sinto tanto
tanto tento
e esse quebranto
sem nenhum talento
insiste no assunto.
Líria Porto
domingo, 20 de dezembro de 2009
sexta-feira, 18 de dezembro de 2009
quinta-feira, 17 de dezembro de 2009
Enlevo
Eu olho você grande e distante
e da sua grandeza me comovo
e da sua distância me revolto.
Olho de novo.
Procuro reter em minhas mãos sua figura
mas ela gesticula, oscila e cresce
e numa inconstância distraída
no instante exato
por trás da vida desaparece.
Um desacato.
Do meu desaponto eu me levanto
pra levar embora outro desencanto
mas você me divisa e então me chama.
Me aguarda, reclama e me convida
e minha vida nessa ansiedade por fim entrego.
E nesse amor feito de espuma colorida
nós flutuamos: você borbulha, eu escorrego,
ensaboados, você explode, eu me desintegro.
Flora Figueiredo, in: Florescência. Ed. Novo Século
e da sua grandeza me comovo
e da sua distância me revolto.
Olho de novo.
Procuro reter em minhas mãos sua figura
mas ela gesticula, oscila e cresce
e numa inconstância distraída
no instante exato
por trás da vida desaparece.
Um desacato.
Do meu desaponto eu me levanto
pra levar embora outro desencanto
mas você me divisa e então me chama.
Me aguarda, reclama e me convida
e minha vida nessa ansiedade por fim entrego.
E nesse amor feito de espuma colorida
nós flutuamos: você borbulha, eu escorrego,
ensaboados, você explode, eu me desintegro.
Flora Figueiredo, in: Florescência. Ed. Novo Século
quarta-feira, 16 de dezembro de 2009
Sobre fazer sonhar
O Fabuloso Destino de Amélie Poulain
Nunca consegui enumerar todas as coisas que eu gostava e as que você me fazia sentir. Primeiro, porque eram muitas. Segundo, porque algumas não tinham nome. Éramos extremamente felizes porque acreditávamos no amor, porque de início não víamos nada de empecilho, não víamos distancias, sejam de idades ou sejam de cidades, nós apenas vivíamos aquele presente que a vida parecia nos dar. E quando começaram surgir os planos, os sonhos, e fomos dando nomes para eles, a dar local e datas, e eu, então, parecendo um foguete a voar pelo céu de felicidade, vi você se afastando, medroso, inseguro. Mas que direito tinha eu de te fazer estar comigo todos os dias de amanhã? Que direito tinha eu de amarrar tuas mãos com a minhas? Não precisavas ter medo, tu não tinhas que arranjar uma forma de fazer tudo acontecer, tua única obrigação era me fazer sonhar.
Cáh Morandi
Cáh Morandi
terça-feira, 15 de dezembro de 2009
Biografia
Tive amigos que morriam, amigos que partiam
Outros quebravam o seu rosto contra o tempo.
Odiei o que era fácil
Procurei-me na luz, no mar, no vento.
Sophia de Mello Breyner Andresen, in: Mar Novo, 1958. / Poemas Escolhidos. Seleção Vilma Arêas. Ed. Companhia das Letras
Outros quebravam o seu rosto contra o tempo.
Odiei o que era fácil
Procurei-me na luz, no mar, no vento.
Sophia de Mello Breyner Andresen, in: Mar Novo, 1958. / Poemas Escolhidos. Seleção Vilma Arêas. Ed. Companhia das Letras
Itinerário:
Sophia de Mello Breyner Andresen
Tarde
em flor
sonho antigos dezembros
enquanto
por mim mesma
espero
olhando esse banco
vazio
e não venho.
Márcia Maia
sonho antigos dezembros
enquanto
por mim mesma
espero
olhando esse banco
vazio
e não venho.
Márcia Maia
segunda-feira, 14 de dezembro de 2009
Adeus
Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mão à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.
Meto as mãos nas algibeiras
e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro!
Era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.
Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes!
e eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.
Mas isso era no tempo dos segredos,
no tempo em que o teu corpo era um aquário,
no tempo em que os meus olhos
eram peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco, mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.
Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor...,
já se não passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.
Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.
Adeus.
Eugénio de Andrade
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mão à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.
Meto as mãos nas algibeiras
e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro!
Era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.
Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes!
e eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.
Mas isso era no tempo dos segredos,
no tempo em que o teu corpo era um aquário,
no tempo em que os meus olhos
eram peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco, mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.
Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor...,
já se não passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.
Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.
Adeus.
Eugénio de Andrade
Chico Buarque de Holanda
Chico Buarque
Entrei num restaurante com uma amiga e logo deparei com Carlinhos de Oliveira, o que me deu alegria. Olhei depois em torno. E quem é que eu vejo? Chico Buarque de Holanda. Eu disse para Carlinhos: quando meus filhos souberem que eu o vi, vão me respeitar mais. Então Carlinhos, que se sentara na nossa mesa, gritou: Chico! Ele veio, fui apresentada. Para a minha surpresa, ele disse: e eu que estive lendo você ontem!
Chico é lindo e é tímido, e é triste. Ah, como eu gostaria de dizer-lhe alguma coisa - o quê? - que diminuísse a sua tristeza.
Contei a meus filhos com quem eu estivera. E eles, se não me respeitam mais, ficaram boquiabertos.
Então eu tive uma ideia e não sei se ela irá adiante; se for, contarei a vocês. Era chamar Chico e Carlinhos para me visitar em casa. Eu os verei de novo, e sobretudo meus filhos os verão. Falei dessa ideia e um de meus filhos disse que não queria. Perguntei por quê. Respondeu: porque ele é uma personalidade. Eu lhe disse: mas você também é, aos sete anos de idade ouvia tudo de Beethoven que tínhamos e pedia mais, tanto gostava e sentia e entendia.
Mas quero respeitar meu filho. Disse-lhe: se eu convidar Chico, se ele vier, você só aperta a mão dele e, se quiser, sai da sala.
Também achei Carlinhos triste. Perguntei: por que estamos tão triste?
Respondeu: é assim mesmo.
É assim mesmo.
Clarice Lispector, in: A Descoberta do Mundo / Crônica de 04/02/1968. Ed. Rocco
Chico é lindo e é tímido, e é triste. Ah, como eu gostaria de dizer-lhe alguma coisa - o quê? - que diminuísse a sua tristeza.
Contei a meus filhos com quem eu estivera. E eles, se não me respeitam mais, ficaram boquiabertos.
Então eu tive uma ideia e não sei se ela irá adiante; se for, contarei a vocês. Era chamar Chico e Carlinhos para me visitar em casa. Eu os verei de novo, e sobretudo meus filhos os verão. Falei dessa ideia e um de meus filhos disse que não queria. Perguntei por quê. Respondeu: porque ele é uma personalidade. Eu lhe disse: mas você também é, aos sete anos de idade ouvia tudo de Beethoven que tínhamos e pedia mais, tanto gostava e sentia e entendia.
Mas quero respeitar meu filho. Disse-lhe: se eu convidar Chico, se ele vier, você só aperta a mão dele e, se quiser, sai da sala.
Também achei Carlinhos triste. Perguntei: por que estamos tão triste?
Respondeu: é assim mesmo.
É assim mesmo.
Clarice Lispector, in: A Descoberta do Mundo / Crônica de 04/02/1968. Ed. Rocco
domingo, 13 de dezembro de 2009
O menino está fora da paisagem
O menino parado no sinal de trânsito vem em minha direção e pede esmola. Eu preferia que ele não viesse. A miséria nos lembra que a desgraça existe e a morte também. Como quero esquecer a morte, prefiro não olhar o menino. Mas não me contenho e fico observando os movimentos do menino na rua. Sua paisagem é a mesma que a nossa: a esquina, os meio-fios, os postes.
Mas ele se move em outro mapa, outro diagrama. Seus pontos de referência são outros.
Como não tem nada, pode ver tudo. Vive num grande playground, onde pode brincar com tudo, desde que “de fora”. O menino de rua só pode brincar no espaço “entre” as coisas. Ele está fora do carro, fora da loja, fora do restaurante. [...]
Ele não gosta de ideias abstratas. Seu ponto de vista é o contrário do intelectual: ele não vê o conjunto nem tira conclusões históricas – só detalhes interessam. O conceito de tempo para ele é diferente do nosso. Não há segunda-feira, colégio, happy hour. Os momentos não se somam, não armazenam memórias. Só coisas “importantes”: “Está na hora do português da lanchonete despejar o lixo…” ou “estão dormindo no meu caixote…” [...]
Se não sentir fome ou dor, ele curte. Acha natural sair do útero da mãe e logo estar junto aos canos de descarga pedindo dinheiro. Ele se acha normal; nós é que ficamos anormais com a sua presença. [...]
Arnaldo Jabor
Mas ele se move em outro mapa, outro diagrama. Seus pontos de referência são outros.
Como não tem nada, pode ver tudo. Vive num grande playground, onde pode brincar com tudo, desde que “de fora”. O menino de rua só pode brincar no espaço “entre” as coisas. Ele está fora do carro, fora da loja, fora do restaurante. [...]
Ele não gosta de ideias abstratas. Seu ponto de vista é o contrário do intelectual: ele não vê o conjunto nem tira conclusões históricas – só detalhes interessam. O conceito de tempo para ele é diferente do nosso. Não há segunda-feira, colégio, happy hour. Os momentos não se somam, não armazenam memórias. Só coisas “importantes”: “Está na hora do português da lanchonete despejar o lixo…” ou “estão dormindo no meu caixote…” [...]
Se não sentir fome ou dor, ele curte. Acha natural sair do útero da mãe e logo estar junto aos canos de descarga pedindo dinheiro. Ele se acha normal; nós é que ficamos anormais com a sua presença. [...]
Arnaldo Jabor
sábado, 12 de dezembro de 2009
O ano inteiro
Aos domingos te sinto mais
sei que estás
sei que me chamas para a rua
que me levas em tuas procuras
apenas para acompanhar-te
e garimparmos os gestos
e as ausências dos vivos
as segundas não me quereres
sabes que a luta me toma
te comportas na fotografia
as terças estou conformada
às quartas me deprimo
às quintas me acendo
as sextas já sou domingo.
Helena Ortiz
sei que estás
sei que me chamas para a rua
que me levas em tuas procuras
apenas para acompanhar-te
e garimparmos os gestos
e as ausências dos vivos
as segundas não me quereres
sabes que a luta me toma
te comportas na fotografia
as terças estou conformada
às quartas me deprimo
às quintas me acendo
as sextas já sou domingo.
Helena Ortiz
sexta-feira, 11 de dezembro de 2009
Jasmim-do-cabo
Todo jardim deveria ter um jasmim-do-cabo,
aquela flor que perfuma,
embalsama,
derrama óleo grosso
nos pés da noite.
Todo jardim deveria ter um jasmim-do-cabo,
o dia transcorreria em agonia,
mas a lua viria
desatar os laços da magia
e nos tiraria o fôlego.
Todo jardim deveria ter um jasmim-do-cabo,
absorveríamos no pulmão
uma torrente de pétalas brancas
e voaríamos como anjos
tocando banjos na noite.
Raquel Naveira
aquela flor que perfuma,
embalsama,
derrama óleo grosso
nos pés da noite.
Todo jardim deveria ter um jasmim-do-cabo,
o dia transcorreria em agonia,
mas a lua viria
desatar os laços da magia
e nos tiraria o fôlego.
Todo jardim deveria ter um jasmim-do-cabo,
absorveríamos no pulmão
uma torrente de pétalas brancas
e voaríamos como anjos
tocando banjos na noite.
Raquel Naveira
quarta-feira, 9 de dezembro de 2009
Ao Linotipista
Desculpe eu estar errando tanto na máquina. Primeiro é porque minha mão direita foi queimada. Segundo, não sei por quê.
Agora um pedido: não me corrija. A pontuação é a respiração da frase, e minha frase respira assim. E, se você me achar esquisita, respeite também. Até eu fui obrigada a me respeitar.
Escrever é uma maldição.
Clarice Lispector, in: A Descoberta do Mundo / Crônica de 04/02/1968. Ed. Rocco
Agora um pedido: não me corrija. A pontuação é a respiração da frase, e minha frase respira assim. E, se você me achar esquisita, respeite também. Até eu fui obrigada a me respeitar.
Escrever é uma maldição.
Clarice Lispector, in: A Descoberta do Mundo / Crônica de 04/02/1968. Ed. Rocco
Um Telefonema
O telefone tocou, eu atendi, chamaram por mim. Em geral pergunto quem é porque nem sempre estou disposta a ser chateada.
Mas dessa vez alguma coisa na voz, doce e tímida, me fez dizer que era eu mesma que estava ao telefone. Então a voz disse: sou uma leitora sua e quero que você seja feliz. Perguntei: como é seu nome? Respondeu: uma leitora. Eu disse: mas eu quero saber seu nome para poder dizê-lo ao desejar que você seja feliz. Mas foi inútil, ela não tinha sequer diante de mim a vontade de aparecer como uma pessoa que é. Era o anonimato completo. Mas para você, de quem nem ao menos sei o nome, quero que tenha alegrias e que, se já não é casada, que encontre o homem de sua vida. Peço também que não leia tudo o que escrevo porque muitas vezes sou áspera e não quero que você receba minha aspereza.
Clarice Lispector, in: A Descoberta do Mundo / Crônica de 04/02/1968. Ed. Rocco
Mas dessa vez alguma coisa na voz, doce e tímida, me fez dizer que era eu mesma que estava ao telefone. Então a voz disse: sou uma leitora sua e quero que você seja feliz. Perguntei: como é seu nome? Respondeu: uma leitora. Eu disse: mas eu quero saber seu nome para poder dizê-lo ao desejar que você seja feliz. Mas foi inútil, ela não tinha sequer diante de mim a vontade de aparecer como uma pessoa que é. Era o anonimato completo. Mas para você, de quem nem ao menos sei o nome, quero que tenha alegrias e que, se já não é casada, que encontre o homem de sua vida. Peço também que não leia tudo o que escrevo porque muitas vezes sou áspera e não quero que você receba minha aspereza.
Clarice Lispector, in: A Descoberta do Mundo / Crônica de 04/02/1968. Ed. Rocco
terça-feira, 8 de dezembro de 2009
Nunca mais
Nunca mais
Caminharás nos caminhos naturais.
Nunca mais te poderás sentir
Invulnerável, real e densa -
Para sempre está perdido
O que mais do que tudo procuraste
A plenitude de cada presença.
E será sempre o mesmo sonho, a mesma ausência.
Sophia de Mello Breyner Andresen, in: Poesia I, 1944. / Poemas Escolhidos. Seleção Vilma Arêas. Ed. Companhia das Letras
Caminharás nos caminhos naturais.
Nunca mais te poderás sentir
Invulnerável, real e densa -
Para sempre está perdido
O que mais do que tudo procuraste
A plenitude de cada presença.
E será sempre o mesmo sonho, a mesma ausência.
Sophia de Mello Breyner Andresen, in: Poesia I, 1944. / Poemas Escolhidos. Seleção Vilma Arêas. Ed. Companhia das Letras
Itinerário:
Sophia de Mello Breyner Andresen
sábado, 5 de dezembro de 2009
Bilhetes I
Quando você se sentir sozinho pegue o seu lápis e escreva: no degrau de uma escada, à beira de uma janela, no chão do seu quarto. Escreva no ar, com o dedo na água, na parede que separa o olhar vazio do outro. Recolha a lágrima a tempo, antes que ela atravesse o sorriso e vá pingar pelo queixo. E quando a ponta dos dedos estiverem úmidas, pegue as palavras que lhe fizeram companhia e comece a lavar o escuro da noite, tanto, tanto, tanto... até que amanheça.
Rita Apoena
Rita Apoena
Do vazio
Flecha
este espaço lato
e vago,
entre princípio e fim;
elo difuso, eco,
de nós a nós,
de mim a mim;
decurso que descrevo
com seta certa
e quase às cegas.
a verdade, meu amigo,
é esta viagem rumo
a qualquer coisa bela,
que nos espera
e somos nós.
Raiça Bomfim
e vago,
entre princípio e fim;
elo difuso, eco,
de nós a nós,
de mim a mim;
decurso que descrevo
com seta certa
e quase às cegas.
a verdade, meu amigo,
é esta viagem rumo
a qualquer coisa bela,
que nos espera
e somos nós.
Raiça Bomfim
quinta-feira, 3 de dezembro de 2009
Chacrinha?!
Chacrinha
De tanto falarem em Chacrinha, liguei a televisão para seu programa que me pareceu durar mais que uma hora.
E fiquei pasma. Dizem-me que esse programa é atualmente o mais popular. Mas como? O homem tem qualquer coisa de doido, e estou usando a palavra doido no seu verdadeiro sentido. O auditório também cheio. É um programa de calouros, pelo menos o que eu vi. Ocupa a chamada hora nobre da televisão. O homem se veste com roupas loucas, o calouro apresenta o seu número e, se não agrada, a buzina do Chacrinha funciona, despedindo-o. Além do mais, Chacrinha tem algo de sádico: sente-se o prazer que tem em usar a buzina. E suas gracinhas se repetem a todo o instante - falta-lhe a imaginação ou ele é obcecado.
E os calouros? Como é deprimente. São de todas as idades. E em todas as idades vê-se a ânsia de aparecer, de se mostrar, de se tornar famoso, mesmo á custa do ridículo ou da humilhação. Vêm velhos até de setenta anos. Com exceções, os calouros, que são de origem humilde, têm ar de subnutridos. E o auditório aplaude. Há prêmios em dinheiro para os que acertarem através de cartas o número de buzinadas que Chacrinha dará; pelo menos foi assim no programa que vi. Será pela possibilidade da sorte de ganhar dinheiro, como em loteria, que o programa tem tal popularidade? Ou será por pobreza de espírito de nosso povo? Ou será que os telespectadores têm em si um pouco de sadismo que se compraz no sadismo de Chacrinha?
Não entendo. Nossa televisão, com exceções, é pobre, além de superlotada de anúncios. Mas Chacrinha foi demais. Simplesmente não entendi o fenômeno. E fiquei triste, decepcionada: eu quereria um povo mais exigente.
Clarice Lispector, in: A Descoberta do Mundo / Crônica de 07/10/1967. Ed. Rocco
E fiquei pasma. Dizem-me que esse programa é atualmente o mais popular. Mas como? O homem tem qualquer coisa de doido, e estou usando a palavra doido no seu verdadeiro sentido. O auditório também cheio. É um programa de calouros, pelo menos o que eu vi. Ocupa a chamada hora nobre da televisão. O homem se veste com roupas loucas, o calouro apresenta o seu número e, se não agrada, a buzina do Chacrinha funciona, despedindo-o. Além do mais, Chacrinha tem algo de sádico: sente-se o prazer que tem em usar a buzina. E suas gracinhas se repetem a todo o instante - falta-lhe a imaginação ou ele é obcecado.
E os calouros? Como é deprimente. São de todas as idades. E em todas as idades vê-se a ânsia de aparecer, de se mostrar, de se tornar famoso, mesmo á custa do ridículo ou da humilhação. Vêm velhos até de setenta anos. Com exceções, os calouros, que são de origem humilde, têm ar de subnutridos. E o auditório aplaude. Há prêmios em dinheiro para os que acertarem através de cartas o número de buzinadas que Chacrinha dará; pelo menos foi assim no programa que vi. Será pela possibilidade da sorte de ganhar dinheiro, como em loteria, que o programa tem tal popularidade? Ou será por pobreza de espírito de nosso povo? Ou será que os telespectadores têm em si um pouco de sadismo que se compraz no sadismo de Chacrinha?
Não entendo. Nossa televisão, com exceções, é pobre, além de superlotada de anúncios. Mas Chacrinha foi demais. Simplesmente não entendi o fenômeno. E fiquei triste, decepcionada: eu quereria um povo mais exigente.
Clarice Lispector, in: A Descoberta do Mundo / Crônica de 07/10/1967. Ed. Rocco
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