terça-feira, 5 de julho de 2011

I - A perda

Quando passo às vezes por aquela esquina, espio sempre a outra rua por trás da igreja. E mesmo sem querer, sem perceber claro o que sinto, lembro daquela tarde em que fui visitá-lo pela última vez, depois voltei caminhando pela rua cheia de árvores tão altas que suas copas se encontram e se misturam no alto, como num túnel redondo, irregular, a pensar coisas que nem lembro mais.

Quando passo por lá assim rapidamente, numa tarde como a de ontem ou outras iguais destes tantos meses passados, penso se não deveria retomá-la — essa rua, essa caminhada, mas sem ele agora — uma tarde, noite ou manhã quaisquer para refazer o percurso inverso até a casa dele, onde nem mora mais. E parado naquela esquina feito espião, contemplar a sacada daquele décimo andar onde costumávamos nos debruçar abraçados para olhar aquela rua lá embaixo sendo aos poucos coberta pelas sombras da tarde furando a copa-túnel das árvores. As sombras que crescem devagar sobre o asfalto quente do verão passado. As sombras, enfim.

Caio Fernando Abreu, in: do conto Metâmeros / Ovelhas Negras. Ed. L&PM

8 comentários:

  1. tenho problemas com lembrancas e lugares... camila modesto

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  2. como num filme essas lembranças vagam em minha mente. ah, e como dói.

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  3. Descobri agora o blog. Encantada com a fartura literária! Parabéns! Marcela.

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  4. coincidência boa, ontem estava lendo vários contos do caio.

    uma maravilha!

    grande abraço!

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  5. adorei o blog, é simples mas com muuuito conteúdo, assim como todas as coisas deviam ser!

    bjos

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  6. Minha alma é um poço de lembranças. Lembro de tantas coisas. E adoro as sombras, não apenas as do verão... rs

    bacio

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  7. "É dificil lidar com as perdas... mas devemos aprender!!!"

    Encantador o texto... Caio sempre Caio... maravilhoso!!!

    Beijos

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