terça-feira, 20 de abril de 2010

Graça Loureiro
[...] O que deve fazer alguém que não sabe o que fazer de si? Utilizar-se como corpo e alma em proveito do corpo e da alma? Ou transformar sua força em força alheia? Ou esperar que de si mesma nasça, como uma consequência, a solução? Nada posso dizer ainda dentro da forma. Tudo o que possuo está muito fundo dentro de mim. Um dia, depois de falar enfim, ainda terei do que viver? Ou tudo o que eu falasse estaria aquém e além da vida? - Tudo o que é forma de vida procuro afastar. Tento isolar-me para encontrar a vida em si mesma. No entanto apoiei-me demais no jogo que distrai e consola e quando dele me afasto, encontro-me bruscamente sem amparo. No momento em que fecho a porta atrás de mim, instantaneamente me desprendo das coisas. Tudo o que foi distancia-se de mim, mergulhando surdamente nas minhas águas longíquas. Ouço- a, a queda. Alegre e plana espero por mim mesma, espero que lentamente me enleve e surja verdadeira diante de meus olhos. Em vez de me obter com a fuga, vejo-me desamparada, solitária, jogada num cubículo sem dimensões, onde a luz e a sombra são fantasmas quietos.
No meu interior encontro o silêncio procurado. Mas dele fico tão perdida de qualquer lembrança de algum ser humano e de mim mesma, que transformo essa impressão em certeza de solidão física. Se desse um grito - imagino já sem lucidez - minha voz receberia o eco igual e indiferente das paredes da terra. Sem viver coisas eu não encontrarei a vida, pois? Mas, mesmo assim, na solitude branca e ilimitada onde caio, ainda estou presa entre montanhas fechadas. Presa, presa. Onde está a imaginação? Ando sobre trilhos invisíveis. Prisão, liberdade. São essas as palavras que me ocorrem. No entanto não são as verdadeiras, únicas e insubstituíveis, sinto-o. Liberdade é pouco. O que desejo ainda não tem nome. [...]

Clarice Lispector, in: Perto do Coração Selvagem. Ed. Rocco

5 comentários:

  1. Só posso agradecer por trazer mais um fragmento de Clarice!

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  2. Lindo texto. A Clarisse é demais!
    Bjo

    http://futilidadesqueamamos.blogspot.com

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  3. Aah... esse meu livro dela está todo grifado...

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  4. Flor**
    Bom dia!
    respondendo faço Letras e Cinema. Na letras estou em grupos de pesquisa e iniciação científica que estudam a obra da Clarice...
    Já li todos os 31 pots dela aqui...te falei já...leio vc todas as manhãs!Antes de tomar um café e já com o cigarro aceso!rsrs
    Queria mandar-te um presente, o meu livro!Mande seu email pra mim! Queria muito saber sua opnião!
    Quanto a esse outro trecho de "..coração selvagem." Bom, demorar em si para entender a dimensão das coisas, talvez Clarice se plastificasse de Platão, se afastar das coisas para de fato ver a coisa em si, o que em Água Viva ela chama de "It". Ter o nada, o vazio, para finalmente experimentar o tudo, o completo, duvidar de Deus, do mistério, para de fato ser o mistério. Voltar ao estado natural, quase planta, ou pedra, como fez em " A paixão segundo G.H", para que de todas as naturezas , se desfazer para recuperar qualquer identidade. Qual é esse desejo tão imenso de estar além da liberdade? Não sabemos e nunca saberemos, mas temos grande desconfiança...essa palavra escondida no seio da procura chama-se Extrapolar. Ultrapassar qualquer significação...como tentei dizer ontem, no outro fragmento.
    Um enorme beijo e obrigado por postar essa minha paixão tão declarada e assumida!
    Espero vc para o chá, para um café...seja o que for!
    Enorme beijo!
    Mell

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  5. O que fazer com o não saber o que fazer?

    Pergunto-me todos os dias.

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