quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Irreversível

Muito tempo depois, o encontrei. Na plataforma da estação. E eu que tanto me esforçava para não lembrar aquele dia, em segundos e em detalhes, o revivi. A faca, o grito, a roupa rasgada. O barulho dos carros passando na estrada. A escuridão. O mato me arranhando as costas. A sede. O sangue. O desespero. A dor. E ele, o maldito, tomando posse do meu corpo como fosse entulho, lixo. Até se fartar. E me deixando ali, à beira-nada, sangrando, chorando, doendo, para morrer devagar, eternamente, a cada dia, a cada noite, a cada ano. Fingindo ter esquecido. Fingindo não sentir o medo todo o tempo ao meu lado, grudado à pele, à minha pele. Senhor e dono e amante e algoz e tirano: o medo. Por tudo isso, quando o vi parado à plataforma da estação, não hesitei. Esperei até ver a luz do trem, da locomotiva do metrô, bem perto. E o empurrei. Na correria para entrar no vagão, ninguém percebeu. E eu, naquele exato instante, criei asas. Mas não ressuscitei.

Márcia Maia

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