor: meu peito te dizendo adeus.
Aldeia é o que sou. Aldeã de conceitos
Porque me fiz tanto de ressentimentos
Que o melhor é partir. E te mandar escritos.
Rios de rumor no peito: que te viram subir
A colina de alfafas, sem éguas e sem cabras
Mas com a mulher, aquela,
Que sempre diante dela me soube tão pequena.
Sabenças? Esqueci-as. Livros? Perdi-os.
Perdi-me tanto em ti
Que quando estou contigo não sou vista
E quando estás comigo vêem aquela.

Hilda Hilst, in: Cantares do Sem Nome e de Partidas. Ed. Globo

sexta-feira, 23 de julho de 2010

Arquipélago

Henri Cartier
Meus olhos são espelhos para os teus reflexos invisíveis.
O meu poema aqui,
e este sorriso que tenho,
são as minhas armas contra a tua ausência.
Eu fico assim, hoje e sempre,
e o teu caminho se esparrama aos meus pés.

Meus olhos são canais para a tua correnteza.
Revejo o meu barco em naufrágio
e a minha fuga
leva-me sempre para a mesma noite
perdida, no meio desta ilha escura.

Patrícia Moresco

Quarto

Alone Gut

um travesseiro
bordado, canto
esquerdo:
"ninguém"

Virna Teixeira

quinta-feira, 22 de julho de 2010

A Adriana Calcanhotto

Saint‐Nazaire, 16.12.92

Deusa querida e distante,

impossível não pensar em você bebendo literalmente litros de água Perrier todo o dia — o aquecimento seca horrores a pele! —, mas não só por isso. Também procuro as cores de Almodóvar, cores de Frida Kahlo (vi uma autêntica na Fnac, em Paris!), que aqui, neste porto de mar na Bretagne, entre Nantes e Brest, a cidade de Querelle, são bastante raras. São mais cores de Agnés Varda, cores de Gustav Klimt.

Tua fita — da qual não me separo há meses — faz sucesso por aqui. Mal posso ouvi-la. Alain Keruzoré, meu tradutor, passou para Bernard Soubourou, que sabe tudo sobre — imagina — Tânia Alves, que passou para Marie Pierre. Hoje saio na batalha, não quero ficar sem ela.

Te mando dois recortes, um deles fala em você. Mas ai, os-modernos-e-seus-segundos- cadernos são iguais em tout le monde. Ele faz uma confusão entre aquela Penélope que você musicou e um conto que Claire Cayron traduziu. Bom, não importa. Anyway, você está presente no texto — uma pequena novela — que escrevo no momento para deixar aqui, será publicada pela Arcane 17.

Fico até 31.12 neste apartamento enorme, debruçado no porto de mar, com uma vista de 360 graus e uma paisagem que, estranhamente, lembra Porto Alegre, Manhattan, Florianópolis e a ponte Rio-Niterói (com Saint-Brévin les Pins do outro lado da baía). Depois vou a Amsterdam, Kóln e Frankfurt, para leituras, tradutores, agentes. Acho que volto em fevereiro — mas não sei ao certo, houve um problema com meu ap. em SP na minha ausência e, anyway, tenho que estar na Alemanha outra vez em junho. Tenho pensado que só agora compreendo o sentido exato da expressão "minha pátria é minha língua".

Passei o domingo, ontem, comendo ostras, bebendo vinho branco e ouvindo Jane Birkin cantando as canções de Serge Gainsbourg. Você ia adorar Norma Jean Baker. Vou levar a fita. Fiz amizade forte com a filha de Christian, o diretor da Maison — chama-se Marina, tem 9 anos, é Virgoem em ascendente Capricórnio e tem absolutamente tudo de Van Gogh. É quem tem me dado as melhores aulas de francês.

Andei muito cadela no Brasil. Milhares de problemas, nada grave. Seu disco — deixei um recado na sua gravadora — me ajudou muito. Tem ajudado, é sincero & comovido o que te digo.

Sábado tem show de Marina em Paris. Pensei em ir, mas fui recrutado para participar de uns debates com os escritores do Báltico — Lituânia, Estônia, Letônia, imagina — seria feio faltar. Outro dia acordei com vontade de ouvir Elis e encontrei um cassete no Centro — tem Folhas secas.

Te mando uma folha de outono.

E todo carinho, e toda a energia para você continuar seu trabalho.

Je t'embrasse, love
love
love


Caio F.

PS — Às 13h vejo Isaura na TV: Lucélia falando em francês é hilário! Logo depois tem Dona Beija — mas aí é demais para minha beleza.
PS 2 — Torci tanto por Benedita da Silva. Sábado, no Liberation saiu um perfil dela chamando-a de "La madona des favelas". Desta distância, lanço meu olhar sobre o Brasil e entendo ainda menos...
PS 3 — Estou cantando Anne Dusquenois, que produz Marina, para trazer você.
PS 4 — Brigitte Bardot tentou o suicídio com barbitúricos, ontem!
PS 5 — Comentário na TV sobre Lady Di: "Bem, se os ingleses não querem saber dela, nós, franceses, podemos dar um jeito..."

Caio Fernando Abreu, in: O Essencial da Década de 90. Ed. Agir

quarta-feira, 21 de julho de 2010

Geminiana

Não sinto nada que falo
não falo nada que penso
não penso nada que preste.
Nunca estou onde procuram
nunca sei quem eu espero
nunca saro quando curo.

Ivana Arruda Leite

Vermelha

Vânia Medeiros
Tem uma de mim que é duríssima...
Sangra feito uma condenada,
mas não larga a mão da faca.
Tem uma de mim que toda noite se mata.
Essa é a pior. É a mais poderosa de todas.
Mas só sabe se mostrar pra um certo olhar que não tem mais...
Aí fica berrando, trancada, aqui dentro.
Berrando, berrando...
E sangrando...

Raiça Bomfim

Alô alô

Nonnetta

Desculpa, só tô te ligando porque,
na pressa, saí tão ligeira
que acabei me esquecendo dentro de você.

Ivana Arruda Leite

Líquido

Teu beijo é tanto
é tamanho
que nele me dispo,
me banho,
me adoço.
Deixo no pescoço
uma gota ativa
pra te manter molhado
enquanto posso.
Essa umidade me conserva viva.

Flora Figueiredo, in: Calçada de Verão. Ed. Novo Século

Um bom lugar

deviantart
bobagem a gente pensar que passa...
que o tempo passa,
que os dias voam,
que a fila anda,
que a vida segue,
se o passado revive
se a lembrança persegue,
se não há tempo que carregue
o desejo de ficar à toa
no pensamento, numa saudade boa,
em uma vontade, em um sossego,
em uma pessoa.

Cáh Morandi

segunda-feira, 19 de julho de 2010

Madrugar-se

Madruga-se porque madruga-se. Porque o resto da manhã já não serve ao sono, mas ao próprio amanhecer. Porque vale pensar em abandonos necessários, urgentes, porque é necessário abandonar-se ao tempo e sentir. Senti-lo. Não que seja fácil. É importante que se tenha um colo no qual se aconchegar e dinheiro na caixinha. Tudo por segurança. Mas há quem abandone no risco mesmo. Só pela força do amanhecer. Só pelo brilho do vazio que se interpõe entre a vontade e a coragem, e pela possibilidade de invadir esse vazio e se preencher de desconhecidos. Madruga-se porque a madrugada pede. Não mais que isso. Porque o resto do dia é alvoroçado demais para fazer poesia e porque o rastro do último sonho parece coisa palpável ainda aos primeiros raios de sol. Madruga-se porque sonha-se. Porque pede-se. Madrugo porque é hoje, e hoje me dá uma vontade...

Carla Jaia

domingo, 18 de julho de 2010

Carta anônima

Para ler ao som de Melodia sentimental, de Villa-Lobos, cantada por Olivia Byington.

Tenho trabalhado tanto, mas penso sempre em você. Mais de tardezinha que de manhã, mais naqueles dias que parecem poeira assentada aos poucos, e com mais força enquanto a noite avança. Não são pensamentos escuros, embora noturnos. Tão transparentes que até parecem de vidro, vidro tão fino que, quando penso mais forte, parece que vai ficar assim clack! e quebrar em cacos, o pensamento que penso de você. Se não dormisse cedo nem estivesse quase sempre cansado, acho que esses pensamentos quase doeriam e fariam clack! de madrugada e eu me veria catando cacos de vidro entre os lençóis. Brilham, na palma da minha mão. Num deles, tem uma borboleta de asa rasgada. Noutro, um barco confundido com a linha do horizonte, onde também tem uma ilha. Não, não: acho que a ilha mora num caquinho só dela. Noutro, um punhal de jade. Coisas assim, algumas ferem, mesmo essas são sempre bonitas. Parecem filme, livro, quadro. Não doem porque não ameaçam. Nada que eu penso de você ameaça. Durmo cedo, nunca quebra.

Daí penso coisas bobas quando, sentado na janela do ônibus, depois de trabalhar o dia inteiro, encosto a cabeça na vidraça, deixo a paisagem correr, e penso demais em você. Quando não encontro lugar para sentar, o que é mais frequente, e me deixava irritado, agora não, descobri um jeito engraçado de, mesmo assim, continuar pensando em você. Me seguro naquela barra de ferro, olho através das janelas que, nessa posição, só deixam ver metade do corpo das pessoas pelas calçadas, e procuro nos pés delas aqueles que poderiam ser os seus. (A teus pés, lembro.) E fico tão embalado que chego a me curvar, certo que são mesmo os seus pés parados em alguma parada, alguma esquina. Nunca vejo você — seria, seriam?

Boas e bobas, são as coisas todas que penso quando penso em você. Assim: de repente ao dobrar uma esquina dou de cara com você que me prega um susto de mentirinha como aqueles que as crianças pregam uma nas outras. Finjo que me assusto, você me abraça e vamos tomar um sorvete, suco de abacaxi com hortelã ou comer salada de frutas em qualquer lugar. Assim: estou pensando em você e o telefone toca e corta meu pensamento e do outro lado do fio você me diz: estou pensando tanto em você. Digo eu também, mas não sei o que falamos em seguida porque ficamos meio encabulados, a gente tem muito poder de parecer ridículos melosos piegas bregas românticos pueris banais. Mas no que eu penso, penso também que somos mesmo meio tudo isso, não tem jeito, e tudo que vamos dizendo, quando falamos no meu pensamento, é frágil como a voz de Olivia Byington cantando Villa-Lobos, mais perto de Mozart que de Wagner, mais Chagal que Van Gogh, mais Jarmush que Wim Wenders, mais Cecília Meireles que Nélson Rodrigues.

Tenho trabalhado tanto, por isso mesmo talvez ando pensando assim em você. Brotam espaços azuis quando penso. No meu pensamento, você nunca me critica por eu ser um pouco tolo, meio melodramático, e penso então tule nuvem castelo seda perfume brisa turquesa vime. E deito a cabeça no seu colo ou você deita a cabeça no meu, tanto faz, e ficamos tanto tempo assim que a terra treme e vulcões explodem e pestes se alastram e nós nem percebemos, no umbigo do universo. Você toca na minha mão, eu toco na sua.

Demora tanto que só depois de passarem três mil dias consigo olhar bem dentro dos seus olhos e é então feito mergulhar numas águas verdes tão cristalinas que têm algas na superfície ressaltadas contra a areia branca do fundo. Aqualouco, encontro pérolas. Sei que é meio idiota, mas gosto de pensar desse jeito, e se estou em pé no ônibus solto um pouco as mãos daquela barra de ferro para meu corpo balançar como se estivesse a bordo de um navio ou de você. Fecho os olhos, faz tanto bem, você não sabe. Suspiro tanto quando penso em você, chorar só choro às vezes, e é tão frequente. Caminho mais devagar, certo que na próxima esquina, quem sabe. Não tenho tido muito tempo ultimamente mas penso tanto em você que na hora de dormir vezenquando até sorrio e fico passando a ponta do meu dedo no lóbulo da sua orelha e repito repito em voz baixa te amo tanto dorme com os anjos. Mas depois sou eu quem dorme e sonha, sonho com os anjos. Nuvens, espaços azuis, pérolas no fundo do mar. Clack! como se fosse verdade, um beijo.

Caio Fernando Abreu, in: Pequenas Epifanias / O Estado de S. Paulo, 16/3/1988 / Ed. Agir

sábado, 17 de julho de 2010

Canção pensativa

Um toque da solidão, e um dedo
gracioso mas severo me traz
à realidade: não depender
nem dos meus amores, não me enfeitar
unicamente com os ardores teus, mas ver
que cada um de nós é um coração sozinho
cada um de nós perenemente
é um no espelho a se mirar, sabendo
que mesmo se no leito desse vidro cinza
um outro olhar nos busca e outro amor
quer derramar-se em nós, os limites
entre frio cristal e alma ardente
são para sempre, e para sempre
a amante solidão nos chama e abraça.

Lya Luft, in: Secreta Mirada. Ed. Mandarim

sexta-feira, 16 de julho de 2010

Toque

Egon Schiele
Minhas mãos
abrem a cortina do seu ser
cobrindo-o com uma nudez maior
descobrindo os corpos do seu corpo
Minhas mãos inventam outro corpo
Para o seu corpo.

Octavio Paz

Iniciei mil vezes o diálogo. Não há jeito.
Tenho me fatigado tanto todos os dias
vestindo, despindo e arrastando amor,
infância, sóis e sombras.

Hilda Hilst

Rega tuas plantas
Ama as tuas rosas
o resto é sombra de árvores alheias.

Ricardo Reis, in: Heterônimo de Fernando Pessoa

quinta-feira, 15 de julho de 2010

É só amor

Susane está em depressão. Sente muito sono. Engordou seis quilos e não consegue sentir prazer. Seu marido Flávio desistiu de procurá-la e não sabe até quando irá suportar essa abstinência.

Lucas tem uma vida sexual ativa e procura não repetir suas parceiras. Sai à noite à caça e, por regra, não leva as mulheres que conhece para a sua casa, tornando-se um grande apreciador de motéis em Porto Alegre.

Susane e Flávio perderam um filho. Aborto espontâneo. O maior desejo de Flávio é ver os olhos de Susane sorrirem outra vez. Ela largou o emprego de gerente em uma loja e passa seus dias na frente da televisão. Ele já lhe propôs viagens, jantares e um outro filho. Ela não quer tentar.

Em uma boate, Lucas conheceu Aline e se sentiu especialmente atraído por ela. Além de bonita tinha um grande senso de humor. Passaram a noite juntos, na casa dele.

Flávio é um homem jovem e bonito. Ele aceita o convite de uma colega para tomar uma cerveja depois do trabalho. Da cerveja foram para o uísque. O beijo foi uma conseqüência.

Lucas e Aline passaram a sair todas as noites. O sexo estava a cada dia melhor. Aline lhe mostrou um teste HIV e pediu que ele fizesse o mesmo, para que pudessem transar sem camisinha. Ele disse que faria o quanto antes, mas não fez. Decidiu se afastar de Aline. Transar sem camisinha é muito vínculo.

Quando Flávio chega em casa, Susane está dormindo. Não sentiu a sua falta, mas ele sentiu a dela.

Adriana Oliveira

quarta-feira, 14 de julho de 2010

Tomara

Tomara que a neblina das circunstâncias mais doídas não seja capaz de encobrir por muito tempo o nosso sol. Que toda vez que o nosso coração se resfriar à beça, e a respiração se fizer áspera demais, a gente possa descobrir maneiras para cuidar dele com o carinho todo que ele merece. Que lá no fundo mais fundo do mais fundo abismo nos reste sempre uma brecha qualquer para ver também um bocadinho de céu.

Tomara que os nossos enganos mais devastadores não nos roubem o entusiasmo para semear de novo. Que a lembrança dos pés feridos quando, valentes, descalçamos os sentimentos, não nos tire a coragem da confiança. Que sempre que doer muito, os cansaços da gente encontrem um lugar de paz para descansar na varanda mais calma da nossa mente. Que o medo exista, porque ele existe, mas que não tenha tamanho para ceifar o nosso amor.

Tomara que a gente não desista de ser quem é por nada nem ninguém deste mundo. Que a gente reconheça o poder do outro sem esquecer do nosso. Que as mentiras alheias não confundam as nossas verdades, mesmo que as mentiras e as verdades sejam impermanentes. Que friagem nenhuma seja capaz de encabular o nosso calor mais bonito. Que, mesmo quando estivermos doendo, não percamos de vista nem de busca a ideia da alegria.

Tomara que apesar dos apesares todos, dos pesares todos, a gente continue tendo valentia suficiente para não abrir mão da felicidade.

Tomara.

Ana Jácomo

terça-feira, 13 de julho de 2010

Clarice Lispector

 [...] Sua singularidade perturbava as pessoas. "Acusam-na de alienada", escreveu um crítico em 1969, "que trata motivos e temas estranhos à sua pátria, numa língua que lembra muito os escritores ingleses. Lustre não existe no Brasil, nem aquela cidade sitiada, que ninguém sabe onde fica."
(O Lustre é o título de seu segundo romance; A Cidade Sitiada, do terceiro.)

Clarice Lispector, in: Clarice, de Benjamin Moser. Ed. Cosac Naify
Lilya Corneli

Se o amor ainda medrasse
aqui ficava contigo
pois gosto de tua face
desse teu riso de fonte;
e do teu olhar antigo;
de estrela sem horizonte.

Cecília Meireles

E novamente a minha vida canta muito mais alto, como se agora tocasse em margens muito distantes.

Rainer Maria Rilke. Recorte do livro de Lya Luft: Secreta Mirada. Ed. Mandarim

Tudo penetra mais fundo em mim, e não pára no lugar em que costumava terminar antes. Talvez um interior que eu ignorava. Agora tudo vai dar ali. E não sei o que lá acontece.

Rainer Maria Rilke. Recorte do livro de Lya Luft: Secreta Mirada. Ed. Mandarim

A esfinge

Clarice Lispector
Quando morreu, em 1977, Clarice Lispector era uma das figuras místicas do Brasil, a Esfinge do Rio de Janeiro, uma mulher que fascinava os brasileiros praticamente desde a adolescência. "Ao vê-la, levei um choque", disse o poeta Ferreira Gullar, relembrando o primeiro encontro entre os dois. "Seus olhos amendoados e verdes, as maçãs do rosto salientes, ela parecia uma loba - uma loba fascinante. [...] Imaginei que, se voltasse a vê-la, iria me apaixonar por ela." "Há homens que nem em dez anos me esqueceram", admitiu Clarice. "Há o poeta americano que ameaçou suicidar-se porque eu não correspondia..." O tradutor Gregory Rabassa recordava ter ficado "pasmo ao encontrar aquela pessoa rara, que era parecida com Marlene Dietrich e escrevia como Virginia Woolf".

Clarice Lispector, in: Clarice, de Benjamin Moser. Ed. Cosac Naify

segunda-feira, 12 de julho de 2010

Alfred Gockel
[...] Um grande amor pode existir mesmo sem resposta; o amante suspira na sombra, se acaba de paixão, sem que o objeto de seus sonhos lhe dirija, mais do que um olhar. Mais na vida real o que queremos, para que o amor se complete física e afetivamente, é que o outro também nos ame. E achamos que nosso amor só se transformará realmente num amor absoluto, na medida em que a intensidade do amor do outro for gêmea idêntica da nossa intensidade.

O amor não é mensurável. A duras penas sabemos do nosso próprio amor, quanto mais do outro. O que costumamos fazer para resolver o impasse é medir o amor do outro usando o nosso próprio amor como metro. Ele diz "eu te amo". Nos respondemos "eu também te amo". E deduzimos que as duas coisas são idênticas e que aquele amor, como a vida e a morte, representa um todo, como elas indissolúvel, e, portanto, como elas, absoluto. Está demonstrando o teorema, como se queria.
Um perigoso teorema, na verdade. Porque em cima dele, e da sua inconsistência, começamos a construir justamente aquele castelo que queríamos mais sólido e mais seguro.
E a cada tilojo fazemos um investimento maior para que cresça rumo ao alto e, como a Torre de Babel, nos leve ao céu, nos permita a eternidade, justifique a vida e esconjure a morte.

Marina Colasanti, in: E Por Falar em Amor. Ed. Salamandra

domingo, 11 de julho de 2010

Incomodidade


Mente é casa que não tem paredes, mas nos acostumamos a viver como se tivesse. E, não é raro, passamos temporadas no cômodo mais apertado.

Ana Jácomo

sábado, 10 de julho de 2010

III

Brilho de uma Paixão
Áspero amor, violeta coroada de espinhos,
cipoal entre tantas paixões eriçado,
lança das dores, corola da cólera,
por que caminhos e como te dirigiste a minha alma?

Por que precipitaste teu fogo doloroso,
de repente, entre as folhas frias de meu caminho?
Quem te ensinou os passos que até mim te levaram?
Que flor, que pedra, que fumaça, mostraram minha morada?

O certo é que tremeu a noite pavorosa,
a aurora encheu todas as taças com seu vinho
e o sol estabeleceu sua presença celeste,

enquanto o cruel amor sem trégua me cercava,
até que lacerando-me com espadas e espinhos
abriu no coração um caminho queimante.

Pablo Neruda, in: Cem Sonetos de Amor. Tradução de Carlos Nejar. Ed. L&PM

sexta-feira, 9 de julho de 2010

O rio do tempo

O tempo não existe,
nem dentro nem fora.
Esses peixes de opala
são nomes que nadam na memória:
são rostos, são risos, são prantos,
são as horas felizes.

O tempo não existe,
pois tudo continua aqui, e cresce
como se arredonda uma árvore
pesada de frutos que são peixes,
que são nomes de nomes, são rostos
com máscaras.

O tempo não existe. Sou apenas
o aqui e o presente, e o atrás disso,
como um rio que corre mas não passa
- pois ele é sempre, em mim, agora.

Lya Luft, in: Para Não Dizer Adeus. Ed. Record

quarta-feira, 7 de julho de 2010

Tonel

Pedaço de mim
poço sem fundo
emaranhado de pedras e solidão
o vazio indo e vindo devagar

...

A louca sensação do nada
esmagando o coração cheio de deserto
...
As lágrimas dançam se esvaindo no aguaceiro.

Fatima Reis

segunda-feira, 5 de julho de 2010

Sossego da palavra

Quando a palavra me pediu um pouco de sossego, nada mais me restou senão olhar. E eu não soube ver. Não soube ver a coisa muda em sua andança errante. Porque, sem nome, a forma perde a forma. E toda a terra se fazia morte. Era o apocalipse vindo a cavalo e o mundo inteiro em galope múltiplo; era uma melodia relinchando feia e todos nós em notas de piano mudo. Tudo oco. E eu, calada tonta em vertigem bêbada.

Sem poder cantar minha vontade humana.

Fraca no que em mim é gente. Forte feito um animal. Suplicando que você me desse um soro. Pra me curar dessa doença-bicho...

Carla Jaia

Cópia de ninguém

Katarina Sokolova
Ela me falou do tal amor sem toque. Desde então, meu mundo se revirou por inteiro. É que corpo é corpo e vida é o que corre nas minhas veias, é músculo, pele e respiração na nuca. Amor sem toque não existe. Amor de olhos, fantasia, idéias e vôos? Ora, eu disse a ela que isso é amor de freira, e que amor de mulher – mulher mesmo! – precisa mesmo é de um bom calor de baixo pra cima, de cima pra baixo, de cá pra lá, de lá pra cá. E ela riu. Riu e continuou amando, na sutileza de seu olhar – tão feminino quanto o meu, dourado feito borboleta. Persistiu no desejo, na ânsia, seguiu intensa feito a amante do pianista de bordel. O bordel, sabe? Aquele que ela inventou em um de seus vôos. Voou para o pecado e encontrou mais um pedaço de sua santidade. Era úmida e quieta, era tão mulher que gozava ao sonhar. De ventre e imaginação; invisível de corpo, plena de visão. Via sem ser vista, amava sozinha, era fêmea em segredo. Assim são os que ainda não foram traçados como iguais pelo desenho repetido do nosso olhar mundano. Eu sou cópia de quase todo mundo. Ela era ainda cópia de ninguém.

Carla Jaia

sábado, 3 de julho de 2010

Um amor impossível

Amanhã
este fogo cresce.

Amanhã, tremor
Amanhã, suspiro.

Insiste
um amor impossível
amanhã.

Insiste,
sim.
Um amor impossível pode ser amanhã.

Angela Melim

quinta-feira, 1 de julho de 2010

O poeta inventa viagem, retorno e morre de saudade

Graça Loureiro
Se for possível, manda-me dizer:
- É lua cheia. A casa está vazia -
Manda-me dizer, e o paraíso
Há de ficar mais perto, e mais recente
Me há de parecer teu rosto incerto.
Manda-me buscar se tens o dia
Tão longo como a noite. Se é verdade
Que sem mim só vês monotonia.
E se te lembras do brilho das marés
De alguns peixes rosados
Numas águas
E dos meus pés molhados, manda-me dizer:
- É lua nova -
E revestida de luz te volto a ver.

Hilda Hilst, in: Júbilo, Memória, Noviciado da Paixão. Ed. Globo

A poesia

Katarina Sokolova
Colho as palavras
melódicas suaves
incontroláveis
que surgem do nada
e no entanto fazem todo o sentido...

Fatima Reis