terça-feira, 21 de agosto de 2012

O quanto a vida é líquida

Antonio Merini
Atenção: ouvi às quatro da matina, através da Central Brasileira de Notícias (CBN), que, em Rondônia e no Acre, quinhentas mil meninas de doze a catorze anos são vendidas como prostitutas aos garimpeiros. Se forem virgens, valem vinte milhões de cruzeiros reais. O preço das não-virgens não foi dito. Se adoecem, são sem seguidas assassinadas. Fiquei em estado catatônico. Ainda estou. Pausa longa. Segundo os astrólogos, no meu mapa astral há a chamada "trindade da alma", e isso quer dizer que eu recebo no peito, como um soco, as múltiplas dores do mundo. E por isso, de dor e de compaixão, posso em seguidinha morrer. E para morrer "esquecendo", resolvi beber além do que já bebo, e como vou ficar bebendo algum tempo (porque o teor da notícia lá de cima é insuportável e sinistro), esta crônica e mais algumas serão dedicadas às minhas "Alcoólicas", e vocês terão a chance de ler alguns dos mais belos poemas da língua. Boa noite. Aí vão os primeiros três:


I

a Jamil Snege

É crua a vida. Alça de tripa e metal.
Nela despenco: pedra mórula ferida.
É crua e dura a vida. Como um naco de víbora.
Como-a no livor da língua
Tinta, lavo-te os antebraços, Vida, lavo-me
No estreito-pouco
Do meu corpo, lavo as vigas dos ossos, minha vida
Tua unha plúmbea, meu casaco rosso.
E perambulamos de coturno pela rua
Rubras, góticas, altas de corpo e copos.
A vida é crua. Faminta como o bico dos corvos.
E pode ser tão generosa e mítica: arroio, lágrima
Olho d’água, bebida. A vida é líquida.

II

Também são cruas e duras as palavras e as caras
Antes de nos sentarmos à mesa, tu e eu, Vida
Diante do coruscante ouro da bebida. Aos poucos
Vão se fazendo remansos, lentilhas d’água, diamantes
Sobre os insultos do passado e do agora. Aos poucos
Somos duas senhoras, encharcadas de riso, rosadas
De um amora, um que entrevi no teu hálito, amigo
Quando me permitiste o paraíso. O sinistro das horas
Vai se fazendo tempo de conquista. Langor e sofrimento
Vão se fazendo olvido. Depois deitadas, a morte
É um rei que nos visita e nos cobre de mirra.
Sussurras: ah, a vida é líquida.

III

Alturas, tiras, subo-as, recorto-as
E pairamos as duas, eu e a Vida
No carmim da borrasca. Embriagadas
Mergulhamos nítidas num borraçal que coaxa.
Que estilosa galhofa. Que desempenados
Serafins. Nós duas nos vapores
Lobotômicas líricas, e a gaivagem
se transforma em galarim, e é translúcida
A lama e é extremoso o Nada.
Descasco o dementado cotidiano
E seu rito pastoso de parábolas.
Pacientes, canonisas, muito bem-educadas
Aguardamos o tépido poente, o copo, a casa.

Ah, o todo se dignifica quando a vida é líquida.

(segunda-feira, 21 de junho de 1993)

Hilda Hilst, in: Cascos & Carícias & Outras Crônicas. Ed. Globo

2 comentários:

  1. Ainda ontem li estas palavras da Hilda... Curioso.

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  2. Hilda corta-nos com o real nas palavras. Ao me doer, doo ao mundo parte de mim.

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