quinta-feira, 26 de setembro de 2024
Ler e lar
terça-feira, 2 de julho de 2024
my baby just cares of me
dança comigo?
foi o seu convite
a dez mil
quilômetros de mim
sim
Amanda Ribeiro, in: Máquina de costurar concreto. Ed. Peirópolis
Palavra de mulher preta
Palavra de Mulher Preta
Mulher preta de palavra
Preta de palavra
Palavra de Preta
Lava alma preta
Palavra sagrada de mulher
Se a minha alma é preta
E a minha sociedade não me aceita
Minha palavra sagrada sangra
Palavras que nos irmanam
Separam o joio do trigo
… o barro do rio que decanta
… encantam os versos da preta
… palavras que declama
Clama, canta, encanta
De-cantaremos o preconceito
Até que ele reme para o longe
Fique sem eira nem beira…
Vá para o ontem…
Palavra de mulher preta
Mulher preta de palavra
Preta de Palavra
Palavra de Preta
Elizandra Souza, in: As 29 poetas hoje. Ed. Companhia das Letras
domingo, 11 de fevereiro de 2024
as mulheres perdidas
eu preciso saber os nomes
daquelas mulheres com quem eu teria caminhado
alegremente como fazem os homens em grupo
balançando os braços, e daquelas mulheres
suadas com quem eu teria me juntado
depois de uma partida difícil para jogar conversa fora.
do que teríamos chamado umas às outras, rindo,
brincando na nossa cerveja? onde está minha gangue,
meu time, minhas irmãs extraviadas?
todas as mulheres que poderiam ter me conhecido,
onde nesse mundo estão seus nomes?
(s.d.)
Lucille Clifton, in: Você lembrará seus nomes: antologia de poetas negras dos Estados Unidos do século XX. Ed. Bazar do Tempo
quarta-feira, 31 de janeiro de 2024
Em trânsito
1.
trilhos trilhos trilhos
sou um homem a caminho do trabalho
na plataforma da estação
o vento sopra nas minhas costas
estampa a paisagem
diante dos meus olhos:
céu
postes
pontas
dos dois lados da ponte
homens e automóveis
tentam a travessia
2.
trilhos
trilhos
trilhos
na plataforma da estação
o vento
dobra esquinas nas minhas costas
o rio
é uma língua de água negra
dentro
dos meus olhos
por onde quer que eles se metam
veem antenas
guindastes
peças
enferrujadas
à espera
de uma improvável reposição
3.
a caminho do trabalho
sou um homem entre outros
na plataforma
— osasco
ou jurubatuba?
osasco ou jurubatuba? —
alguém me pergunta
enquanto o expresso aponta
vertiginosamente
na estação
não importa
vou tomar esse trem
pela última
primeira
vez
ainda não fiz cinquenta anos
dá tempo de mudar alguma coisa
Alberto Martins, in: Em trânsito. Ed. Companhia das Letras
quinta-feira, 16 de novembro de 2023
.
(A EPOPEIA DO AMOR COMEÇA NA CAMA COM OS LENÇÓIS
DESARRUMADOS FEITO UM CAMPO DE BATALHA)
é ali que eu começo a nascer para a madrugada & suas
vertigens onde você meu amor se enrosca em
meu coração paranoico de veludo verde & as delícias de continentes
alaranjados dormem em seu rosto de pérolas turvas oh tambores do
[amor
sem parar rumo às tempestades PLANETÁRIAS & suas
cachoeiras tristes & pesadas como lágrimas
gosto de gostar & a TV da alma amanhece bêbada & tenta
dizer alguma coisa
Roberto Piva, in: Morda meu coração na esquina. Ed.
Companhia das Letras
quinta-feira, 7 de setembro de 2023
24:04
Anna Cunha
ando assim
a buscar os pássaros em meio a tanto barulho
a chorar pinturas de Boldini
a lembrar-me de ti.
ando assim
ao vento deixando seu abano soar suave
a rir de minhas saias
a fazer-me dançar os pés
ando assim
sincera e sonora
sentindo o ventre pulsar
embalado a poesias
agarrado pelos dedos
silenciado às pinceladas
escrevo-te assim
subitamente
deixando com que as palavras me tomem
descompassadas
a transbordar
escrevo-te assim
como quem corta o espelho
com a unha do verso.
Lorena Martins, in: Água para viagem. Ed. 7Letras
quarta-feira, 9 de agosto de 2023
XIII
e é preciso correr é preciso ligar é preciso sorrir é preciso suor
é preciso ser livre é preciso ser fácil é preciso a roda o fogo-de-artifício
é preciso o demónio ainda corpulento
é preciso a roda sob o cavalinho
é preciso o revólver de um só tiro na boca
é preciso o amor de repente de graça
é preciso a relva de bichos ignotos
e o lago é preciso digam que é preciso
é preciso comprar movimentar comércio
é preciso ter feira nas vértebras todas
é preciso o fato é preciso a vida
da mulher cadáver até de manhã
é preciso um risco na boca do pobre
para averiguar de como é que eles entram
é preciso a máquina a quatro mil vóltios
é preciso a ponte rolante no espaço
é preciso o porco é preciso a valsa
o estrídulo o roxo o palavrão de costas
é preciso uma vista para ver sem perfume
e outra menos vista para olhar em silêncio
é preciso o logro a infância depressa
o peso de um homem é demais aqui
é preciso a faca é preciso o touro
é preciso o miúdo despenhado no túnel
é preciso forças para a hemoptise
é preciso a mosca um por cento doméstica
é preciso o braço coberto de espuma
a luz o grito o grande olho gelado
E é preciso gente para a debandada
é preciso o raio a cabeça o trovão
a rua a memória a panóplia das árvores
é preciso a chuva para correres ainda
é preciso ainda que caias de borco
na cama no choro no rôgo na treva
é precisa a treva para ficar um verme
roendo cidades de trapo sem pernas
Mário Cesariny, in: Poesia. Ed. Assírio &
Alvim
quarta-feira, 26 de julho de 2023
acordo perfeito
já faz tempo que quero saber
terça-feira, 30 de maio de 2023
Insônia
A José Carlos Audíface de Brito
Quero escrever um poema irritado.
Quero vingar meu sono dividido
(busco palavras que interroguem essa alquimia
do poema, que vire a noite em fogo vário
e a lua em pegada escondida atrás do muro
— vagaroso desmoronar de extinto voo).
Quero um poema ainda não pensado,
que inquiete as marés de silêncio da palavra
ainda não escrita nem pronunciada,
que vergue o ferruginoso canto do oceano
e reviva a ruína que são as poças d’água.
Quero um poema para vingar minha insônia.
Rio de Janeiro, março de 1950
Olga Savary, in: Coração
subterrâneo. Ed. Todavia