segunda-feira, 31 de maio de 2010

Um uivo em memória de Reinaldo Arenas

Reinaldo Arenas
Acaba de ser lançado no Brasil um dos livros mais belos que conheço: Antes que Anoiteça (Editora Record), autobiografia do cubano Reinaldo Arenas. “Belo” não seria o adjetivo exato. Pungente talvez, pois comove e rasga. Destemido, dilacerado, desesperado e sobretudo vivo de vida pulsante, sangrenta. Em chagas, tão impudicamente exposto. Mas adjetivos pouco importam. Importa o livro, a vida crua que ele revela.

Encontrei Reinaldo numa madrugada de novembro de 1992 em Saint-Nazaire, cidade francesa entre Nantes e Brest, exatamente onde o rio Loire chega ao mar, fronteira sul da Bretanha. Aparentemente anódina, sinistrée durante a Segunda Guerra (numa noite, restaram cinco mil dos 8o mil habitantes), depois reconstruída pelos americanos, Saint-Nazaire é, contudo, mágica a ponto de ter um dólmen druídico na praça central. Num décimo segundo andar, a prefeitura socialista e a editora Arcane 17 mantêm a Maison des Écrivains Étrangers, que oferece bolsas a escritores do mundo todo durante dois ou três meses, para que deixem um livro à memória da cidade. Por lá passaram o argentino Ricardo Piglia, o búlgaro Victor Paskov, o espanhol Luis Goytisolo e pelo menos mais uns 20 checos, escandinavos, chineses. Nesse tempo de que falo, por partes de minha tradutora Claire Cayron, era eu o hóspede.

Foi numa noite de tempestade, loucas gaivotas batiam-se contra as vidraças do terraço. Insone fiquei lendo Méditations de Saint-Nazaire, de Arenas, que só vagamente conhecia (Celestino antes del alba, El mundo alucinante). Impressionado com o texto, decorei suas últimas palavras: “Aún no sé si es este el sitio donde yo pueda vivir. Talvez para um desterrado — como la palabra lo indica — no haya sitio en la Tierra. Sólo quisiera pedirle a este cielo resplandeciente y a este mar, que por unos días aún podré contemplar, que acojan mi terror”. Repeti feito oração, e dormi. Acordei ouvindo o ruído da máquina de escrever do escritório. Fui até o corredor, espiei. Em frente à janela, um homem moreno contemplava a tempestade enquanto escrevia. Parecia chorar. Estremeci, ele desapareceu. Tô pirando, pensei. E voltei a dormir.

Pela manhã contei a história a Christian Bouthemy, poeta e editor da Arcane 17. Descrevi o homem. Parece Reinaldo Arenas, ele lembrou, que ficara por lá apenas uma semana da temporada de dois meses. Estava com aids, tinha medo de se jogar pela janela. Preferiu voltar a Nova York e suicidar-se com uma overdose de barbitúricos e álcool, depois de concluir sua autobiografia, este Antes que Anoiteça. Consegui o livro em francês e em Paris, num quartinho alugado com Dominique Bach, produtora da cantora cabo-verdiana Cesária Évora, durante um fevereiro gelado, no coração da barra pesada de Château d’Eau, mastiguei suas últimas palavras como se fossem cacos de vidro. Não suportava ler, nem conseguia parar. Jamais sofri tanto com um livro — nem mesmo Fome, de Knut Hamsum, ou A morte de Ivan Ilitch, de Tolstói.

Leiam também vocês se não têm medo da dor e da verdade. Censurado, perseguido e preso em Cuba por homossexualismo, Arenas fugiu para Miami, primeira estação do seu calvário de solidão e exílio, dedicando-se a desmascarar figurões tipo García Márquez, Severo Sarduy, Eduardo Galeano, Julio Cortázar e outros asseclas de Fidel Castro, que odiava. Livra a cara de pouco — Lezama Lima e Virgilio Piñera, malditos (e grandes) como ele. Transbordava amor: à vida, aos rapazes, à literatura.

Voltando ao Brasil, tentei traduzi-lo. Ninguém quis. Muito deprimente, diziam, pouco comercial. Mas como o Deus das Laikas (e Arenas foi a maior de todas) tarda mas não falha, saiu agora. Leiam. Pelo bravo homem que ele foi, e também para aprender a valorizar o que se tem, mas não se preza. Depois uivem para o infinito em memória desse cubano lindo, desventurado, heróico.

Requiescat in pace, hermoso compañero.

Caio Fernando Abreu, in: Pequenas Epifanias / O Estado de S. Paulo, 27/11/1994 / Ed. Agir

domingo, 30 de maio de 2010

Frida Kahlo
Mulheres com sobrancelhas grossas me passam um ar de tristeza impossível. Frida Kahlo marcou meu jeito de ver. Uma beleza selvagem, súplica, ardor adotivo, vento de dia que já é uma espécie de noite.

Fabrício Carpinejar

Uma didática da invenção

Deviantart
I

Para apalpar as intimidades do mundo é preciso saber:

a) Que o esplendor da manhã não se abre com faca
b) O modo como as violetas preparam o dia para morrer
c) Por que é que as borboletas de tarjas vermelhas têm devoção por túmulos
d) Se o homem que toca de tarde sua existência num fagote, tem salvação
e) Que um rio que flui entre 2 jacintos carrega mais ternura que um rio que flui entre 2 lagartos
f) Como pegar na voz de um peixe
g) Qual o lado da noite que umedece primeiro.
etc
etc
etc
Desaprender 8 horas por dia ensina os princípios.

Manoel de Barros, in: Os Cem Melhores Poemas Brasileiros do Século. Org. Italo Moriconi. Ed. Objetiva

XI

Deviantart
antiga, a dor
colou em mim

dói mais
quando tento arrancá-la

então a carrego

(ficamos assim)

Nydia Bonetti

sábado, 29 de maio de 2010

Do desejo

I

Porque há desejo em mim, é tudo cintilância.
Antes, o cotidiano era um pensar alturas
Buscando Aquele Outro decantado
Surdo à minha humana ladradura.
Visgo e suor, pois nunca se faziam.
Hoje, de carne e osso, laborioso, lascivo
Tomas-me o corpo. E que descanso me dás
Depois das lidas. Sonhei penhascos
Quando havia o jardim aqui ao lado.
Pensei subidas onde não havia rastros.
Extasiada, fodo contigo
Ao invés de ganir diante do Nada.

Hilda Hilst, in: Os Cem Melhores Poemas Brasileiros do Século. Org. Italo Moriconi. Ed. Objetiva

sexta-feira, 28 de maio de 2010

É preciso ser muito feliz para viver numa cidade pequena, pois ela alarga a felicidade como alarga também a infelicidade. De modo que vou morando mesmo aqui no Rio. Você sabe, nas cidades grandes todos sabem que em cada apartamento existe uma espécie de solidariedade, pois em cada apartamento mora uma pessoa infeliz.

Clarice Lispector, in: Clarice, de Benjamin Moser / Entrevista a Leo Gilson Ribeiro, "Tentativa de Explicação". Ed. Cosac Naify
- Você tem paz, Clarice?
- Nem pai nem mãe.
- Eu disse "paz".
- Que estranho, pensei que tivesse dito "pais". Estava pensando em minha mãe alguns segundos antes. Pensei - mamãe - e então não ouvi mais nada.
Paz? Quem é que tem?

Clarice Lispector, in: Clarice, de Benjamin Moser / Entrevista a Marisa Raja Gabaglia, 1973. Ed. Cosac Naify
Eu não sabia tu
não sabias
fazer girar a vida
com seu montão de estrelas e oceano
entrando-nos em ti.

Ferreira Gullar, in: Fragmento de Poema Sujo / Os Cem Melhores Poemas Brasileiros do Século. Org. Italo Moriconi. Ed. Objetiva
Estamira
Ah, minha cidade suja
de muita dor em voz baixa

de vergonhas que a família abafa
em suas gavetas mais fundas
de vestidos desbotados
de camisas mal cerzidas
de tanta gente humilhada
comendo pouco

mas ainda assim bordando flores
suas toalhas de mesa
suas toalhas de centro

de mesa com jarros
- na tarde
durante a tarde
durante a vida -
cheio de flores
de papel crepom
já empoeiradas

minha cidade doída.

Ferreira Gullar, in: Fragmento de Poema Sujo / Os Cem Melhores Poemas Brasileiros do Século. Org. Italo Moriconi. Ed. Objetiva

Na boca

Manuel Rebollo
Sempre tristíssimas estas cantigas de carnaval
Paixão
Ciúme
Dor daquilo que não se pode dizer

Felizmente existe o álcool na vida
e nos três dias de carnaval éter de lança-perfume
Quem me dera ser como o rapaz desvairado!
O ano passado ele parava diante das mulheres bonitas
e gritava pedindo o esguicho de cloretilo:
- Na boca! Na boca!
Umas davam-lhe as costas com repugnância
Outras porém faziam-lhe a vontade.

Ainda existem mulheres bastante puras para fazer vontade aos viciados

Dorinha meu amor...
Se ela fosse bastante pura eu iria agora gritar-lhe como o outro:

[- Na boca! Na boca!

Manuel Bandeira, in: Os Cem Melhores Poemas Brasileiros do Século. Org. Italo Moriconi. Ed. Objetiva

quinta-feira, 27 de maio de 2010

Os Amantes do Círculo Polar
[...] O outro, outra vez. A voz do outro, a respiração do outro, a saudade do outro, o silêncio do outro. Por mais três dias então, cada um em uma ponta da cidade, arquitetaram fugas inverossímeis. O trânsito, a chuva, o calor, o sono, o cansaço. O medo, não. O medo não diziam. Deixavam-se recados truncados pelas máquinas, ao reconhecer a voz um do outro atendiam súbitos em pleno bip ou deixavam o telefone tocar e tocar sem atender, as vozes se perdendo nos primeiros graus de Aquário.

Sim, afligia muito querer e não ter. Ou não querer e ter. Ou não querer e não ter. Ou querer e ter. Ou qualquer outra enfim dessas combinações entre os quereres e os teres de cada um, afligia tanto. [...]

Caio Fernando Abreu, in: Ovelhas Negras. Ed. L&PM

Exercício

Ciência, amor, sabedoria,
tudo jaz muito longe, sempre
- imensamente fora do nosso alcance.

Desmancha-se o átomo,
domina-se a lágrima,
já se podem vencer abismos
- cai-se bem, porém, logo de bruços e de olhos fechados,
e é-se um pequeno segredo
sobre um grande segredo.

Tristes ainda seremos por muito tempo,
embora de uma nobre tristeza,
nós, os que o sol e a lua
todos os dias encontram
no espelho do silêncio refletidos,
neste longo exercício de alma.

Cecília Meireles, in: Inéditos, 1955 / Antologia Poética. Ed. Nova Fronteira
Acossado
não faz diferença
se você vem amanhã
ou não vem
desisti de esperar
por alguém
cuja ausência
me faz companhia.

Martha Medeiros, in: Poesia Reunida. Ed. L&PM
Akif Celebi

sente minha raiva canibal
te mordo te sinto te como
e como me fazes mal.

Martha Medeiros, in: Poesia Reunida. Ed. L&PM
[...] Gosto das perdas que me tiram tudo. Pra sentar em mim, olhar ao redor, e ficar. Até redescobrir em mim força e possibilidades de recomeçar. Tudo que vivi já me ampliou os vãos de dentro, e tanto, que me sinto tão menor em mim. Mas, com espaços para crescer. Silêncio. Tudo que quero dizer está na ponta dos dedos.

Cecília Braga

quarta-feira, 26 de maio de 2010


Perder-se é uma maneira de fazer novos caminhos e quebrar a rotina. Ninguém acha um atalho sem se perder antes.

Fabrício Carpinejar
Passava os dias ali, quieto,
no meio das coisas miúdas.
E me encantei.

Manoel de Barros

Poema esquisito

Eva Armisen
Dói-me a cabeça aos trinta e nove anos.
Não é hábito. É rarissimamente que ela dói.
Ninguém tem culpa.
Meu pai, minha mãe descansaram seus fardos,
não existe mais o modo
de eles terem seus olhos sobre mim.
Mãe, ô mãe, ô pai, meu pai. Onde estão escondidos?
É dentro de mim que eles estão.
Não fiz mausoléu pra eles, pus os dois no chão.
Nasceu lá, porque quis, um pé de saudade roxa,
que abunda nos cemitérios.
Quem plantou foi o vento, a água da chuva.
Quem vai matar é o sol.
Passou finados não fui lá, aniversário também não.
Pra que, se pra chorar qualquer lugar me cabe?
É de tanto lembrá-los que eu não vou.
Ôôôô pai
Ôôôô mãe
Dentro de mim eles respondem
tenazes e duros
porque o zelo do espírito é sem meiguices:
Ôôôôi fia.

Adélia Prado, in: Bagagem. Ed. Record

Os lugares comuns

Quando o homem que ia casar comigo
chegou a primeira vez na minha casa,
eu estava saindo do banheiro, devastada
de angelismo e carência. Mesmo assim,
ele me olhou com olhos admirados
e segurou minha mão mais que
um tempo normal a pessoas
acabando de se conhecer.
Nunca mencionou o fato.
Até hoje me ama com amor
de vagarezas, súbitos chegares.
Quando eu sei que ele vem,
eu fecho a porta para a grata supresa.
Vou abri-la como o fazem as noivas
e as amantes. Seu nome é:
Salvador do meu corpo.

Adélia Prado, in: Bagagem. Ed. Record

terça-feira, 25 de maio de 2010

Silêncio amoroso II

Kirmizi Kesit
Preciso do teu silêncio
cúmplice
sobre minhas falhas.
Não fale.
Um sopro, a menor vogal
pode me desamparar.
E se eu abrir a boca
minha alma vai rachar.

O silêncio, aprendo,
pode construir. É modo
denso/tenso
- de coexistir.
Calar, às vezes,
é fina forma de amar.

Affonso Romano de Sant'Anna

Se eu fosse apenas...

Margarida Delgado
Se eu fosse apenas uma rosa,
com que prazer me desfolhava,
já que a vida é tão dolorosa
e não te sei dizer mais nada!

Se eu fosse apenas água ou vento,
com que prazer me desfaria,
como em teu próprio pensamento
vais desfazendo a minha vida!

Perdoa-me causar-te a mágoa
desta humana, amarga demora!
- de ser menos breve do que a água,
mais durável que o vento e a rosa...

Cecília Meireles, in: Retrato Natural / Antologia Poética. Ed. Nova Fronteira

segunda-feira, 24 de maio de 2010

Pausa

no peito ouviu-se um estalo
o amor quebrara as asas
confundira o nome as chaves
errara casa endereço.

necessita o amor de tempo
de respirar novos ares
porque amor não é hábito
é qual um bulbo de flor
ao secar o cerne as folhas
carece ser replantado
esperar nova estação.

parte amor vai logo embora
e realiza teus sonhos
pois de cinzas não se vive
muito menos de migalhas
um amor precisa saltos
sem culpas chagas pesares
e sem arrependimentos.

Líria Porto

Reencontro

quisera rever-te
olhar-te nos olhos
quieta demoradamente
depois te abraçar
sem uma palavra
deixar que soubesses
o quanto te prezo
e nada te peço
além deste momento.

Líria Porto

domingo, 23 de maio de 2010

Nós

Alone Gut
Mal sabe ele que ela é sempre só,
Mas já não sabe mais ser só sem ele.

Raiça Bomfim
Serenade for the Doll
Devo parecer com quem amo. Postulo (é isso que me faz gozar) uma conformidade de essência entre o outro e eu. Imagem, imitação; faço o máximo de coisas possíveis como o outro. Quero ser o outro, quero que ele seja eu, como se estivéssemos unidos, fechados no mesmo invólucro de pele [...]

Roland Barthes, in: Fragmentos de Um Discurso Amoroso. Ed. Francisco Alves

Amor violeta

O amor me fere é debaixo do braço,
de um vão entre as costelas.
Atinge o meu coração é por esta via inclinada.
Eu ponho o amor no pilão com cinza
e grão de roxo e soco. Macero ele,
faço dele cataplasma
e ponho sobre a ferida.

Adélia Prado, in: Bagagem. Ed. Record

Estilhaço

Alone Gut
não me procure mais
não relembre
cada um sofre pra seu
lado.

Cacaso, in: Beijo na Boca. Ed. 7 Letras

O xis do problema

Alone Gut
é muito triste que nossas intenções sejam
sempre contrariadas
você me compreende, meu amor?

Cacaso, in: Beijo na Boca. Ed. 7 Letras

Superação


Depois de cada momento de fraqueza, meu coração prepara, em silêncio, uma nova fornada de coragem.

Às vezes cansa, sim, mas combinamos não desistir da força que verdadeiramente nos move.

Ana Jácomo

La media vuelta

Graça Loureiro

Sorriu. Deixou que ele abrisse o vinho. E quando pôs o velho disco na vitrola, sabia o que fazia. Voltara a caminhar beirando abismos. Cairia. Mas, dessa vez, conhecia os caminhos de voltar.

Márcia Maia

sábado, 22 de maio de 2010

Só estou bem resolvida com o amor, quando não amo.

Nonnetta
Se possível fosse, me amaria desmedidamente. Mas o pouco nunca será o suficiente, sobra espaço e incomoda, quase enlouquece. Não sei se há um ser nessa loucura humana que me complete. Até pouco tempo meu coração se fez intenso e insubstituível. Que importa a solidão se quando estou com ela não sou mais solidão apenas, sou o que me resta e metade do mundo de anseios que levo no peito? Talvez eu aprenda a suprir essa vontade louca de tê–lo, mas, amo o que de ti desconheço e assim faço amor com o que escrevo a cada verso que te entrego. Palavras minhas, sentidos seus. Sobrevivo até aqui, cheguei ao limite da minha espera desconhecida. E quanto mais espero, mais te deixo. Talvez amar comece no não ir, não estar e não ser. Se não vou, paraliso. Se não estou, me anulo. Se não sou, te amo e me completo tão suavemente que nem percebo.

Priscila Rôde

Escuro


Não me peça pra largar dessa ilusão.
Não carregue essa canção.
Não me prove que isso tudo é uma mentira.
Ou terei que confessar-te num cansaço de outras vidas
Que meu pranto é de verdade,
Mas meu riso, não.

Raiça Bomfim

Poema

Anne Aubrey
Não sei nada
Não compreendo nada
E não irei sem nada ter aprendido
Senão as lições da minha própria angústia.
No entanto
Desta lita de punhais que se travou dentro de mim
Continuo a guardar lençóis manchados
Até o dia antes do fim de tudo
Em que hei de expor ao sol os mapas desta viagem

Renata Pallottini

Aprendizado

Sundari Carmody
Do mesmo modo de que abriste à alegria
abra-te agora ao sofrimento
que é fruto dela
e seu avesso ardente.

Do mesmo modo
que da alegria foste
ao fundo
e que perdeste nela
e te achaste
nessa perda
deixa que a dor se exerça agora
sem mentiras
nem desculpas
e em tua carne vaporize
toda ilusão

que a vida só consome
o que a alimenta.

Ferreira Gullar, in: Poesia & Vida: anos 70. Ed. UFJF

O quarto

Aqui ficará a mesa,
e nessa gaveta
os novos poemas que escreverei;
aqui a vitrola
e os discos;
ali os livros,
a cama, a cadeira, a roupa,
a máquina de escrever.
Aqui (por quanto tempo?)
passará minha vida.

Renato Rezende, in: Aura

quinta-feira, 20 de maio de 2010

Tempo

Um dia nos lembraremos deste tempo se lembranças
houver
que estivemos nesta sala que algumas vezes nos
tocamos
éramos mais felizes mais moços

um dia nos levaremos deste tempo se levar
houver.

Cacaso, in: Poesia & Vida: anos 70. Ed. UFJF

quarta-feira, 19 de maio de 2010

Ego ferido

Akif Celebi
Senti ciúmes sim,
ao ver teus olhos,
que com a doçura
que tão bem conheço,
outros olhos devoravam
provocando espamos,
dos quais não mais padeço.

Senti ciúmes dos teus braços
perdido em outros abraços
afagando o corpo que foi meu.

Dos sorrisos que tive,
dos sussurros ao pé-do-ouvido,
das gargalhadas sonoras
contando casos teus.

Senti ciúmes, não nego.
Mas sei também que já não te quero,
foi apenas no ego, um pequeno arranhão.

Asta Vonzodas

Decadência

Olhares
Dedos
que caminham vagos
em relevos
agora falsos,
prazeres solitários.
Triste cena
a solidao.

Asta Vonzodas

terça-feira, 18 de maio de 2010

Sem palavras

DeviantArt_Scarabuss
A vida inteira busquei
explicações e deciframentos:
encontrei silêncio e segredo,
às vezes o conforto de um ombro,
outras vezes
dor.

No último lapso
de um tempo sem limites
- embora a gente o queira compor
em fragmentos -,
abriram-se as águas
e entrei onde sempre estivera.
Tudo compreendido
e absolvido,
absorta eu me tornei
luz sem sombras:
assombro.

Lya Luft, in: O Silêncio dos Amantes. Ed. Record

segunda-feira, 17 de maio de 2010

Clarice Lispector
É muito difícil para mim falar de literatura. Em verdade, não sei explicar minha criação literária. Admiro bastante os críticos lúcidos, capazes de interpretar de maneira extraordinária a ficção, mas para mim a coisa é diferente. Quando escrevo, tudo parte de uma sensação inicial. Nem eu sei como esta sensação irá desenvolver-se nem se terá estrutura suficiente para transformar-se numa obra digna de ser publicada. Eu crio de modo intuitivo, eis tudo.

Clarice Lispector, in: Fragmento extraído da Revista Cult - Edição 1997
DeviantArt_Scarabuss
Ah, mas para se chegar à mudez, que grande esforço da voz. Minha voz é o modo como vou buscar a realidade; a realidade, antes da minha linguagem, existia como um pensamento que não se pensa, mas por fatalidade fui e sou impelida a precisar saber o que o pensamento pensa. A realidade antecede a voz que a procura, mas como a terra antecede a árvore, mas como o mundo antecede o homem, mas como o mar antecede a visão do mar, a vida antecede amor, a matéria do corpo antecede o corpo, e por sua vez a linguagem um dia terá antecedido a posse do silêncio.

Eu tenho à medida que designo - e este é o esplendor de se ter uma linguagem. Mas eu tenho muito mais à medida que não consigo designar. A realidade é a matéria-prima, a linguagem é o modo como vou buscá-la - e como não acho. Mas é do buscar e não achar que nasce o que eu não conhecia, e que instantaneamente reconheço. A linguagem é meu esforço humano. Por destino volto com as mãos vazias. Mas - volto com o indizível. O indizível só me poderá ser dado através do fracasso de minha linguagem. Só quando falha a construção, é que obtenho o que ela não conseguiu.

Clarice Lispector, in: Água Viva. Ed. Círculo do Livro

Daqui a vinte e cinco anos

Perguntaram-me uma vez se eu saberia calcular o Brasil daqui a vinte e cinco anos. Nem daqui a vinte e cinco minutos, quanto mais daqui a vinte e cinco anos. Mas a impressão-desejo é que num futuro não muito remoto talvez compreendamos que os movimentos caóticos atuais já eram os primeiros passos afinando-se e orquestrando-se para uma situação econômica mais digna de um homem, de uma mulher, de uma criança. E isso porque o povo já tem dado mostras de ter maior maturidade política do que a grande maioria dos políticos, e é quem um dia terminará liderando os líderes. Daqui a vinte e cinco anos o povo terá falado muito mais.

Mas, se não sei prever, posso pelo menos desejar. Posso intensamente desejar que o problema mais urgente se resolva: o da fome. Muitíssimo mais depressa, porém, do que em vinte e cinco anos, porque não há mais tempo de esperar: milhares de homens, mulheres e crianças são verdadeiros moribundos ambulantes que tecnicamente deviam estar internados em hospitais para subnutridos. Tal é a miséria, que se justificaria ser decretado estado de prontidão, como diante de calamidade pública. Só que é pior: a fome é a nossa endemia, já está fazendo parte orgânica do corpo e da alma. E, na maioria das vezes, quando se descrevem as características físicas, morais e mentais de um brasileiro, não se nota que na verdade se estão descrevendo os sintomas físicos, morais e mentais da fome. Os líderes que tiverem como meta a solução econômica do problema da comida serão tão abençoados por nós como, em comparação, o mundo abençoará os que descobrirem a cura do câncer.

Clarice Lispector, in: A Descoberta do Mundo / Crônica de 16/09/1967. Ed. Rocco
Quem me acompanha que me acompanhe: a caminhada é longa, é sofrida mas é vivida. Porque agora te falo a sério: não estou brincando com palavras. Encarno-me nas frases voluptuosas e ininteligíveis que se enovelam para além das palavras. E um silêncio se evola sutil do entrechoque das frases.

Então escrever é o modo de quem tem a palavra como isca: a palavra pescando o que não é palavra. Quando essa não palavra - a entrelinha - morde a isca, alguma coisa se escreveu. Uma vez que se pescou a entrelinha, poder-se-ia com alívio jogar a palavra fora. Mas aí cessa a analogia: a não-palavra, ao morder a isca, incorporou-a. O que salva então é escrever distraidamente.

Não quero ter a terrível limitação de quem vive apenas do que é passível de fazer sentido. Eu não: quero é uma verdade inventada.

O que te direi? Te direi os instantes.

Clarice Lispector, in: Água Viva. Ed. Círculo do Livro

domingo, 16 de maio de 2010

Intimista

Akif Celebi
Porque o caminho da tarde é sereno: desliza úmido. E afoga meus valores, meus preceitos, minhas vontades: a tarde se torna viva para o nada e para o nada ela dança, dança feito bailarina em chamas. Não penso mais. Não hoje… Hoje eu deixo que ela tome minha mão – amante querida – e me leve aos escorregões do desejo que se impõe. Que me convida e me derruba. Como se fosse desejo de. Mas não é. É mais fluido que isso. É mais forte que isso. É abertamente delicado no íntimo das coisas que respiram. A tarde respira quente, sopra seu inferno aqui. Aqui, ali, onde for: a tarde tem nome feminino mas não tem gênero. É ele e ela: é nós. A tarde tem um nome que desata os nós, porque seu nome rasga. Nome que se assemelha ao meu por causa da letra R que perfura a coisa inteira. Desintegra. Desfaz. Faz tudo em poros atravessáveis. Hoje, da tarde de que sou feita, sou atravessada por inverdades múltiplas que vem contar seus planos. Então, agulha fina me tece novamente. Porque aos poucos a noite chega. Exigente. Também tem nome feminino. Também é líquida. Mas vem para silenciar, toda intimista. A noite – tantos temem! Mas é muito, muito mais gentil. É linha reta que estanca a ansiedade.

Carla Jaia

Receitas anti-tédio carnavalesco

Akif Celebi
Se você quer se matar porque o país está podre, e você quase, pegue uma pedrinha de cânfora e uma lata de caviar e coloque ao lado seu revólver. Em seguida, coloque a pedrinha de cânfora debaixo da língua e olhe fixamente para a latinha de caviar. Só então engatilhe o revólver. (É bom partir com olorosas e elegantes lembranças.

Atenção: não dê um tiro na boca porque a pedrinha de cânfora se estilhaça.)

Hilda Hilst, in: Cascos e Carícias. Ed. Nankin

Entenda

Monislawa
Você quer saber quando, eu digo, de modo permanente e peço desculpas pela inexatidão das palavras. Não as minhas, ou as que lhe digo (que palavras pertencem a ninguém), mas na armadilha escondidas em todas elas. Todas elas são traiçoeiras e escondem significados. Matam intensidades fechando em copas sentimentos profundos. Odeio as palavras. Não vivo sem elas.

Sei que peço que as diga, que as repita, mas é culpa do silêncio dos nossos corpos que não conversaram nunca mais.

Você exige saber: quando. E eu urro a plenitude da palavra sempre e você pensa que sou evasiva quando, ao contrário, estou definitiva como um ponto final.

Você metafora dizendo que o sempre e o nunca se encontram na mesma impossibilidade. E então, vencida pela sua razão, me calo.

Claudia Camara

sábado, 15 de maio de 2010

Ap.

Serenade For the Dool
na minha casa você pode flagrar alguém
se escondendo da rotina num quarto escuro
ou batendo a cinza do cigarro na janela
enquanto espia as roupas dançando em silêncio
no varal da área
às três da madrugada
você pode flagrar alguém preocupado
segurando uma caneca com vinho vagabundo
dormindo fora de hora
pensando demais na vida
e no tédio que é
essa falta de paixão.

Bruna Beber

Estigma

do amor inventado
arranca a pele
e sopra

- dói

mas se refaz

em amor de verdade
refeito em pele
nova

- viva

ou

- cicatriza

a solidão em paz.

Nydia Bonetti

sexta-feira, 14 de maio de 2010

Graça Loureiro
O tempo soluça no relógio
as rugas horizontais
que não tatuam meu rosto.
Ponteiros
agulhas invisíveis
injetam o ritmo
que infecta o dia.

Angela de Campos

Canção da ilha com farol

A vida era um mar certo demais
em torno desta pedra:
minha solidão inventava um tempo
além da divisão em horas e cansaços.

Mas tua mão inesperada
reacendeu o farol dos desassombros,
e nós, frutos da paixão em altos ramos,
agora somos o coração cercado
que estremece.

(Quando se abriram represas e comportas
das nossas vidas contidas,
nem vento ou lua nem os deuses
poderiam deter essas marés.)

Lya Luft, in: Secreta Mirada. Ed. Mandarim