segunda-feira, 9 de abril de 2012

Felicidade perdida


É para a desconhecida

cheia de mimo e frescor,
perene fonte de vida,
singela rosa d'amor;
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Tomás Ribeiro, Dom Jaime



As linhas que adiante se seguem são extraídas do diário dum meu amigo, caráter singular e romanesco, que nas horas vagas consigna em um grosso caderno de papel almaço as suas impressões diárias.
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LV
3 de janeiro de 1909 (meia-noite)

Acabo de chegar do Ginásio. Antes de me deitar quero contar-se, papel amigo, um caso banal que me sucedeu durante o espetáculo. Escuta:
"Estava na platéia. Era no segundo intervalo. Percorria a sala distraidamente com a vista, quando de repente os meus olhos se fixaram numa frisa. Ocupavam-na uma senhora idosa, duas crianças e uma rapariga de dezoito anos. Escusado será dizer que foi esta última quem atraiu o meu olhar. O seu rosto, que eu via de perfil, era encantador. Vestia de preto. Provavelmente luto aliviado.

"O intervalo terminara. O pano subira. Sem dar a menor atenção ao que se passava no palco, continuei fitando a desconhecida que, cheia de interesse, seguia a representação... De súbito, o seu olhar encontrou-se com o meu... Não tenho nada de tímido, mas foi-me impossível sustentar o brilho dos seus olhos. Abaixei os meus.

"Este jogo de olhares durou todo o ato... durou todo o intervalo seguinte...durou até ao fim do espetáculo... Outro que não fosse eu, tê-la-ia esperado à porta, teria indagado a sua morada e depois... depois seriam as cartas de frases inflamadas, a troca de retratos: o amor alfacinha - e julgo que de toda a parte - em suma. Eu não: dirigi-me para minha casa, rapidamente..."
O que me levou a proceder assim? Um prazer destruidor, por certo... Deixá-lo... Fiz mal em gastar tinta com semelhante banalidade.

LVI
4 de janeiro (2h. madrugada).

Não consegui adormecer. Levanto-me... para confessar a verdade: amo essa desconhecida de quem ainda há pouco desdenhava!... Sim! amo-a, amo-a!... Amanhã irei procurá-la. Encontra-la-ei! O amor é o melhor dos guias...

LVII
5 de janeiro (8h. noite).

Quando em Lisboa se quer encontrar alguém, vai-se à Rua do Ouro, à tarde. Assim fiz eu hoje. Percorri-a cinco vezes... em vão! Olhei para todas as raparigas de preto. Nenhuma era a minha amada... Quem sabe? Parece-me que já nem a conheço... Ah! agora me lembro: passei ombro a ombro com uma que, ao ver-me, desviou a cara para o lado! Seria ela? Talvez... Não sei... Era... era ela... Meu Deus! Meu Deus! Como sofro...

LVIII
7 de janeiro (11h. manhã).

Tenho-a procurado por toda a parte. Não a encontrei, nem poderei encontrá-la... porque não a conheço!... Sim, a verdade é esta: já não me recordo do seu rosto!
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CVII
28 de fevereiro (5h. tarde)

Reli agora mesmo os capítulos LV a LVIII. Por eles soube que no começo do ano amava... uma desconhecida, e que estava louco de dor por não a poder encontrar... É curioso! Se não fosse tê-lo assentado nessas páginas nem sequer me recordaria do "trágico sucesso!"...
Ah! Ah! Ah!
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Dizem que toda a gente, durante a sua vida, encontra uma vez, mas uma vez só, a felicidade: os que a reconhecem, são os venturosos; os outros - a grande maioria -, os desgraçados...

Seria essa desconhecida? a minha felicidade?... Talvez, porque nunca mais a encontrarei. Ninguém pode encontrar uma pessoa que não conhece.

(Lisboa, fevereiro de 1909)

Mário de Sá-Carneiro, in: Princípio / Obras Completas. Ed. Nova Aguilar

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