segunda-feira, 29 de outubro de 2012

29 de julho

Antonio Palmerini
por trás de cada verso nasce uma ave, um silêncio ferido, ou um mineral que se enterra sílaba a sílaba no corpo, estão contaminados de claridade os alicerces daquilo que escrevo. Uma cidade exterminadora vem do odor da tinta permanente, palavra a palavra escavo no coração do texto. Por trás de cada poema existe o corpo que o gerou num instante de pânico. Mas uma dúvida persiste, nada fica acabado, definitivo. Ilumina-se outro corpo pela insônia, desassossegado. Nenhuma máscara consegue esconder, nem proteger o rosto magoado. Nenhuma imagem tua se revela no açúcar das veias.

Al Berto, in: O Medo. Ed. Assírio & Alvim

sábado, 27 de outubro de 2012

Aida Gradina


Aqui te faço os relatos simples dessas embarcações perdidas no eco do tempo cujos nomes e proveito de mercadorias ainda hoje transitam de solidão em solidão.

Al Berto, in: Salsugem.

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

pequena gota

Alone Gut

deixei que fosse embora, achando que era pouco. pequena gota d'água. deixei que fosse embora, sem saber que eu secaria com o tempo. que viraria deserto.

Eduardo Baszczyn

terça-feira, 23 de outubro de 2012

57

No luxo do dia
irrompe abruptamente
o corpo de outro dia.

Não é uma vaga miragem,
nem um recordo impaciente,
nem uma premonição
que explode e se antecipa.

Outro dia ocupa este dia
porque às vezes o tempo
corrige a si mesmo.
Ou somente se substitui:
cede seu turno a outro
de seus múltiplos leitos.

O relevo do tempo
não se oculta na somba.

Roberto Juarroz, in: Decimotercera poesía vertical / Poesía vertical, 1983 - 1993. Tradução de Renato Rezende. In: Puentes. Poesía argentina y brasileña contemporánea. Ed. Fondo de Cultura Económica. Antología bilingue

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

O dia

um diz não é hora não é hora ainda
escurece o dia foge sobre as árvores
foge voa solitário sobre o aterro
sobre o porto
sobre os braços estendidos
um diz não é hora
o caminho se interrompe volta
foge muito alto para cima
o dia
que direi? que direi?
amigos de ontem de hoje
os caminhos voltam
mas atrás irá o sal dos coros

Edgar Bayley, in: El Día, 1968. Tradução de Renato Rezende. In: Puentes. Poesía argentina y brasileña contemporánea. Ed. Fondo de Cultura Económica. Antología bilingue. 

domingo, 21 de outubro de 2012

O passarinho dela

Rebecca Rebouché
O passarinho dela
é azul encarnado.
Encarnado e azul são
as cores do meu desejo.

O passarinho dela
bica meu coração.
Ai ingrato, deixa estar
que o bicho te pega.

O passarinho dela
está batendo asas, seu Carlos!
Ele diz que vai-se embora
sem você pegar.

Carlos Drummond de Andrade, in: Brejo das Alma. Ed. Record

sábado, 20 de outubro de 2012

A alegria de escrever

Glenn Brown
Para onde corre este cervo escrito na floresta que escrevi?
É para beber da água escrita,
que desenha seu focinho?
Por que ele ergue a cabeça, escutou algo?
Apoiado nas quatro patas emprestadas da verdade
ele apura as orelhas sob meus dedos.
Silêncio - essa palavra ressoa na textura do papel
e afasta os galhos
que brotam da palavra floresta.

Sobre a folha em branco há letras espreitando
que podem tomar o mau caminho
formando frases ameaçadoras
das quais nada escapa.

Em cada gota de tinta há um bom estoque
de caçadores de olho na mira,
prontos a descer pela caneta íngreme,
cercar o cervo e apontar as armas.

Eles esquecem que aqui não há vida de verdade.
No preto-e-branco vigem outras leis.
Um piscar de olhos durará o tempo que eu quiser
e poderá ser dividido em pequenas eternidades,
cada uma com chumbo suspenso em pleno vôo.
Aqui nada acontecerá sem meu aval.
Contra minha vontade, nem uma folha cairá
e nem uma grama se dobrará sob o casco do cervo.

Então existe um mundo
onde eu possa impor o destino?
Um tempo que eu teço com uma corrente de sinais?
Uma existência que, a meu comando, não terá fim?

A alegria de escrever.
O poder de preservar.
Vingança de uma mão mortal.

Wislawa Szymborska / Tradução de Sylvio Fraga Neto e Danuta Haczynska da Nóbrega

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Mais um poeta que deixará saudades...

Aquilo que foi perdido
já modificou tudo e a si próprio.
O sentido de tudo
confunde-se com tudo.

Esta é a profunda ordem
que todas as coisas e a falta de elas
violam e fortalecem,
o imóvel tempo de tudo.

O que se move está parado
no centro do infinito movendo-se,
Sai-me do corpo o esquecimento
e também a fascinação de isto.

Manuel António Pina, in: Aquele que Quer Morrer, 1978
Isabel de Sá
Chegam em grupos
mulheres-bonecas apunhaladas.
Parecem fugidas
da catástrofe. Algumas
possuem elementos masculinos,
exibem correntes quebradas.

*

Bispos, rostos de luxúria
e tirania
povoam o insólito mundo dos homens
anônimos das cidades.

Amantes encontram-se, furtivamente.
Frisos de belos figurantes
sonham com amores pecaminosos.

*


Nos bordéis reina a fantasia
de um universo falocrático
onde personagens vestidos
com paramentos religiosos
têm poder sobre os
prostitutos.

Isabel de Sá, in: O Brilho da Lama (Das Trevas para a Luz) 1999

DENTRO DAS IMAGENS

Isabel de Sá
Os poemas têm veneno na boca.

Na estrada da minha vida
plantei a árvore
sem saber quem era.

Em que parte do planeta
há mais ódio? A matéria
erosiva transforma o corpo
e não há regresso. Não
restará um monte de estrume.

Em todo o lado
parece que o mundo em desordem
pouco a pouco enlouqueceu
e os homens atam a corda
à espera que aconteça.

São infelizes
mas não o suficiente.
Não sabem dizer
por que se esquecem de amar.

Isabel de Sá, in: Antologia Resumo 2009. Ed. Assírio e Alvim.

terça-feira, 16 de outubro de 2012

Truque da polaroid

Nan Goldin
olhou-o dormir
escorregou por entre lençóis-quentes, virou-o
a respiração coalhava pelas costas, ele finge dormir
solta um ligeiríssimo e desordenado resfolegar, ao sentir o sexo retirar-se
amanhã nem sequer falaremos disto
dormimos

outros dias em que a solidão é mais cruel olha-o só
sentado aqui no meio do quarto
frente ao textos emendados, remediados, remendados
ferido, ele masturba-se depois acorda-o, conta uma história qualquer, beija-o
sorri-lhe com os lábios a tremerem de abelhas
ele continua a dormir, indiferente ao mel

vagueio pela casa
rente aos ângulos estreitos dos corredores, sem saber por onde fugir-me

Al Berto

domingo, 14 de outubro de 2012

8

À beira d'água moro,
à beira d'água,
da água que choro.

Em verdes mares olho,
em verdes mares,
flor que desfolho.

Tudo o que sonho posso,
tudo o que sonho.
E me alvoroço.

Que a flor nas águas solto,
e em flor me perco
mas em saudade volto.

Cecília Meireles, in: Metal Rosicler / Antologia Poética. Ed. Nova Fronteira

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

LXVI

Masao Yamamoto

Nuns atalhos da tarde
Vivendo imensidão
Minha alma disse a mim
Rica de sombras:
Não pertencida.
Exilada dos sóis
Das outras vidas.

Hilda Hilst, in: Cantares. Ed. Globo

terça-feira, 9 de outubro de 2012

Egon Schiele

[...]


tenho todos os teus caminhos

na ponta da língua.

Marina Rabelo

sábado, 6 de outubro de 2012

Delicatessen

Você nunca conhece realmente as pessoas. O ser humano é mesmo o mais imprevisível dos animais. Das criaturas. Vá lá. Gosto de voltar a este tema. Outro dia apareceu uma moça aqui. Esguia, graciosa, pedindo que eu autografasse meu livro de poesia, "tá quentinho, comprei agora". Conversamos uns quinze minutos, era a hora do almoço, parecia tão meiga, convidei-a para almoçar, agradeceu muito, disse-me que eu era sua "ídala", mas ia almoçar com alguém e não podia perder esse almoço. Alguém especial?, perguntei. Respondeu nítida: "pé de porco". Não entendi. Como? "Adoro pé de porco, pé de boi também". Ahn... interessante, respondi. E ela se foi apressada no seu Fusquinha. Não sei por que não perguntei se ela gostava também de cu de leão. Enfim, fiquei pasma. Surpresas logo de manhã. 

Olga, uma querida amiga passando alguns dias aqui conosco, me diz: pois você sabe que me trouxeram uma noite um pé-perna de porco, todo recheado de inverossímeis, como uma delicadeza para o jantar? Parecia uma bota. Do demo, naturalmente. E lendo uma entrevista com W. H. Auden, um inglês muito sofisticado, o entrevistador pergunta-lhe: "O que aconteceu com seus gatos?" Resposta: "Tivemos que matá-los, pois nossa governanta faleceu". Auden também gostava de miolo, língua, dobradinha, chouriços e achava que "bife" era uma coisa para as classes mais baixas, "de um mau gosto terrível", ele enfatiza. E um outro cara que eu conheci, todo tímido, parecia sempre um urso triste, também gostava de poesia... Uma tarde veio se despedir, ia morar em Minas... Perguntei: "E todos aqueles gatos de que você gostava tanto?" Resposta: "Tive de matá-los". "Mas por quê?!" Resposta: "Porque gatos gostam da casa e a dona que comprou minha casa não queria os gatos". "Você não podia soltá-los em algum lugar, tentar dar alguns?" Olhou-me aparvalhado: "Mas onde? Pra quem?" "E como você os matou?" "A pauladas", respondeu tranquilo, como se tivesse dado uma morte feliz a todos eles. E por aí a gente pode ir, ao infinito. Aqueles alemães não ouviam Bach, Wagner, Beethoven, não liam Goethe, Rilke, Hölderlin????? à noite, e de dia não trabalhavam em Auschwitz? A gente nunca sabe nada sobre o outro. E Aquele lá de cima, o Incognoscível, em que centésima carreira de pó cintilante sua bela narina se encontrava quando teve a idéia de criar criaturas e juntá-las? Oscar, traga os meus sais.

(segunda-feira, 1º de março de 1993)

Hilda Hilst, in: Cascos & Carícias & Outras Crônicas. Ed. Globo

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

Sentimentos máximos

Rebecca Rebouché
Era a primeira vez que a tristeza adquiria um corpo e escorregava como areia dentro da ampulheta. A tristeza era uma caixa guardando pequenos objetos, botões, agulhas, linhas. Se me virasse para a direita, eles se movimentavam para este lado. Se me virasse para a esquerda, eles também se deslocavam. Só não sabia como inverter o processo, o que faria para preencher o vazio quando a areia terminasse. Porque aí já não seria uma questão de direita ou esquerda. Seria uma questão de manter-me em pé, em ângulo de gravidade. Antes, a angústia era uma nuvem, um fantasma que pairava como o éter. Era a primeira vez que o sentimento adquiria um corpo, um estado sólido. Acho que a tristeza evoluiu. 

Célia Musilli

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

"deseo de escribir, de no escribir, de escribir brutalmente, de escribir com dulzura y serenidad [...]" --- 8 poemas traduzidos

Francesca Woodman
18

como um poema inteirado
do silêncio das coisas
você fala para não me ver

20

disse que não sabe do medo da morte do amor
disse que tem medo da morte do amor
disse que o amor é morte é medo
disse que a morte é medo é amor
disse que não sabe

23

um olhar partindo do ralo
pode ser uma visão do mundo

a rebelião consiste em olhar uma rosa
até os olhos se pulverizarem

28

você se afasta dos nomes
que fiam o silêncio das coisas

Francesca Woodman
31

É um fechar os olhos e jurar não abri-los. Enquanto lá
fora se alimentarem de relógios e flores nascidas de astú-
cia. Mas com os olhos fechados e um sofrimento na ver-
dade grande demais a gente sonda os espelhos até que as
palavras esquecidas soam magicamente.

32

Área de pragas onde a adormecida come lentamente
seu coração de meia-noite

34

a pequena viajante
morria explicando sua morte

sábios animais nostálgicos
visitavam seu corpo quente


38

Este canto arrependido, vigia detrás dos meus poemas:
este canto me desmente, me amordaça.

Alejandra Pizarnik, in: Árbol de Diana, 1962. Tradução de Sérgio Alcides. In: Puentes. Poesía argentina y brasileña contemporánea. Ed. Fondo de Cultura Económica. Antología bilingue. 

quarta-feira, 3 de outubro de 2012

SÓLO UN NOMBRE - alejandra alejandra / debajo estoy yo / alejandra --- 8 poemas traduzidos

Francesca Woodman
1

Dei o salto entre mim e a alvorada
Deixei meu corpo junto à luz
e cantei a tristeza daquilo que nasce.

5

por um minuto de vida breve
única de olhos abertos
por um minuto a ver
no cérebro flores pequenas
dançando como palavras na boca de um mudo

6

ela se despe no paraíso
de sua memória
ela desconhece o feroz destino
de suas visões
ela tem medo de não saber nomear
o que não existe

8

Memória iluminada, galeria onde vaga a sombra daquilo
que espero. Não é verdade que virá. Não é verdade que
não virá.

Francesca Woodman
10

um vento débil
cheio de rostos dobrados
que recorto em forma de objetos para amar

11

agora
nesta hora inocente
eu e aquela que fui nos sentamos
no umbral do meu olhar

13

explicar com palavras deste mundo
que partiu de mim um barco me levando

14

O poema que não digo,
esse que não mereço.
Medo de ser duas
a caminho do espelho:
alguém dormente em mim
me come e me bebe.

Alejandra Pizarnik, in: Árbol de Diana, 1962. Tradução de Sérgio Alcides. In: Puentes. Poesía argentina y brasileña contemporánea. Ed. Fondo de Cultura Económica. Antología bilingue.

terça-feira, 2 de outubro de 2012

PALAVROSOS: TUDO NO NADA - recortes

Patrick Gonzalès
IV

Devolvo o nada
No tudo
Que o verso fabrica

V

Faço tudo
No nada
Que o poema diz

VI

Além do infinito
Digo amplidão
Na palavra certa.

Cássio Amaral

Fragmentos para dominar el silencio

Margarita Georgiadis
I

Las fuerzas del lenguaje son las damas solitarias, desoladas, que cantan a través de mi voz que escucho a lo lejos. Y lejos, en la negra arena, yace una niña densa de música ancestral. ¿Dónde la verdadera muerte? He querido iluminarme a la luz de mi falta de luz. Los ramos se mueren en la memoria. La yacente anida en mí con su máscara de loba. La que no pudo más e imploró llamas y ardimos.

II

Cuando a la casa del lenguaje se le vuela el tejado y las palabras no guarecen, yo hablo.

Las damas de rojo se extraviaron dentro de sus máscaras aunque regresarán para sollozar entre flores.

No es muda la muerte. Escucho el canto de los enlutados sellas las hendiduras del silencio. Escucho tu dulcísimo llanto florecer mi silencio gris.

III

La muerte ha restituido al silencio su prestigio hechizante. Y yo no diré mi poema y yo he de decirlo. Aun si el poema (aquí, ahora) no tiene sentido, no tiene destino.

Alejandra Pizarnik, in: Extracción de la Piedra de Locura - I, 1966 / Poesía Completa. Ed. Lumen