quinta-feira, 31 de julho de 2014

359.

Daniel Seung Lee
Ninguém compreende outro. Somos, como disse o poeta, ilhas no mar da vida; corre entre nós o mar que nos define e separa. Por mais que uma alma se esforce por saber o que é outra alma, não saberá senão o que lhe diga uma palavra – sombra disforme no chão do seu entendimento.  

Amo as expressões porque não sei nada do que exprimem. Sou como o mestre de Santa Marta: contento-me com o que me é dado. Vejo, e já é muito. Quem é capaz de entender? 

Talvez seja por este cepticismo do inteligível que eu encaro de igual modo uma árvore e uma cara, um cartaz e um sorriso. (Tudo é natural, tudo artificial, tudo igual.) Tudo o que vejo é para mim o só visível, seja o céu alto azul de verde branco de manhã que há-de vir, seja o esgar falso em que se contrai o rosto de quem está a sofrer perante testemunhas a morte de quem ama. 

Bonecos, ilustrações, páginas que existem e se voltam. Meu coração não está com eles nem quase minha atenção, que os percorre de fora, como uma mosca por uma papel. 

Sei eu sequer se sinto, se penso, se existo? Nada: só um esquema objectivo de cores, de formas, de expressões de que sou o espelho oscilante por vender inútil. 

Fernando Pessoa, in: Livro do Desassossego. Ed. Companhia das Letras

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