segunda-feira, 26 de agosto de 2013

Europa, Suíça, Berna, Ostring, 5 de agosto de 1946, segunda-feira de manhã, 10 horas menos 10 minutos

Fernando,
recebi carta daquela moça Diva, lembra? e ela me mandou seu artigo "O Sentimento e a Palavra",* que assim recebi pela segunda vez. Li de novo e fiquei tão contente... Foi de novo uma carta sua, e uma conversa. Fiquei animada, não importa que daqui a pouco acabe e que eu vá com alma morta para a costureira... O que importa é que fiquei como estou agora, bem na primavera. De repente me pareceu que eu devo continuar a trabalhar, que tudo está ruim, mas que é assim mesmo, que as coisas são desconhecidas até que rebentam numa conhecida, a pessoa está só no mundo de modo que deve tomar certas providências urgentes de silêncio e meditação, já que não se sabe nem se pode agir, e que de vez em quando a gente pode receber este presente gratuito que é a palavra amiga de um amigo, e suponho que se há compensação e não vejo por que ela haveria de ser maior - está já é grande e é mais do que se merece. Assim, mando depressa este momento de felicidade para você, e espero que ele vá incendiando papeis e ervas por onde passar e quando chegar a Nova York vá subindo em fogo rasteiro as escadas e chegue junto de Heleninha de Troia e de Fernando, o Sabino, num grande fogo de amizade. Amém.

Clarice

Clarice Lispector e Fernando Sabino, in: Cartas Perto do Coração. Ed. Record

*O Sentimento e a Linguagem, sobre "O Lustre"

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