domingo, 28 de fevereiro de 2010

Poema da amante

Lara Jade
Eu te amo
Antes e depois de todos os acontecimentos
Na profunda imensidade do vazio
E a cada lágrima dos meus pensamentos.

Eu te amo
Em todos os ventos que cantam,
Em todas as sombras que choram,
Na extensão infinita do tempo
Até a região onde os silêncios moram.

Eu te amo
Em todas as transformações da vida,
Em todos os caminhos do medo,
Na angústia da vontade perdida
E na dor que se veste em segredo.

Eu te amo
Em tudo que estás presente,
No olhar dos astros que te alcançam
Em tudo que ainda estás ausente.

Eu te amo
Desde a criação das águas,
desde a idéia do fogo
E antes do primeiro riso e da primeira mágoa.

Eu te amo perdidamente
Desde a grande nebulosa
Até depois que o universo cair sobre mim
Suavemente.

Adalgisa Nery

Miragem



Meu amor por você foi só reflexo
Duma ternura imensa represada.
De coração ingênuo e alma apaixonada,
Fiz do meu próprio sonho um fantasma de amor.

Helena Kolody

Coração é terra que ninguém vê

Quis ser um dia, jardineira
de um coração.
Sachei, mondei - nada colhi.
Nasceram espinhos
e nos espinhos me feri.

Quis ser um dia, jardineira
de um coração.
Cavei, plantei.
Na terra ingrata
nada criei.

Semeador da Parábola...
Lancei a boa semente
a gestos largos...
Aves do céu levaram.
Espinhos do chão cobriram.
O resto se perdeu
na terra dura
da ingratidão

Coração é terra que ninguém vê
- diz o ditado.
Plantei, reguei, nada deu, não.
Terra de lajedo, de pedregulho,
- teu coração. Bati na porta de um coração.
Bati. Bati. Nada escutei.
Casa vazia. Porta fechada,
foi que encontrei...

Cora Coralina, in: Melhores Poemas

Poesia mínima


Pinte estrelas no muro
e terá o céu
ao alcance das mãos.

Helena Kolody

sábado, 27 de fevereiro de 2010

E s p a ç o

a forma
onde transito
me retém
não me contém

além da linha
circunscrita
eu sei o espaço
que não sabe.

Helena Parente Cunha, in: Além de Estar
viajei em muitas faces
emigrei de tantas formas
à procura do meu rosto

de um espelho para o outro
desde antes a até
atrás da imagem buscada

cada onda que vai
me arrasta
uma face transmitida

na procura de que rosto
quantos espelhos quebrei?
por quais águas me afoguei?

Helena Parente Cunha, in: Além de Estar

- Escuro

Elle Milla
- meia face
descia no escuro

- no outro canto
o sorriso
não se havia

- e do outro
mais calava

- o escuro
submergia
a face toda sem rosto.

Helena Parente Cunha, in: Além de Estar

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

LXXVI

Diego Rivera
DIEGO RIVERA com a paciência do osso
buscava a esmeralda do bosque na pintura
ou o vermelhão, a flor súbita do sangue,
recolhia a luz do mundo em teu retrato.

Pintava o imperioso talhe de teu nariz,
a centelha de tuas pupilas desbocadas,
tuas unhas que alimentam a inveja da lua,
e em tua pele estival, tua boca de melancia.

Te pôs duas cabeças de vulcão acesas
por fogo, por amor, por estirpe araucana,
e sobre os dois rostos dourados da greda

te cobriu com o casco de um incêndio bravio
e ali secretamente ficaram enredados meus olhos
em tua torre total: tua cabeleira.

Pablo Neruda, in: Cem Sonetos de Amor. Tradução de Carlos Nejar. Ed. L&PM

XII

Leszek Kowalski
Plena mulher, maçã carnal, lua quente,
espesso aroma de algas, lodo e luz pisados,
que obscura claridade se abre entre tuas colunas?
Que antiga noite o homem toca com seus sentidos?

Ai, amar é uma viagem com água e com estrelas,
com ar opresso e bruscas tempestades de farinha:
amar é um combate de relâmpagos e dois corpos
por um só mel derrotados.

Beijo a beijo percorro teu pequeno infinito,
tuas margens, teus rios, teus povoados pequenos,
e o fogo genital transformado em delícia

corre pelos tênues caminhos do sangue
até precipitar-se como um cravo noturno,
até ser e não ser senão na sombra de um raio.

Pablo Neruda, in: Cem Sonetos de Amor. Tradução de Carlos Nejar. Ed. L&PM

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Romero Britto
o amor, esse sufoco,
agora há pouco era muito,
agora, apenas um sopro.

ah, troço de louco,
corações trocando rosas,
e socos.

Paulo Leminski

Não passou

Leszek Kowalski
Passou?
Minúsculas eternidades
deglutidas por mínimos relógios
ressoam na mente cavernosa.
Não, ninguém morreu, ninguém foi infeliz.
A mão - a tua mão, nossas mãos -
rugosas, têm o antigo calor
de quando éramos vivos. Éramos?
Hoje somos mais vivos do que nunca.
Mentira, estarmos sós.
Nada, que eu sinta, passa realmente.
É tudo ilusão de ter passado.

Carlos Drummond de Andrade

Toada do amor

Fabiola Solano Luna
E o amor sempre nessa toada:
briga perdoa perdoa briga.
Não se deve xingar a vida,
a gente vive, depois esquece.
Só o amor volta para brigar,
para perdoar,
amor cachorro bandido trem.

Mas, se não fosse ele,
também que graça que a vida tinha?

Mariquita, dá cá o pito,
no teu pito está o infinito.

Carlos Drummond de Andrade, in: Alguma Poesia. Ed. Record

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Monislawa
Desimporta
que o grão do instante
vivo intenso
depois pó
se perca e
menos que nada
se anule
existir também é isso

como se não tivesse sido.

Lúcia Delorme

domingo, 21 de fevereiro de 2010

[...] Acordo com Valentim a meu lado. Passo de leve a mão em seu rosto adormecido, acompanho com o dedo o contorno de sua boca, beijo seu ombro e me aconchego mais nele: aqui é o meu lugar no mundo. E o dele também. Do nosso jeito, estamos construindo - mais uma vez - a vida. A dor faz parte.

Lya Luft, in: O Silêncio dos Amantes. Ed. Record

sábado, 20 de fevereiro de 2010

Ela

Leszek Kowalski
Agora que a sede cala
com o suco
do beijo...

E o desejo fala
com o suco
do sexo...

O carinho
espera
a luz
do olhar...

Mirela S. Xavier

Ilusão

Darkrose deviantART
Não sei fazer versos
Porque a palavra
Fere.
Queima, apunhala.
A palavra é meu ofício.
Oficial sustento.

Ofício difícil esse
de tramar contra as linhas,
de dizer o indizível,
de descrever o invisível.
Farsa.

Desfazer a trama.
Dissipar vestígios.
Destecer o dia.
Desarrumar palavras.
Cadeias de sons.
Finitos.
Urros, não versos.
Não há poesia.
No vazio.

Silêncios profundos
Agudeza cortante
Cantante o vento
A trama desfeita
Trancada, falida.
Pensamentos. Cadeia fonética:
Prisão.

Norma de Siqueira Freitas

Procura

entre a flor
e a hora
espaça minha sombra

entre o ramo
e o rumo
emaranho-me

no eco do aroma
persigo o polén
germe de viver

que chão me
entranhei
estranha raiz?

Helena Parente Cunha, in: Além de Estar

Secreta

Alaya Gadeh
irrevelada
me exilo
aos segredos que exerço

o meu enigma
- remotos ritos
de altares mudos

secretas formas
se insinuando
não se detém

como caber
mistério tanto
a que mal posso?

Helena Parente Cunha, in: Além de Estar

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Sou uma pessoa azarenta, sincera e desarmada como uma criança. Minha mãe dizia sempre que só podemos obter uma coisa na vida. Ela era um pouco cansativa, mas sobre esse aspecto pelo menos eu concordava com ela. Minha vida começou como uma garrafa quebrada, procuraram reunir os cacos e agora eu continuo. Meu amor é como uma janela de vidro estilhaçada. [...] Meu universo é como um relógio controlado por alguém. Por quem, eu não sei, talvez essa coisa que chamamos de destino. [...]

Tenho a impressão de que a vida é sempre nova assim, que ainda há coisas a descobrir. É escorregadia, penso que isso responderá todas as questões. Sinto-me tão autêntica quando vou embora, tenho sempre a impressão de ter perdido alguma coisa quando volto...

Mian Mian, in: Bombons Chineses. Ed. Geração

Corridinho

Amanda Cass
O amor quer abraçar e não pode.
A multidão em volta,
com seus olhos cediços,
põe caco de vidro no muro
para o amor desistir.
O amor usa o correio,
o correio trapaceia,
a carta não chega,
o amor fica sem saber se é ou não é.
O amor pega o cavalo,
desembarca do trem,
chega na porta cansado
de tanto caminhar a pé.
Fala a palavra açucena,
pede água, bebe café,
dorme na sua presença,
chupa bala de hortelã.
Tudo manha, truque, engenho:
é descuidar, o amor te pega,
te come, te molha todo.
Mas água o amor não é.

Adélia Prado, in: Poesia Reunida. Ed. Siciliano

Aprendamos, amor

Aprendamos, amor, com estes montes
Que, tão longe do mar, sabem o jeito
De banhar no azul dos horizontes.

Façamos o que é certo e de direito:
Dos desejos ocultos outras fontes
E desçamos ao mar do nosso leito.

José Saramago, in: Os Poemas Possíveis. Ed. Caminho

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Alaya Gadeh
Ouve como o silêncio
Se fez de repente
Para o nosso amor

Horizontalmente...

Crê apenas no amor
E em mais nada
Cala; escuta o silêncio
Que nos fala
Mais intimamente; ouve
Sossegada
O amor que despetala
O silêncio...

Deixa as palavras à poesia...

Vinícius de Moraes

Perenidade

Mesmo quando as vidas aparentam se afastar, o sentimento da gente pode ignorar a palavra despedida, tantas vezes apenas um faz-de-conta de tentativa de ida que, apesar de anunciar, não sabe mais como ir embora.

Quando o encontro é bom e tem lume não tem porta de saída: é pra sempre, de um jeito ou de outros, no coração.

Ana Jácomo

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Espólio

quando saí
da tua vida
levei pouca coisa,

uns sonhos
que não deram certo
e um vazio no peito
que não cabia
dentro da mala.

Ademir Antonio Bacca, in: O Relógio de Alice

Das contas

sei
da vida
que me foge
aos poucos
todas as noites

sempre acordo
com a sensação
de que está me faltando
um dia.

Ademir Antonio Bacca, in: O Relógio de Alice

O amor acaba

Alone Gut
O amor acaba. Numa esquina, por exemplo, num domingo de lua nova, depois de teatro e silêncio; acaba em cafés engordurados, diferentes dos parques de ouro onde começou a pulsar; de repente, ao meio do cigarro que ele atira de raiva contra um automóvel ou que ela esmaga no cinzeiro repleto, polvilhando de cinzas o escarlate das unhas; na acidez da aurora tropical, depois duma noite votada à alegria póstuma, que não veio; e acaba o amor no desenlace das mãos no cinema, como tentáculos saciados, e elas se movimentam no escuro como dois polvos de solidão; como se as mãos soubessem antes que o amor tinha acabado; na insônia dos braços luminosos do relógio; e acaba o amor nas sorveterias diante do colorido iceberg, entre frisos de alumínio e espelhos monótonos; e no olhar do cavaleiro errante que passou pela pensão; às vezes acaba o amor nos braços torturados de Jesus, filho crucificado de todas as mulheres; mecanicamente, no elevador, como se lhe faltasse energia; no andar diferente da irmã dentro de casa o amor pode acabar; na epifania da pretensão ridícula dos bigodes; nas ligas, nas cintas, nos brincos e nas silabadas femininas; quando a alma se habitua às províncias empoeiradas da Ásia, onde o amor pode ser outra coisa, o amor pode acabar; na compulsão da simplicidade simplesmente; no sábado, depois de três goles mornos de gim à beira da piscina; no filho tantas vezes semeado, às vezes vingado por alguns dias, mas que não floresceu, abrindo parágrafos de ódio inexplicável entre o pólen e o gineceu de duas flores; em apartamentos refrigerados, atapetados, aturdidos de delicadezas, onde há mais encanto que desejo; e o amor acaba na poeira que vertem os crepúsculos, caindo imperceptível no beijo de ir e vir; em salas esmaltadas com sangue, suor e desespero; nos roteiros do tédio para o tédio, na barca, no trem, no ônibus, ida e volta de nada para nada; em cavernas de sala e quarto conjugados o amor se eriça e acaba; no inferno o amor não começa; na usura o amor se dissolve; em Brasília o amor pode virar pó; no Rio, frivolidade; em Belo Horizonte, remorso; em São Paulo, dinheiro; uma carta que chegou depois, o amor acaba; uma carta que chegou antes, e o amor acaba; na descontrolada fantasia da libido; às vezes acaba na mesma música que começou, com o mesmo drinque, diante dos mesmos cisnes; e muitas vezes acaba em ouro e diamante, dispersado entre astros; e acaba nas encruzilhadas de Paris, Londres, Nova Iorque; no coração que se dilata e quebra, e o médico sentencia imprestável para o amor; e acaba no longo périplo, tocando em todos os portos, até se desfazer em mares gelados; e acaba depois que se viu a bruma que veste o mundo; na janela que se abre, na janela que se fecha; às vezes não acaba e é simplesmente esquecido como um espelho de bolsa, que continua reverberando sem razão até que alguém, humilde, o carregue consigo; às vezes o amor acaba como se fora melhor nunca ter existido; mas pode acabar com doçura e esperança; uma palavra, muda ou articulada, e acaba o amor; na verdade; o álcool; de manhã, de tarde, de noite; na floração excessiva da primavera; no abuso do verão; na dissonância do outono; no conforto do inverno; em todos os lugares o amor acaba; a qualquer hora o amor acaba; por qualquer motivo o amor acaba; para recomeçar em todos os lugares e a qualquer minuto o amor acaba.

Paulo Mendes Campos, in: O Amor Acaba. Ed. Civilização Brasileira

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

O Amor no Éter

Há dentro de mim uma paisagem
entre meio-dia e duas horas da tarde.
Aves pernaltas, os bicos
mergulhados na água,
entram e não neste lugar de memória,
uma lagoa rasa com caniço na margem.
Habito nele, quando os desejos do corpo,
a metafísica, exclamam:
como és bonito!
Quero escrever-te até encontrar
onde segregas tanto sentimento.
Pensas em mim, teu meio-riso secreto
atravessa mar e montanha,
me sobressalta em arrepios,
o amor sobre o natural.
O corpo é leve como a alma,
os minerais voam como borboletas.
Tudo deste lugar
entre meio-dia e duas horas da tarde.

Adélia Prado, in: Poesia Reunida. Ed. Siciliano
As cartas de amor
deveriam ser fechadas
com a língua.
Beijadas antes de ser enviadas.
Sopradas, respiradas.
O esforço do pulmão
capturado pelo envelope,
a letra tremendo
como uma pálpebra.
Não a coisa isenta, neutra,
mas a espuma, a gentileza,
a gripe, o contágio.
Porque a saliva
acalma o machucado.

As cartas de amor
deveriam ser abertas
com os dentes.

Fabrício Carpinejar
Eu fui uma mulher marítima,
as rugas chegaram antes.

Eu fui uma mulher marítima,
paisagem e pêssego,
uma faísca
entre a corda do barco
e a rocha.

Eu fui o que não sou.
Depois que inventaram o inconsciente,
a verdade fica sempre para depois.

Fabrício Carpinejar

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

[...] Cada qual vai para um quarto. Renê sabe que eu não gosto de promiscuidade. Eu vou para o quarto com o paulista. Sento num sofá. Ele também senta. Depois deita a cabeça no meu colo, diz que não está com vontade de fazer nada, "esses caras cismaram que eu hoje tinha que ir com uma garota pra cama, mas vamos só conversar, está OK?". Eu digo que está OK. Ele diz que não quer estragar as coisas. Eu digo que está bem. (Quero ir para o Zum Zum.) Passo a mão nos cabelos dele. "Eu não quero fazer isso", diz ele, tirando a roupa. Eu também tiro a roupa e nos deitamos, ele sempre dizendo que não quer, mas me papando assim mesmo.

Rubem Fonseca, in: Lúcia McCartney / 64 Contos de Rubem Fonseca. Ed. Companhia das Letras

Poema

Assim que eu abrir de novo os meus olhos,
meus pensamentos já não serão mais livres,
e minha alma, vencida, errará novamente pelas
estradas abandonadas.
Neste instante, porém, tudo me aproxima de
mim mesmo.
Há uma solidão imensa aqui dentro. Há janelas
abertas recebendo a noite.
Nunca me pertenci tanto como neste momento.
Nunca te pertenci tanto como neste momento.

Emílio Moura

Três caminhos

Percorri tantos caminhos,
tantos caminhos andei.
O primeiro era de nácar,
de rosa pura o segundo.
O terceiro era de nuvem,
no terceiro te encontrei.
O primeiro já trazia
teu nome brilhando no ar.
Não era nome de terra:
cantava coisas do mar.
Logo senti que o segundo
já era estrada de encantar.
Mas o terceiro, o terceiro
quantas voltas não foi dar!
Deixou meu corpo na terra,
meu coração no alto-mar.
Virou vento, virou bruma,
perdeu-se, rápido, no ar.

Emílio Moura

Safo

Mengim
eu amo essa dona
testemunha ocular
ponto de apoio

eu amo essa dama
seu cheiro sua maciez

eu amo essa cama
seus lençóis travesseiros
fronhas colchas cobertas

eu amo essa fama
de sem-vergonha.

Líria Porto

Estilo trocados

Alone Gut

Meu futuro amor passeia — literalmente — nos
píncaros daquela nuvem.
Mas na hora de levar o tombo adivinha quem cai.

Cacaso

A fonte

Fonte da saudade
toda essa água tão limpinha
toda canção que ninguém fez
coisa sem porquê e sem destino
não avisa quando vem
quando vai...
passou a vida inteira
a fonte não secou
pra que lugar, me diga
foi o meu amor, ah!
passou a noite inteira
essa noite serenou
o meu bem dormiu comigo
e a gente acordou
fonte da saudade
onde deságua tão limpinha
toda canção
que ninguém fez
coisa sem porquê e sem destino
não avisa quando vem
quando vai
deságua...

Cacaso

Exame de consciência

Nonnetta

Se eu amo o meu semelhante? Sim. Mas onde encontrar o meu semelhante?

Mario Quintana, in: Caderno H. Ed. Globo

O cais

Naquele nevoeiro
Profundo, profundo...
Amigo ou amiga,
Quem é que me espera?

Quem é que me espera,
Que ainda me ama,
Parado na beira
Do cais do Outro Mundo?

Amigo ou amiga
Que olhe tão fundo
Tão fundo em meus olhos
E nada me diga...

Que rosto esquecido...
Ou radiante face
Puro sorriso
De algum novo amor?!

Mario Quintana

domingo, 7 de fevereiro de 2010

Elegia

Liberdade,
sem ti nada mais sei.

Compreendi o mundo
em ti, sutil
compêndio.

Amei muito antes
de me amares,
entre surtos e sulcos.

Amei
e só a morte
de perder-te
me faz viver
multiplicando
auroras, meses.

E sou tão doido
que o riso inútil
percorri
de me perder, perdendo-te,
perdido em mim.

Carlos Nejar

Redondel

O coração se acrescenta
ao coração se acrescenta
a outro e senta sob a árvore
- tudo tão nuvem entre
um coração e outro -
redondos os sins, os vãos,
a noite na concha
do coração, o pampa
e os corações sentados
e um coração voando.

Mudando, tudo é possível
recomeçar.

Carlos Nejar

Se tanto me dói que as coisas passem


Se tanto me dói que as coisas passem
É porque cada instante em mim foi vivo
Na busca de um bem definitivo
Em que as coisas de Amor se eternizassem.

Sophia de Mello Breyner Andresen

sábado, 6 de fevereiro de 2010

Fio

No fio da respiração,
rola a minha vida monótona,
rola o peso do meu coração.

Tu não vês o jogo perdendo-se
como as palavras de uma canção.

Passas longe, entre nuvens rápidas,
com tantas estrelas na mão...

- Para que serve o fio trêmulo
em que rola o meu coração?

Cecília Meireles

Herança

Eu vim de infinitos caminhos,
e os meus sonhos choveram lúcido pranto
pelo chão.

Quando é que frutifica, nos caminhos infinitos,
essa vida, que era tão viva, tão fecunda,
porque vinha de um coração?

E os que vierem depois, pelos caminhos infinitos,
do pranto que caiu dos meus olhos passados,
que experiência, ou consolo, ou prêmio alcançarão?

Cecília Meireles

Leveza

Leve é o pássaro:
e a sua sombra voante,
mais leve.

E a cascata aérea
de sua garganta,
mais leve.
E o que lembra, ouvindo-se
deslizar seu canto,
mais leve.
E o desejo rápido
desse mais antigo instante,
mais leve.
E a fuga invisível
do amargo passante,
mais leve.

Cecília Meireles

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

Meio termo

Nonnetta
Ah! Como eu tenho me enganado
como tenho me matado
por ter demais confiado
nas evidências do amor
como tenho andado certo
como tenho andado errado
por seu carinho inseguro
por meu caminho deserto
como tenho me encontrado
como tenho descoberto
a sombra leve da morte
passando sempre por perto
o sentimento mais breve
rola no ar e descreve a eterna cicatriz
mais uma vez,
mais de uma vez,
quase que fui feliz!

Cacaso, in: Mar de Mineiro: poemas e canções

Cinema antigo

Kurt Halsey Frederiksen
Se eu pudesse escolher o seu desejo
Eu queria renascer no seu amor
Todo dia pra você, todo dia só pra mim
Nosso dia vai durar eternamente
Quero apenas a promessa do seu beijo
Quero apenas um vintém do seu amor
E sonhar os sonhos seus
Dar adeus a todo adeus
Sem fantasia, um tempo só, um dia.

Cacaso
Moro entre o dia e o sonho.
Onde cochilam crianças, quentes da correria.
Onde velhos para a noite sentam
e lareiras iluminam e aquecem o lugar.
Moro entre o dia e o sonho.
Onde tocam claros sinos vesperais
e meninas, perdidas da confusão,
descansam à boca do poço.
E uma tília é minha árvore querida;
e todos os verões que nela se calam
movem outra vez os mil galhos,
e acordam de novo entre o dia e o sonho.

Rainer Maria Rilke

Não deves entender a vida...

DeviantArt_Curlytops
Não deves entender a vida,
seria então como uma festa.
Deixe que cada dia aconteça,
como uma criança que passa
e a cada dor
com muitas pétalas se presenteia.

Juntá-las e guardá-las
para a criança não tem sentido.
Retira-as suavemente dos cabelos,
onde tão facilmente se prenderam,
retoma os jovens e amados anos
de novo em suas mãos.

Rainer Maria Rilke

Saudade

Esta é a saudade: viver no afeto
E não ter morada no tempo
Estes são os desejos: conversa silenciosa
Horas diárias com a eternidade.

Esta é a vida. Até que de um ontem
suba a mais solitária de todas as Horas
Tão sorridente, diferente das irmãs
que se calam eternamente.

Rainer Maria Rilke

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

Caligrafia

Existe um nome, um ideograma
um signo tangível
para representar a amargura?

Eu o procuro mas não encontrei.
O silêncio apenas seria capaz
de bradar toda a sua dignidade?

Silvia Härri / Tradução de Fernando Fábio Fiorese Furtado

Depressa, a manhã

Não permitirei
que a ausência se avizinhe
nem que a dúvida aflore.
É um privilégio
de tuas mãos apenas
do teu corpo
que envolve o meu
e canta
tal uma onda que rebenta.

Silvia Härri / Tradução de Fernando Fábio Fiorese Furtado