domingo, 1 de setembro de 2013

Quando setembro vier

De tão azul, o céu parecerá pintado. E nós embarcaremos logo rumo à ilhas Cíclades.

Houvesse cortinas no quarto, elas tremulariam com a brisa entrando pelas janelas abertas, de manhã bem cedo. Acordei sem a menor dificuldade, espiei a rua em silêncio, muito limpa, as azaléias vermelhas e brancas todas floridas. Parecia que alguém tinha recém pintado o céu, de tão azul.

Respirei fundo. O ar puro da cidade lavava meus pulmões por dentro.
Setembro estava chegando enfim.

Na sala, encontrei a mesa posta para o café — leite e pão frescos, mamão, suco de laranja, o jornal ao lado. Comi bem devagarinho, lendo as notícias do dia. Tudo estava em paz, no Nordeste, no Oriente Médio, nas Américas Central, do Norte e do Sul. Na página policial, um debate sobre a espantosa diminuição da criminalidade. Comi, li, fumei tão devagarinho que mal percebi que estava atrasado para o trabalho. Achei prudente ligar, avisando que iria demorar um pouco.

A linha não estava ocupada. Quando o chefe atendeu, comecei a contar uma história meio longa demais, confusa demais. Só quando ele repetiu calma, calma, pela terceira vez, foi que parei de falar. Então ele disse que tinha acabado de sair de uma reunião com os patrões: tinham decidido que meu trabalho era tão bom, mas tão bom que, a partir daquele dia, eu nem precisava mais ir lá. Bastava passar todo fim de mês, para receber o salário que havia sido triplicado.

Desliguei um pouco tonto. Então, podia voltar a meu livro? Discreta e silenciosa como sempre, a empregada tinha tirado a mesa. No centro dela, agora, sobre uma toalha de renda branca, havia rosas cor de chá, aquelas que Oxum mais gosta. No escritório, abri as gavetas e apanhei a pilha de originais de três anos, manchados de café, de vinho, de tinta e umas gotas escuras que pareciam sangue. Reli rapidamente. E a chave que faltava, há tanto tempo, finalmente pintou. Coloquei papel na máquina, comecei a escrever iluminado, possuído a um só tempo por Kafka, Fitzgerald, Clarice e Fante. Não, Pedro não tinha ido embora, nem Dulce partido, nem Eliana enlouquecido. As terras de Calmaritá realmente existiam: para chegar lá, bastava tomar a estrada e seguir em frente.

Escrevi horas. Sem sentir, cheio de prazer. Quando pensava em parar, o telefone tocou. Então uma voz que eu não ouvia há muito tempo, tanto tempo que quase não a reconheci (mas como poderia esquecê-la?), uma voz amorosa falou meu nome, uma voz quente repetiu que sentia uma saudade enorme, uma falta insuportável, e que queria voltar, pediu, para irmos às ilhas gregas como tínhamos combinado naquela noite. Se podia voltar, insistiu, para sermos felizes juntos. Eu disse que sim, claro que sim, muitas vezes que sim, e aquela voz repetiu e repetia que me queria desta vez ainda mais, de um jeito melhor e para sempre agora. Os passaportes estavam prontos, nos encontraríamos no aeroporto: São Paulo/Roma/Atenas, depois Poros, Tinos, Delos, Patmos, Cíclades. Leve seu livro, disse. Não esqueça suas partituras, falei. Olhei em volta, a empregada tinha colocado para tocar A sagração da primavera, minha mala estava feita. Peguei os originais, a gabardine, o chapéu e a mala. Então desci para a limusine que me esperava e embarquei rumo a.

PS — Andaram falando que minhas crônicas estavam tristes demais. Aí escrevi esta, pra variar um pouco. Pois como já dizia Cecília/Mia Farrow em Rosa púrpura do Cairo: “Encontrei o amor. Ele não é real, mas que se há de fazer? Agente não pode ter tudo na vida...” Fred e Ginger dançam vertiginosamente. Começo a sorrir, quase imperceptível. Axé. E The End.

Caio Fernando Abreu, in: Pequenas Epifanias / O Estado de S. Paulo, 27/8/1986 / Ed. Agir

8 comentários:

  1. Nossa.. é pra mim?

    Precisava dela.

    Li em voz alta, não é que me fez bem, é isso, embarco sábado, mas ja tenho saudades de tudo, quando Caio diz que: "encontrei o amor, mais ele não é real", me senti como se estivesse enconcontrado também, não sei porque, agosto passou, diferente do ano passado(amargo que só) esse foi em altos e baixos, acho que estou me encontrando, marés não mais me abalam me fazem cóçegas.
    Me fez super bem aquela ida a sua casa eim, acordei disposto no domingo, e fou tudo Blue, a tempos não tinha finais de semana tão...
    .

    Beijo

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  2. Entrar aqui lendo Caio, é de morrerrrrrrrrrrr...

    Como ele faz falta......


    PS: Elisa Lucinda ai em Setembro??

    Me espera, que to indoooooooooooooooooo rs!!

    Beijoooooooooooo minha lindaaaaaaaa!

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  3. Que bálsamo esse pequeno espaço, né, querida?? Me diz, aquele poema do perfil é seu mesmo? Se tem coisas escritas, por favor me deixa publicar lá no Almas... Vai!!! Seria um honra para mim e pros leitores de lá... Beijinhos.

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  4. o que se pode fazer se ele não é real... pelo menos não machuca.

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  5. O que se há de fazer se o amor não é real? :)

    Farei o possível para passar na casa do Caio - ficarei apenas 3 dias lá e tenho mil amigos para fazer e um curso para fazer - e a foto é sua, viu?

    POA tem gosto de nostalgia para mim - morei 3 anos lá. Fui muito feliz, e muito infeliz lá. Na mesma proporção.

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  6. http://vemcaluisa.blogspot.com.br/2013/09/desejos-de-setembro.html

    Olha a sincronicidade, Jenny! Beijos.

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