quarta-feira, 19 de agosto de 2009

A lua cheia deu na cara dela

Vânia Medeiros
Hoje perdi a palavra
O contato com ela
O amor calou-me a boca.
O amor boicotou de mim
Minha própria informação
Os planos se espatifaram contra os móveis de minha própria casa
A ação, derretida manteiga,
mela o tapete (não deve ser nada sério)
apenas tenho impotentes vontades
como a de quebrar essa merda desse telefone
que está sendo pago para alvoroçar meu coração.
Pago por mim.
Eu financio essa tortura
De não ser nunca tua voz no outro lado da linha.
Que linha móvel indecifrável que me pendura
E compromete meu ser ao I Ching infame da Telerj?
Hoje perdi a palavra.
A língua me renuncia.
O amor me empanturrou a fala
Mas eu não vou me comover.
Há um ladrão que me saqueou a alma Afanou-me o senso
Atordoou-me a calma
Mas eu não vou denunciar (não deve ser nada sério)
apenas dormi acordada
e abri as portas
quando estavam sendo arrombadas.
Os danos estão à mostra
E o ladrão diz que não houve nada.
Apenas a lua me fura os olhos e eu sou derramada
Hoje perdi a palavra.
Hoje perdi o som da minha própria caligrafia,
O trabalho sensual das minhas consoantes
Adiante perdi a estrada que ia dar
Na minha própria cozinha
Na minha, estou calada (não deve ser nada sério)
Apenas o amor chegou na hora inesperada
E deparou com máscaras gelatinosas
na minha cara Bobs nos cabelos
Tranqüilizantes sobre a saga.

Elisa Lucinda, in: Hoje é peixes e afogamentos e, dizem, março, 14, 1987

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Apetite sem esperança

Mãe eu tô com fome
eu dizia eu gritava eu mugia
minha vó zangada respondia
você não está morrendo e nem tem fome
Você tem é apetite
Você sabe que vai comer, aonde comer, o quê vai comer.
Fome não! A fome, minha neta,
a fome, meu irmão,
a fome, minha criança,
é um apetite sem esperança.
Quando há certeza de cereais, toalhas americanas,
guardanapos e alegrias da coca-colândia
não há fome de verdade.
Minha vó já dizia pra mim um futuro de Brasil.
Minha vó nem viu edifício crescer no lugar de pão
no lugar de trigo
nem viu criança com infância de semáforo
vendendo mariola barata, criança que mata
porque seu quintal tá sempre no vermelho
criança cujo ralado de joelho
dói menos do que o não morar, não existir, não contar
com a fome tenaz
Não há tenaz na escola
há só a cola de cheirar a dor doída
de um monstro estômago a roncar
um animal doído dentro do corpo a uivar
todo dia, sem boa vista, sem quinta zoológica onde morar
Com a fome das crianças brasileiras
forra-se a mesa, arma-se o banquete
dos que sempre tiveram apenas apetite.
A faminta criança foi apenas o álibi, o cardápio, o convite.
Desmamada ela cresce procurando o peito da pátria amada
uma banana, uma manga, uma feijoada
e a mãe pátria diz nada.
Tem ela apenas o horror, o descalor, a calçada
um ódio a todos os tênis dos meninos nutridos
um ódio a mochilas, a saudáveis barrigas
com contínuo furor de assaltar os relógios
um deter o tempo que é o seu verdadeiro balão
um cai-cai balão que só cai à mão armada.
A fome gera a cilada de uma pátria de não irmãos.
A gente podia ter gripe, asma, catapora, bronquite
A gente podia ter apetite mas fome não.
Minha vó bem que dizia sem errança:
fome é um apetite sem esperança.

Elisa Lucinda, in: Escrito especialmente para a Campanha Ação da Cidadania Contra a Miséria e Pela Vida, Betinho - 1993

sábado, 8 de agosto de 2009

Gustv Klimt

sua voz
faz cadente
a estrela
de meu corpo.

Mariana Botelho

Texto para uma separação

Vânia MedeirosOlhe aqui, olhos de azeviche
Vamos acertar as contas
porque é no dia de hoje
que cê vai embora daqui...
Mas antes, por obséquio:
Quer me devolver o equilíbrio?
Quer me dizer por que cê sumiu?
Quer me devolver o sono meu doril?
Quer se tocar e botar meu marcapasso pra consertar?
Quer me deixar na minha?
Quer tirar a mão de dentro da minha calcinha?
Olhe aqui, olhos de azeviche:
Quer parar de torcer pro meu fim
dentro do meu próprio estádio?
Quer parar de saxdoer no meu próprio rádio?
Vem cá, não vai sair assim...
Antes, quer ter a delicadeza de colar meu espelho?
Assim: agora fica de joelhos
e comece a cuspir todos os meus beijos.
Isso. Agora recolhe!
Engole a farta coreografia destas línguas
Varre com a língua esses anseios
Não haverá mais filho
pulsações e instintos animais.
Hoje eu me suicido ingerindo
sete caixas de anticoncepcionais.
Trata-se de um despejo
Dedetize essa chateação que a gente chamou de desejo.
Pronto: última revista
Leve também essa bobagem
que você chamou
de amor à primeira vista.
Olhos de azeviche, vem cá:
Apague esse gosto de pescoço da minha boca!
E leve esses presentes que você me deu:
essa cara de pau, essa textura de verniz.
Tire também esse sentimento de penetração
esse modo com que você me quis
esses ensaios de idas e voltas
essa esfregação
esse bob wilson erotizado
que a gente chamou de tesão.
Pronto. Olhos de azeviche, pode partir!
Estou calma. Quero ficar sozinha
eu co'a minha alma. Agora pode ir.
Gente! Cadê minha alma que estava aqui?

Elisa Lucinda

Primeiro eu quero falar de amor

Vânia Medeiros

meu amor se esparrama na grama
Meu amor se esparrama na cama
meu amor se espreguiça
meu amor deita e rola no planeta.

Chacal, in: Muito prazer, Ricardo (1971) / Belvedere. Ed. Cosac Naify

Rápido e rasteiro

Vai ter uma festa
que eu vou dançar
até o sapato pedir pra parar.

aí eu paro
tiro o sapato
e danço o resto da vida.

Chacal, in: Os Cem Melhores Poemas Brasileiros do Século. Org. Italo Moriconi. Ed. Objetiva