sábado, 4 de maio de 2013

[A um passo do pássaro, respiro]

Clara Joris - So far away

HÁ SEM DÚVIDA UM CANSAÇO. Respirar mesmo, cansa. E essa coisa toda de pensar o sentido, a relação, as relações. E as coisas, a vida, um monte de buracos. Penso em que merda de coisa sou eu, em que merda de coisa é o mundo. Eu e o mundo: pronominar o que não é pronominável. Tive de tomar distância. Eu não a suporto, e não suporto ficar longe dela, Ana. Tive de tomar e manter, tenho de tomar e manter distância, sem sair de perto, eis o manejo preciso - impreciso. Os mesmos ares, os ares mesmos, cheios de oxigênio infiltrado infiltrando-se em nossas pequenas celas, células matando o corpo no que lhe dá o com o que viver.

É preciso, não possível, porém, a distância física. É preciso, ainda, enfrentar fantasmas que substituam o fantasma perceptivo, ela me entrando olhos boca nariz poros, e eu a adentrando, e um silêncio pequeno e eu dentro, e toda ela esse emaranhamento de ciclovias desejantes, o desejo a pé, lento, querendo o contrário de si próprio.

Run, run, run...

Ana, um dos nomes de minha doença, tão minha que parece nada ter a ver comigo, com meu nome, com minha carne. Evidente que terei de voltar. Voltar sem ter ido. Não posso fugir. É pior. Sofrer, sofrê-la é, será inevitável. Queria me livrar disso, amor. Toda culpa e toda violência advêm de que não nos livramos de amar algo alguém, ainda que utilizemos outros nomes que eufemizem o amor. Tudo porque tem o corpo, acho. Sem o corpo, poderíamos não ser cavalgados pelos afetos. Tudo seria luz clara cristal, e não haveria dor e haveria apenas o silêncio líquido injetado no centro de uma rocha compacta (nesse hipótese ideal, seríamos um minério), apenas isso haveria, silêncio líquido liberando-se numa lentidão lentamente distribuindo morte ao que já é morte.

Deixar o eixo, ensolarar-me do caule mecânico e invertebrado. Nenhuma medida cautelar no horizonte de eventos. Evaporar rumo ao chão, e enrolar o vento com o grão mais consistente do meu pensamento.

O medo de palavras, dos sons delas. Amo-a sim, amo a sua bunda. Não me interesso  pelo silêncio dela. O nome é indiferente. Tenho medo. Sou um homem letrado em escrínio: fecho e calculo e vertebro o som das coisas, e enfeixo os riscos no risco preciso de uma régua mental que me orienta para o número certo de passos e por que rua.

Fly

Ana vive nessa cidade (sempre escuto necessidade, Freud explica é o caralho) e não tem olhos. Por ela, morro sempre que posso. E é isso que ela entende pouco: "o sempre que posso." Um dia serei de outra cor, Ana. Serei mouro e terei musculatura cerebral dos diabos quando sonham.

Musculatura dos diabos quando sonham: o amor é um sintoma que pode dar certo enquanto dá certo mesmo dando errado. "O amor é a forma mais difícil do egoísmo", me diz Ana.

E penso no amor por essa cidade que tem pouco a ver comigo. Mas nasci nela, nessa cidade de história historieta mambembe. Mais de um milhão de habitantes e a cidade morta e viva. Cidade-mãe, que me prende por meu gostar pouco dela, por amá-la por comodidade, por ter berço na linguagem: nasci lá. Respiro a um passo da origem, a um passo da morte. Mania besta de equidistâncias.

Wesley Peres, in: As Pequenas Mortes. Ed. Rocco

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