terça-feira, 3 de maio de 2011

"Chique é sobreviver" - entrevista: Caio Fernando Abreu por Paulo Mohylovski

Caio Fernando Abreu
Paulo Mohykovski - No final dos anos 1980, fiz esta entrevista com o escritor Caio Fernando Abreu — uma das poucas e raras que ele concedeu em sua (breve) carreira literária. Não era todo dia que tínhamos a oportunidade de ficar diante de um escritor, que era um ícone de toda uma geração. Juntamente com Marcelo Rubens Paiva, Caio agitou o panorama literário nacional com seu livro de contos Morangos Mofados, em 1982.

Naquela tarde, Caio recebeu-me em seu apartamento na região dos Jardins, em São Paulo. Estranhei que estivesse vestindo um roupão de banho. Ainda hoje, acho que essa imagem faz parte de um sonho. Eu ainda me questiono se vi mesmo Caio Fernando Abreu de roupão de banho. Mas enfim, sentamos no sofá e ele começou a responder às minhas perguntas de uma maneira calma e pausada.

A voz de Caio era grave e profunda. Ele demorava a replicar as perguntas. Tive a impressão de que a entrevista duraria horas. Outra impressão que ficou foi de uma pessoa tensa, quase deprimida. Ele pouco sorriu durante toda a entrevista e fumou o tempo inteiro. Por mais que eu me esforçasse para tornar o ambiente mais relaxado, havia um estranhamento no ar. Sensação que nunca mais senti com nenhum outro entrevistado.

Quando fomos fazer as fotos, encontrei Caio no jornal O Estado de S.Paulo, onde ele trabalhava como copidesque. Ele estava menos tenso e mais sorridente. Fomos para a cobertura do prédio, onde ventava muito. Caio ajeitava os poucos cabelos com dificuldade. Mesmo assim, fumou um cigarro, brincou com a fotógrafa, fazendo caretas, e estava mais sorridente do que nunca.

Caio morreu em 1996. Da mesma maneira que aconteceu com Raul Seixas, depois da sua morte, a cada dia aumenta a sua popularidade, principalmente, entre as gerações mais jovens.

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Entrevista


Paulo Mohykovski - Qual foi a sua formação literária?

Caio Fernando Abreu - Comecei a ler muito cedo e lia absolutamente tudo. Com 13 anos, descobri Lawrence e a literatura inglesa, minha grande paixão. Daí, fui indo por Joyce e Virginia Woolf. Com 19 anos, eu tinha lido muito a vanguarda literária. Eu queria romper. Sempre gostei de cinema. Tentei, através da palavra, trabalhar uma linguagem cinematográfica.


PM - Você considera a sua literatura como sendo de vanguarda?

CFA - Não sei mais o que quer dizer vanguarda. Um conceito que se dispersou. Não tenho mais a preocupação de romper com coisa alguma. Tenho a preocupação de ser o mais verdadeiro e o mais claro possível. Tenho a preocupação com a beleza do texto. Como gosto muito de música, trabalho os meus textos em voz alta. E no livro que estou escrevendo há três anos, trabalho com a técnica minimalista de repetição, de coisa avançando lentamente, como um pingo d'água batendo na pedra.


PM - A literatura tende a desaparecer?

CFA - Numa época, eu lia muito antipsiquiatria. Eu me lembro de uma frase, que não sei se é do Ronald David Laing ou do David G. Cooper, que dizia: "O pior já aconteceu". Pode parar de esperar pelo mais horrível, pelo mais grave, porque já aconteceu. A gente está se movendo no meio de escombros psicológicos. Ele dizia isso em relação à psicologia humana. Em literatura a explosão nuclear já aconteceu com Ulisses de James Joyce e com Waves de Virginia Woolf. E apesar disso, continua existindo.


PM - Paul Valéry dizia que o primeiro verso de um poema era dito pelos deuses e que o resto era mão-de-obra. Você concorda com isso?

CFA - Concordo plenamente. Eu crio muito em cima de frases, que eu não sei de onde vêm, que chamo de "frases-irmãs". Essas frases, aparentemente, não estão ligadas a nada. Sou muito místico e romântico. Acredito que tenha ondas no seu cérebro que se contatam com coisas misteriosas.


PM - Você entra em transe quando escreve?

CFA - Eu fico muito esquisito quando escrevo. Fico, realmente, numa outra faixa vibratória. Acontecem coisas muito loucas. Tenho taquicardia, insônia e meu ritmo muda completamente. Eu me lembro que estava escrevendo a novela Dodecaedro, quando chegou um momento que bloqueou o texto. Eu não conseguia achar a saída. Eu estava escrevendo sobre um personagem que seria o arquétipo do signo de Sagitário. Eu tentava e não vinha nada. Na época, eu tinha uma estante bem na minha frente, com meus livros de poesia. Peguei um ao acaso e abri. Era um poema do García Lorca chamado "Poema de La Saeta", que fala sobre a constelação de Sagitário. Incorporei esse poema ao texto e consegui a sequência final da novela.


PM - A situação que você descreveu no processo de criação da novela Dodecaedro, de não estar encontrando uma saída para o prosseguimento do enredo, é a mesma situação em que os personagens viviam, presos numa casa, cercada por cães raivosos. Acontece de você se transformar naquilo que escreve?

CFA - Acontece. Às vezes, é muito grave. Morangos Mofados, por exemplo, eu acho um livro pesado, amargo, depressivo, angustiado. E me aconteceu de receber personagens de contos que já tinha escrito. Tenho um conto chamado "Sobreviventes", que é um monólogo de uma moça que está bebendo muito. Eu recebia os "Sobreviventes" de vez em quando e era muito negativo.

PM - A sua literatura é autobiográfica?

CFA - Não. Essa questão não existe, porque o único ponto de vista que você conhece sobre o mundo é seu próprio. São seus olhos que vêem, seu nariz que cheira, suas mãos que tocam. A experiência pessoal é indissociável do texto. Érico Veríssimo dizia que a cabeça do escritor é como o laboratório do Doutor Frankenstein: um braço é de uma pessoa, a cabeça é de outra, formando um personagem que é a síntese de muita gente.


PM - Você trabalha muito com a linguagem poética. Como você consegue encontrar poesia numa cidade como São Paulo?

CFA - A poesia está solta por aí. É como o filme Sid e Nancy, que é horrivelmente poético. É a estética urbana do lixo. Tem uma cena muito bonita, que é um beijo dos dois no meio da rua, quando começa a cair uma chuva de lixo, em câmera lenta, sobre eles. Isso é medonho, mas é também muito bonito. Numa cidade como São Paulo, o belo está bastante misturado com o horrível. O medonho e o maravilhoso vêm interligados.


PM - O sofrimento e o suicídio estão ligados à obra literária?

CFA - Não sei. Eu me lembro de Clarice Lispector, que dizia: "As grandes sensibilidades não passam impunes". Quanto mais você percebe o mundo, quando você capta o que se passa com outras pessoas e na sociedade, mais você fica vulnerável e sofre. Ultimamente, eu ando muito feliz. Eu tenho me debatido com esta ideia de que para criar é preciso sofrer. Acho que você pode manter a razão sobre sua criação e descobrir formas de encontrar, de acordo com a sua realidade objetiva, sem que ela te fira tanto.


PM - Você nunca pensou em suicídio?

CFA - Já tentei três vezes. Mas eu era muito jovem e faz muito tempo. Não tentaria de novo. Adoro viver. Era uma atitude um pouco literária. Achava muito chique se suicidar aos 20 anos. Mas chique é sobreviver.


PM - Você trouxe para a literatura um tipo de conteúdo até então inédito, que trata de drogas e sexo. Quais foram as suas influências para esse tipo de conteúdo?

CFA - Da própria vida. Sempre fui muito atrevido e curioso. Fui me metendo nas barras mais pesadas que se possa imaginar, até acabar me marginalizando na Europa. Sou o meu próprio personagem. A tua vida é um romance, que você está escrevendo ou um filme, que você está dirigindo. Nada é muito sério. Tudo é artifício. Há momentos em que você pode ser bandido, mocinho, anjo ou burguês. Eu sempre tive uma grande atração pela marginalidade ou pela literatura feita por marginais. Sejam marginais eróticos, como Genet ou marginais psicológicos, como Artaud. Ou a marginalidade espiritual de Virginia Woolf, que sempre me encantou muito.


PM - Você conseguiu fazer a união entre vida e literatura?

CFA - Há dois tipos de escritores. Um seria, por exemplo, o Borges, que ficou trancado a vida inteira no escritório e morava com a mãe até a velhice. O outro tipo seria como Jack Kerouac, que vai para a rua, para a sarjeta, para a vida. Qualquer um dos tipos é maravilhoso, se o trabalho dele for bom. Eu me sinto mais próximo de Kerouac. Tenho muita vontade de viver. Tenho o espírito muito aventureiro.


PM - Você se utiliza muito do recurso da citação, seja no começo ou no meio do texto. Essa é uma forma de dialogar com outros escritores?

CFA - De certa forma, sim. Há pequenas homenagens no que escrevo. Mas vivendo em 1986, em cima de milhares de anos de História, onde tudo já foi dito e feito, aquilo que você escreve vai repetir o que já foi dito. A Grécia mitológica convive com os computadores. Há um excesso de cultura e de informação e isso transparece no meu texto.


PM - Você consegue ir além da palavra ou ela é um fardo que você carrega?

CFA - Às vezes, a palavra se torna uma escravidão. Com a palavra se supõe que você domestica a realidade. Se você estiver envolvido numa relação amorosa complicada e chamá-la de neurótica, você terá a impressão de que está compreendendo a relação. Mas o neurótico pode estar só na palavra. As emoções explodem além das palavras.


PM - Você tem algum nome para o tipo de trabalho que você faz?

CFA - Numa época, eu chamava de literatura sensorial. Porque eu queria impregnar o texto de cheiros, cores, formas. Que não é nada novo. Rimbaud queria isso também. Depois eu pensava que escrevia uma ecologia das emoções, que foi numa época em que meu trabalho era muito psicológico.


PM - No tempo em que morou no bairro de Moema, perto do Parque do Ibirapuera, você escreveu alguma coisa?

CFA - Eu escrevi alguns contos. Eu morava numa casinha tão boa, tinha uma roseira tão bonita. Foi onde comecei a trabalhar nesse livro que estou escrevendo há três anos. Foi uma época muito boa. Eu tinha uma bicicleta e passeava muito pelo Ibirapuera. Era uma delícia. E, finalmente, esse último livro virá impregnado do ar de Moema.

Paulo Mohylovski, entrevista com Caio Fernando Abreu, in: Germina Literatura

6 comentários:

  1. Eu nunca tinha lido essa entrevista do Caio. Postagem maravilhosa, pois como grande fã da obra dele, a gente percebe o quão grande ele é nas declarações, na forma de pensar.

    Grande abraço, e obrigado por compartilhar essa pérola.

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  2. Nossa bela entrevista, adorei. Vou publicar no facebook se me permite. bjs

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  3. Acho que o Caio atualmente é o mais citado entre os blogs que visito.

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  4. Opa! Vai para a minha dissertação :)

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  5. Não conhecia também...

    chique mesmo é viver!

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  6. Caio lindo *-*, o melhor escritor de todos os tempos.

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