domingo, 28 de novembro de 2010

é tempo de meio silêncio...

Vou aqui, mas prometo 'tentar' voltar logo!

Meus queridos,

O Reino ficará em silêncio por um tempo... Pode ser por uma semana, um mês ou por alguns dias. Muitas coisas têm acontecido e me falta tempo para estar sempre aqui, acompanhar todos os blogs, responder a todos...

Que vocês estejam em paz, cheios de luz e amor! E continuem escrevendo, me visitando - afinal há muitas postagens por cá :)

Sigo com imensas saudades desde já.

Um abraço carinhoso em cada um e um beijo de Poesia.

Felicidade Clandestina

sábado, 27 de novembro de 2010

Reflexão nº1

[...]
Ainda não estamos habituados com o mundo.
Nascer é muito comprido.

Murilo Mendes

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

curto e consequente

As Duas Faces da Felicidade
Foi num domingo, dia modorrento e morno, como todos os domingos. Foi ao acaso, num zoológico, do outro lado do lago: ele, a mulher e os filhos. Felizes e lindos. E eu, deste lado, irremediavelmente sozinha, agora e para sempre. Sem volta.

Deixei que se fossem. Nada no mundo poderia perturbar a paisagem bonita, o canto das aves, o ronronar preguiçoso das feras. Os calmos anos de amor construído.

Amores e acidentes de percurso acontecem. Tempestades também, segundo minha avó.

"O que os olhos não veem, o coração não sente".

Mariza Lourenço

quando, desativado tempo

O meio do caminho, ainda.

Perdera a conta das curvas e das distâncias. A de partir e a de chegar. O meio do caminho era o meio de tudo. Da serra e da vida. Tanto para chegar e o mesmo tanto para voltar. Parou o carro e saltou. Nem por isso mais perto do céu. Talvez chovesse e, se chovesse, demoraria ainda mais.

Um dia, havia imaginado como seria passar o tempo sem ter que contar com ele. Agora, que o tinha todo, o que fazer com ele?

E de tudo restaram três malas, e, mesmo assim, uma era pequena, de mão.

Tantos anos de uma vida postos em duas malas e meia.

Do alto da serra via os caminhos das águas. Doces e salgadas. O rio sinuoso que, por dentre o mato, buscava o infinito. E perdia-se. O sal das lágrimas apagava o mel dos sorrisos. O rio não alcançava o infinito, pois deixava de ser rio, e chegava mar ao fim de tudo.

Deixara de ser ele.

E quando?

Talvez que o meio da serra lhe facilitasse a visão de todas as perplexidades e perspectivas. Do dia em que achou a vida um enorme medo. Uma impossibilidade. Um balançar de pêndulo marcando tempo nenhum. Não fora nem viera na imperfeição do mais que perfeito. Estranho o tempo, o mais que perfeito. Tão imperfeito. Quando, condição. Quando, passado. Quando, presente. Quando, futuro.

Imperativo quando. Interativas vidas. Desativado tempo o tempo quando.

Duas malas e meia. Pouco para guardar o muito, se o pouco é tudo. Muito para guardar o pouco, quando o que importa é quanto. O laço de uma trança. A fita de uma camisola. As contas de um terço. Um terço de tantas contas, dias de folhinhas.

Tempo quando.

Se abrisse as malas, no meio da serra, no meio da vida, o vento faria o favor. Espalharia tudo na direção do mar, do rio, do caminho das pedras.

Solidão de náufrago. Solidão de sobrevivente. Solidão de quando.

Refazer o caminho, refazer a história, reviver o quando. Abrir as malas e a ferida.

Começava a escurecer e os faróis na serra confundiam-se com as estrelas. Sua vida fora apenas um ensaio e agora, no meio do caminho, ensaiava o ir ou voltar de e para idênticos destinos. Um caminho para o nada. [...]

Ro Druhens

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

persuasão

Guermante
as palavras me amanhecem
estrangeiras

sobre a cama escondidas
nos lençóis

e me amarram e me vendam
e me amordaçam

traiçoeiras

para que eu nunca mais ouse
escrever versos a ti.

Márcia Maia

terça-feira, 23 de novembro de 2010

Como é que se escreve felicidade?

Guermante
- Eu estava tão feliz, Érica - diz Luísa ao telefone.
- E vai continuar feliz, porque está caminhando na direção de você mesma.
- Você não entende, amiga. Eu tenho raros dias felizes, contínuos, como foram os últimos. Até...
- E achas que não mereces ser feliz, Luísa? - aumentando o tom da voz.
- Todos merecem, suponho.
- Aproveite os novos ares, as pessoas especiais, fique apenas com o que for bom. Seja feliz!
- Claro. Prozac ajuda?
- Luísa! - o nome soou como um supetão.
- Vou alí chamar o "Trem da Alegria". Um beijo, Érica.

Vanessa Souza Moraes, in: Cadernos de Luísa

Casa:

Nonnetta
1. conjunto de paredes dispostas em forma de coração; 2. lugar de onde se sai, mas não se deixa; 3. o outro nome de família; 4. almofada macia usada pelos guerreiros após grandes batalhas; 5. trampolim para a felicidade; 6. objeto de desejo dos recém-unidos; 7. segundo a ciência moderna, o centro dos sistemas solares; 8. local onde se está melhor protegido das tempestades; 9. sobrenome da Paz; 10. caixa de segredos com lacre inviolável; 11. coletivo de cumplicidade; 12. habitat natural do bicho comumente chamado de "amigo"; 13. objetos que, quando em cima de outros, chama-se de "edifício"; 14. baía de águas calmas; 15. apêndice dos quintais; 16. nome popular de doce chamado Lar; 17. tataraneta das cavernas; 18. na geografia, o lugar do mundo onde o dia amanhece com cheiro de café; 19. agrupamento de tijolos unidos pelo cimento da marca Confiança; 20. motivo da existência das passagens de ida-e-volta. (Ex.: "Minha casa, meu amor, não tem paredes, nem janelas, nem telhado. Minha casa tem olhos, cabelos, arrepio e o maior de todos os sorrisos. Minha casa é você.")

André Gonçalves, in: Coisas de Amor Largadas na Noite. Ed. Ideias Inc.

Abraço:

Alone Gut
1. habitat natural do carinho; 2. base alimentar de animal popularmente chamado de amor; 3. verdadeiro objetivo do gol; 4. porto seguro; 5. prozac natural; 6. beijo de umbigos; 7. transfusão de afeto; 8. ato de envelopar quem se ama; 9. Espantalho de saudades; 10. felicidade cheia de braços; 11. abrigo anti-aéreo; 12. sistema de calefação ecologicamente correto; 13. plano B de quem dá adeus; 14. apelido de um senhor de nome amplexo; 15. AR 15 do tamanduá; 16. aquilo que Gil manda para Terezinha, para o Chacrinha e para a torcida do Flamengo; 17. antônimo de longe. (Ex.: “Vem, moça de abril, e me dá um abraço com seu sorriso e me leva pra bem longe da saudade de quem um dia ainda vamos ser.”)

André Gonçalves, in: Coisas de Amor Largadas na Noite. Ed. Ideias Inc.

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

O bordador

Chega um momento em que a gente se dá conta de que, às vezes, para sermos verdadeiros com nós mesmos, precisamos ter o desprendimento para abençoar as tentativas sem êxito, agradecer pelo o que cada uma nos ensinou, e seguir. De que, às vezes, para se reconstruir, é preciso demolir construções que, por mais atraentes que sejam, não são coerentes com a ideia da nossa vida. A gente se dá conta do quanto somos protegidos quando estamos em harmonia com o nosso coração. De que o nosso coração é essencialmente amoroso, o bordador capaz de tecer as belezas que se manifestam no território das formas. De que, sabedores ou não, é ele que tem as chaves para as portas que dão acesso aos jardins de Deus. E, vez ou outra, quando em plena comunhão criativa, entra lá, pega uma muda de planta e traz para fazê-la florescer no canteiro do mundo.

Ana Jácomo

domingo, 21 de novembro de 2010

"Nunca mais quero me apaixonar, tenho horror disso porque inquieta, desarruma tudo", dizia alguém entrando nas garras de mais uma paixão - e todos ao seu redor sabíamos disso.

O amor nos tira o sono, nos tira do sério, tira o tapete de baixo dos nossos pés, faz com que nos defrontemos com medos e fraquezas aparentemente superados, mas também com insuspeitada audácia e generosidade. E como habitualmente tem um fim - que é dor - complica a vida. Por outro lado, é um maravilhoso ladrão da nossa arrogância.

Estar bem instalado pode por algum tempo nos encher de uma falsa plenitude: nada nos atinge. Mas também - nada nos encanta realmente. Começamos a bocejar - discretamente porque somos educados - desse tédio conjugal em relação à vida que nos cerca, e a vida que dentro de nós parece tão acomodada.

Mas alguém pode aparecer: alguém, ou algo. Um amor, um projeto, um sonho nos desperta, e nos acaricia, e nos seduz.

Podemos ter medo e simplesmente dizer não: puxar o lençol sobre a cabeça e continuar nesse entressono. Mas podemos espiar, e nos deixar encantar: seremos, para sempre, responsáveis por essa decisão.

Lya Luft, in: Secreta Mirada. Ed. Mandarim

Canção da alheia primavera

Talvez se agite um braço me chamando:
mas tão longe, nem move
as névoas dessa ausência.
Quando achei que era tempo, não era:
quando apanhei a estrela, passava
um vaga-lume qualquer entre meus dedos.

Talvez desça um navio me procurando
mas não quero viagens: sou
um pálido coral numa água morna,
e vagamente aflora um movimento
- mas pode ser a sombra do meu sono.

Talvez haja um amor me inventando,
mas tão vago, nem roça
as beiras da minha praia: concha breve
e encolhida, não vou desenrolar
o meu braço. Quando achei
que era tempo, não era:
talvez este ondular entre meus ramos
venha de alguma alheia primavera.

Lya Luft, in: Secreta Mirada. Ed. Mandarim

.

Serenade for the doll 

a gente é só amigo
e de repente
eu bem que podia
ser essa mosca
perto do teu umbigo.

Alice Ruiz, in: Paixão xama paixão. Edição da autora

sábado, 20 de novembro de 2010

A estrela da tarde

Agatha Katzensprung
A estrela da tarde está
madura
e sem nenhum perfume

A estrela da tarde é
infecunda
e altíssima

Depois da estrela da tarde
só há:
o silêncio.

Orides Fontela

brevidade

as palavras se perdem
na pressa dos telefones sem fio

a vida tricota a vida em fios de
não-ditas palavras

e a morte esgarça esses fios.

Márcia Maia

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Eva Armisen
Apesar dos trinta anos [...] tinha ainda momentos como aquele em que desejava correr em vez de caminhar, dar passos de dança de um lado a outro da calçada, fazer rodar um arco, jogar alguma coisa para o ar e apanhá-la de novo, ou então ficar parada e rindo de... nada... nada, simplesmente rindo.

Que é que podemos fazer se temos trinta anos e, ao dobrar a esquina de nossa própria rua, somos invadidos subitamente por uma sensação de felicidade - absoluta felicidade! - como se tivéssemos de repente engolido um rútilo pedaço deste sol da tardinha e ele estivesse a arder em nosso peito, a despedir um chuveiro de minúsculas faíscas em todas as partículas do nosso ser, até nos dedos das mãos e dos pés?...
Oh! Não haverá um meio de exprimir essa sensação sem falar em "embriaguez e desordem"? Como a civilização é idiota! De que nos serve ter um corpo se somos obrigados a guardá-lo fechado um estojo como um violino raro, muito raro? [...]

Katherine Mansfield, in: Felicidade. Ed. Nova Fronteira

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Fala

Guermante
Tudo
será difícil de dizer:
a palavra real
nunca é suave.

Tudo será duro:
luz impiedosa
excessiva vivência
consciência demais do ser.

Tudo será
capaz de ferir. Será.
agressivamente real.
Tão real que nos despedaça.

Não há piedade nos signos
e nem no amor: o ser
é excessivamente lúcido
e a palavra é densa e nos fere.

(Toda palavra é crueldade).

Orides Fontela

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Muito além do calendário


O que foi não é mais que aquarela desbotada na parede da alma. Vez em quando encanta. Vez em quando dói. Na maior parte do tempo, entretanto, é um imenso e etéreo quase nada.

Márcia Maia

domingo, 14 de novembro de 2010

Amar,

então, é a capacidade de estar no lugar do outro, de saber como ele pensa, quais são os seus desejos. Só posso colocar em primeiro lugar as emoções do parceiro se sei quais elas são. Se amo sem conhecer, não estou amando outra pessoa, nem querendo satisfazer os seus desejos.

Estou querendo satisfazer os meus através dela, que uso como suporte das minhas fantasias. Amando, quero a transparência, quero ver através.

Mariana Colasanti, in: E Por Falar em Amor. Ed. Salamandra

sábado, 13 de novembro de 2010

Lara Jade

Escolher a própria máscara é o primeiro gesto voluntário humano. E solitário.

Clarice Lispector, in: Clarice - Uma Vida Que se Conta, por Nádia Battella Gotlib. Ed. Ática

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

capítulo 33

A geladeira estalou. Notei uma cor diferente na janela. Mais clara. Tinha amanhecido na mesa da cozinha, escrevendo a carta. Era a carta mais longa da minha vida. A que tinha demorado mais fazendo, pelo menos. É que a cada coisa que eu escrevia, ficava imaginando. Era bom imaginar. Pouca coisa dava errado quando eu imaginava. [...]
Fernando Bonassi, in: O Amor é Uma Dor Feliz. Ed. Moderna

capítulo 32 - primeira parte

São Paulo, hoje.

Rosana,

Puxa! Puxa!! Puxa!!! Tinha tantas coisas (!) que eu (!!) queria fazer com você (!!!).
Exemplos: andar na rua morrendo de rir. Chorar de fininho. Tomar café expresso quatro e meia da tarde de domingo. Reler uns pedaços de uns livros que já sei que são ótimos. Descobrir ótimos novos livros. Comer lentilha com bastante linguiça na primeira hora do primeiro dia do ano-novo. Aprender a usar palitinho no lugar do garfo. Andar de ônibus, esquecidos, no último banco. Tomar injeção. Perguntar as horas sem estar muito aflito. Escolher as cores das coisas. Escrever os nomes na porta do banheiro. Tomar sorvete no frio. Tomar chá no calor. Tomar uma garrafa de vinho. Decidir de repente qualquer coisa e fazer antes de "arregar". Tirar cravos. Espremer espinhas. Ficar bêbado de cair. Cair e levantar gargalhando. Comprar roupa. Lavar quintal. Fazer pizza. Esquecer a pizza no forno. Comer pizza queimada. Ver você desfilar de sapato novo. Ficar dentro do carro no lava-rápido, vendo o temporal de mentira. Ver você desfilar só de sapato. Ver você com todas as suas roupas. Decorar as que você mais gosta. Fazer palhaçada pra câmera de circuito interno de banco. Encontrar sua calcinha esquecida em algum lugar, tipo banheiro ou pé de cama, enroladinha nela mesma, fazendo um oito de pano. Acordar. Dormir. Ficar na fila. Tomar banho. Tomar Cebion. Jogar pega-vareta. Ficar pelado. Passar fim de ano, com contagem regressiva na televisão e rojão explodindo lá fora. Lavar o rosto numa bica. Ficar. Colocar água no filtro. Fazer xixi no bosque enquanto o outro vigia. Ver o que é igual. Ver o que é diferente. Segurar a cabeça do outro na hora do vômito. Pegar na mão e apertar e o outro apertar de volta. Deixar recado comprido na secretária eletrônica. Ver o outro onde o outro não consegue se ver. Ver o que o outro quer que a gente veja. Fazer uma lista de quem o outro parece. Contar as pintas. Pentear os pelinhos. Ir pra praia. Deixar a água salgada bater no corpo, indo e vindo, sendo areia, sendo pedra, sendo mato. Comer negócios estranhos crus num restaurante japonês. Comprar remédio sexta à noite. Pedir. Ganhar. Levar. Levar uma, das boas. Estalar os dedos. Pôr a coluna no lugar. Mostrar uma coisa. Duvidar, mas porque se quer saber mais e mais. Trocar lâmpada. Consertar tomada. Tomar choque. Dar banho.

[...]

Fernando Bonassi, in: O Amor é Uma Dor Feliz. Ed. Moderna

capítulo 32 - segunda parte

Saber a história de cada cicatriz, de cada pelinha soltando, de cada unha quebrada. Arrotar sem querer. Assistir filmes bons. Sair no meio dos filmes que não interessam. Costurar um furinho. Pregar um botão. Imitar bicho. Tirar lixo. Recolher cabelos no ralo. Revirar no melado do lençol. Gastar pilha. Deixar bilhete. Deixar de lado. Experimentar cachimbo. Fazer careta com a boca cheia de pasta de dente. Cuidar do sono. Experimentar um refrigerante novo, horrível com drops derretido. Ter mais uma escova de dente. Telefonar, contando até três pra que os dois desliguem ao mesmo tempo, mas nem assim. Ser cuidado de bandeja e toalhinha. Gostar do que você gosta. Apalpar depois de um pesadelo. Criar bicho de estimação que fique doente de vez em quando, precisando de uma caixa de papelão, um cobertor bem gasto e atenção. Fritar ovo. Fritar pão. Fazer torrada. Tomar sopa. Cutucar todos os buraquinhos, secos e molhados. Contornar com a ponta dos dedos todas as partes macias, como quem desenha um mapa. Empurrar todas as partes duras, como quem segura uma coisa pra se defender. Soprar cisco. Tirar felpa. Pinçar ferrão. Puxar cortina. Fechar a persiana. Matar formiga no chão da sala. Beijar o sovaco suado. Lamber a cara salgada. Beijar ossinho por ossinho que pareça por baixo da pele. Pedalar. Colocar band-aid. Enfaixar. Tossir. Espirrar. Viajar de avião. Morrer de medo. Ouvir um segredo, deixando ele sair com choro, devagar, por horas e horas. Torcer a cara ardida pro sol que nasce. Bocejar um bocejo puxando outro. Pisar na madeira macia das casas antigas. Comprar cadarço sábado cedo. Grudar retratos. Espetar retratos. Enquadrar retratos. Sentir cheiros. Pisar em poça d'água. Soltar pum. Habituar-se. Estranhar. Sofrer de saudade como rubéola em gente grande, quando não se pode mover um músculo sem aquela dor. Desembaraçar corretinhas. Fechar o zíper de vestido. Abrir zíper de vários vestidos, ouvindo as músicas desses barulhinhos. Copiar a assinatura. Acertar relógio. Guardar lugar. Assistir jogo do Brasil na tevê. Apagar a tevê. Colecionar alguma porcaria. Ficar sem graça. Jogar fora. Guardar dentro. Procurar uma coisa besta, como uma chave ou um documento. Ser encontrado por um troço importante. Misturar toalhas, sentindo as umidades cheirosas. Buscar copo d'água nem quente nem gelada no meio da noite. Fazer. Ser feito. Passar roupa. Lavar tênis. Perder as meias. Ver onde dói. Fuçar onde é bom. Dançar com o mesmo passo mas sentindo que ficou melhor. Ver dançar, estranhando a cintura conhecida. Ouvir música sem letra. Ouvir você chegar. Chegar. Curar soluço. Chorar por causa.

[...]

Fernando Bonassi, in: O Amor é Uma Dor Feliz. Ed. Moderna

capítulo 32 - final

Preencher cheque. Ficar chique. Ficar de qualquer jeito, tipo pijama e chinelo. Gastar uma caixa de fósforo, só acendendo por acender, vendo o jeito especial como queimar cada palito. Ler bula. Bestar. Bundar. Subir de escada. Descer a rampa. Tentar aprender gaita. Desistir logo. Pensar que um troço é uma coisa importante, depois notar que ela não vale bosta nenhuma. Mudar móveis de lugar, descobrindo uma nova casa na casa velha. Se enfeitar com papel higiênico. Passar cola na mão e depois ficar tirando fiapo encardido. Estudar e aprender de verdade o que for de verdade. Embrulhar presentes. Comer uma melancia inteirinha babando suco e caroço. Pôr a mesa. Fazer feira. Fazer de conta. Fazer as contas. Fazer bolinhas de bolo Pulmann. Fazer o diabo. Tirar a mesa. Fazer excursão de barco. Ficar enjoado de barco. Depois não. Usar o mesmo rádio-relógio na rádio esganiçada de acordar. Fumar unzinho. Fumar doizinho. Sair do ar. Cantar desafinado uma música pro outro lembrar. Passar creme. Passar pomada. Passar o tempo. Passar vergonha. Se achar o máximo. Responder na hora. Parar pra pensar. Pensar andando. Não saber responder e não inventar por isso e nada mais que isso. Pôr dedo no nó. Pôr dedo na ferida. Deixar a casquinha cair. Tirar espinha de peixe. Contar sonho. Contar pesadelo. Arrumar gaveta. Pintar parede. Envernizar cadeira. Pichar a porta da geladeira. Comer em churrascaria rodízio e ficar jiboiando a tarde inteira. Trocar pneu. Trocar bujão de gás. Olhar pras fotos dos documentos e rir delas como se ri de uma piada velha. Comer coxinha de posto de gasolina a duzentos quilômetros de casa. Tomar sal de fruta deixando fazer cócega no nariz. Plantar hera num vasinho e a coisa dar certo como espuma verde. Comprar caneca. Ouvir estômago roncar antes e depois das refeições. Entender de computador. Decifrar manual de forno de microondas. Sugerir. Brincar de mordomo e madame. De pega-pega pegando-pegando. Comprar peru pra temperar. Comentar revista de sacanagem e ficar conversando tipo “Olha que pintão!”, ou “Nossa, o que eles tão fazendo!”. Cortar cabelo. Dar & levar uma bronca. Descascar mexerica. Descascar o abacaxi (e fazer suco!). Levar jornal velho no lixo reciclável. Matar barata esmagada no ladrilho do banheiro no meio da gritaria. Conferir se as portas e as janelas estão fechadas por dentro. Usar óculos escuros. Se trancar sete dias. Cochilar no sofá. Tirar caca do nariz. Cortar unha encravada com tesourinha pequena assim. Assistir videoclipe alemão. Tirar fotografia. Gravar fita. Comprar CD. Deitar na barriga. Deitar na bunda. Congelar comida. Perder a hora. Ganhar tempo. Esperar. Esquecer. Lembrar. Sentar junto debaixo de uma árvore, levantar de pau duro e (opa-opa!) ter que sentar de novo. Tomar no mesmo copo. Comer no mesmo prato. Falar a mesma língua. Se cortar com caco de vidro e correr pro hospital. Gritar contra o vento, com o grito de um voltando pra boca do outro. Beijar de língua até doer no músculo da bochecha. Combinar. Lavar louça com reggae no último volume. Passar a mão. Apertar. Esfregar. Beliscar. Morder. Chupar...
Viver.
Quer dizer: ir morrendo o pouquinho que se morre a cada dia, sem se preocupar, sem virar um idiota, sem querer ser mais do que se é, sem querer saber o que se é antes de ser, pelo menos.
Ficar como você.
Depois ir ficando...
E ficar mais um pouco de novo...
Assinado:
Eu.

Fernando Bonassi, in: O Amor é Uma Dor Feliz. Ed. Moderna

quarta-feira, 10 de novembro de 2010



o meu amor sequer parece com o amor
é qual o vento, o tempo, o silêncio
cor de nada, cor de alma
como tudo que tenho.

Raiça Bomfim

ao largo - o coração

à luz do sol que nascia
àquele barco entreguei

meu coração

para que em alto-mar
o depusesse

depois muito depois
tu me disseste

não ama o coração que
o peixe rói

nem dói serenamente
respondi

nunca mais nos falamos
depois daquele dia

nunca mais dor de amor
eu padeci.

Márcia Maia

Sobre a espera(nça)


- A esperança é a penúltima que morre, Luísa.
- Ué, não é a última, Camille? Acho que você se enganou...
- Não. É a penúltima. A gente morre antes. E ela persiste e insiste.
- [...]

Vanessa Souza Moraes, in: Cadernos de Luísa

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Cheia de nuances

[...] A devastação é necessária, só assim a terra ganha vida. Devastei-me muitas vezes, e depois da terra queimada, nasceu o que eu mais amava. De vez em quando parece que tudo está cheio de imundações! Eu sei, mas depois passa e o sol chega. [...]

Vanessa Souza Moraes, in: Cadernos de Luísa

28 de janeiro

Hoje é dia de mudar de casa, de rua, de vida. As malas sufocam os corredores. Pelo chão restam plumas amassadas, restos de purpurina, frangalhos de echarpes indianas, pontas de cigarro (Players Number Six, o mas barato). Chico toca violão e canta London, London: no, nowhere to go. Poucos ainda sorriem e olham nos olhos.

Hoje é dia, mais uma vez, de mudar de casa e de vida. Os olhos buscam signos, avisos, o coração resiste (até quando?) e o rosto se banha de estrelas dormidas de ontem, estrelas vagabundas encontradas pelas latas de lixo abundantes de London, London, Babylon City. Alguém pergunta: "O que é que se diz quando se está precisando morrer?" Eu não digo nada, é minha resposta. Sento no chão e contemplo os escombros de Sodoma e Gomorra: brava Bravington Road, bye bye.

Amanhã é dia de nascer de novo. Para outra morte. Hoje é dia de esperar que o verde deste quase fim de inverno aqueça os parques gelados, as ruas vazias, as mentes exaustas de bad trips. Hoje é dia de não tentar compreender absolutamente nada, não lançar âncoras para o futuro. Estamos encalhados sobre estas malas e tapetes com nossos vinte anos de amor desperdiçado, longe do país que não nos quis. Mas amanhã será quem sabe o acerto de contas e Jesusinho nos pagará todas as dívidas? Só que já não sei se ainda acredito nele.

Tão completamente sento e espero que quase acredito ir além deste estar sentado no meio de escombros, here and now esperando Zé chegar com a notícia que conseguiu a casa graças aos poderes de Jack na região de Victoria, Pimlico. Só espero, não penso nada. Tento me concentrar numa daquelas sensações antigas como alegria ou fé ou esperança. Mas só fico aqui parado, sem sentir nada, sem pedir nada, sem querer nada.

As crianças sujas e ranhentas da casa ao lado vêm perguntar se somos ciganos: are you gypsies? Sylvia mente que sim - from Yugoslavia, diz, agita no ar o pandeirinho com fitas e finge dançar e ler as linhas das mãos das crianças. Gosto tanto desse jeito que Sylvia tem de aliviar as coisas.

Meu coração vai batendo devagar como uma borboleta suja sobre este jardim de trapos esgarçados, em cujas malhas se prendem e se perdem os restos coloridos da vida que se leva. Vida? Bem, seja lá o que for isto que temos...

Caio Fernando Abreu, in: Lixo e Purpurina, 1974 / Ovelhas Negras. Ed. L&PM

domingo, 7 de novembro de 2010

Nós, girassóis

Gosto de imaginar na minha ludicidade poética que somos girassóis humanos, lindas, fartas, ensolaradas, pétalas sutis. É da nossa natureza buscar a luz, e o chamado, intransferível, é tão vital que às vezes até nos tornamos contorcionistas diante das circunstâncias da vida só para nos voltarmos para ela.
E o miolo, bordado cheinho de sementes de amor e de lume, é o nosso coração.

Ana Jácomo

VI

Margarida Delgado
Três luas, Dionísio, não te vejo.
Três luas percorro a Casa, a minha,
E entre o pátio e a figueira
Converso e passeio com meus cães

E fingindo altivez digo à minha estrela
Essa que é inteira prata, dez mil sóis
Sirius pressaga

Que Ariana pode estar sozinha
Sem Dionísio, sem riqueza ou fama
Porque há dentro dela um sol maior:

Amor que se alimenta de uma chama
Movediça e lunada, mais luzente e alta

Quando tu, Dionísio, não estás.

Hilda Hilst, in: Júbilo, Memória, Noviciado da Paixão. Ed. Globo

Universo particular

Existe um universo particular ainda desconhecido. Pode-se saber algumas cores e dores, sem esperar com isso qualquer tipo de segurança que garanta autodomínio. A ribanceira depois da curva é sempre inesperada. Desse mundo, até agora não se sabe se redondo, se planície ou pra que lado se deve ir. A única certeza é de que no limite da razão, ainda somos perdoáveis. Mas a um passo depois da linha, não.

Samantha Abreu

Perdição

Guermante
só me acho
em lugar
nenhum.

Cris de Souza

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

O presente

Nonnetta
... amor será dar de presente um ao outro a própria solidão? Pois é a coisa mais última que se pode dar de si.

Clarice Lispector, in: A Descoberta do Mundo / Crônica de 08/07/1972. Ed. Rocco

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Premissa do tempo

Vânia Medeiros
começo onde acabas, ou onde estás quase a terminar, ou ainda
onde já acabaste mas tens uma palavra a dizer.
começo onde acabas e acabo onde acabas ou numa
das outras hipóteses. sou exígua e o meu tamanho
varia consoante as tuas premissas de tempo.
neste lugar a respiração é imaginada e assim queimada
pelo sol, o meu corpo assim apaziguado ouve uma
sombra exaustiva e perpétua como o outono caótico
dentro de um sonho infinito. um dia, quando atingirmos
o ponto zero, começaremos de novo a existir, sem que ninguém
comece ou acabe onde o outro comece ou acabe,
e, sobretudo, sem que haja palavras que falem.

Sylvia Beirute
lasciva
e assustada
eu,
lebre caligramática
escrevo quando
nada mais me resta
palavras,
pra que tanta pressa?

Zoe de Camaris

Julieta numa nota só

Vânia Medeiros
eu te quero tanto que meus olhos se magoam.

Mariana Botelho

Mãe no banho

Vânia Medeiros
É pecado cabeludo
Espiar a mãe no banho,
Suas linhas, seus cabelos,
As fontes de onde nasci?
Pecado maior seria
Roubar tamanha alegria
A meu passarinho-menino,
Que nessas horas se apruma,
Sedento do que nem sei,
E pousa em todos os cantos
Da mulher-primeira que amei.

Yara Camillo

terça-feira, 2 de novembro de 2010

Documento 1

Pensar no mundo – em tudo aquilo que eu não conheço do mundo – faz com que as minhas mãos tremam. É melhor pensar que o (meu) mundo é apenas aquilo que conheço: essas ruas do Rio, sempre as mesmas, sempre magras e tristes. O meu mundo é a minha rotina e nela não há companhia constante – as pessoas me atravessam e, de repente, não mais.

Os sorrisos e os corpos vão lentos. Que calor! O chão da varanda está coberto de restos da noite anterior. Descalça, acabo pisando numa ponta de cigarro. Não sinto.

Blindagem,
muro,
sangue-lodo.

Em breve, não haverá quem me atravesse. Então, que seja só.

Daniela Lima

Tupperware

Meteu a mão no peito e tirou dele o coração, que
guardou numa tupperware com tampa amarela
na prateleira mais baixa da geladeira. Só para se
prevenir. Nunca se sabe o que pode acontecer
quando se leva o coração a uma despedida.

André Gonçalves, in: Coisas de Amor Largadas na Noite. Ed. Ideias Inc.

Quando a vida ficou mais interessante

Se alguém me perguntar quando comecei a sentir a minha vida mais interessante, eu tenho a resposta na ponta da língua: quando comecei a me interessar mais por mim. A ser mais gentil comigo. A dar menos espaço ao que não tem importância e a respeitar o tamanho do que, de fato, me importa. A querer me conhecer melhor. A ter bem menos pressa pra chegar sei lá onde. A apurar o ouvido pra sentir a música das coisas mais simples, que cantam bonito e muitas vezes baixinho. Quando comecei a me enjoar da mania de tentar entender tanto e abri o coração para apreciar mais. Quando comecei a buscar conforto em estar na minha companhia.

Ana Jácomo