terça-feira, 10 de julho de 2012

Sobre uma poesia sem pureza

Rebecca Rebouché
É muito conveniente, em certas horas do dia ou da noite, observar profundamente os objetos em descanso: as rodas que percorreram grandes, poeirentas distâncias, suportando grandes cargas vegetais ou minerais, os sacos das carvoarias, os barris, as cestas, os cabos e asas dos instrumentos do carpinteiro. Deles se desprende o contato com o homem e da terra como uma lição para o torturado poeta lírico. As superfícies usadas, o gasto que as mãos infligiram às coisas, a atmosfera muitas vezes trágica e sempre patética desses objetos infunde uma espécie de atração não desprezível à realidade do mundo.

A confusa impureza dos seres humanos se percebe neles, o agrupamento, uso e desuso dos materiais, as marcas do pé e dos dedos, a constância de uma atmosfera humana inundando as coisas a partir do interno e do externo.

Assim seja a poesia que buscamos, gasta como por um ácido pelos deveres da mão, penetrada pelo suor e pela fumaça, cheirando a urina e a açucena salpicada pelas diversas profissões que se exercem dentro e fora da lei.

Uma poesia impura como traje, como um corpo, com manchas de nutrição, e atitudes vergonhosas, com pregas, observações, sonhos, vigília, profecias, declarações de amor e de ódio, bestas, arrepios, idílios, credos políticos, negações, dúvidas, afirmações, impostos.

A sagrada lei do madrigal e os decretos do tato, olfato, paladar, vista, ouvido, o desejo de justiça, o desejo sexual, o ruído do oceano, sem excluir deliberadamente nada, sem aceitar deliberadamente nada, a entrada na profundidade das coisas num ato de arrebatado amor, e o produto poesia manchado de pombas digitais, com marcas de dentes e gelo, roído talvez levemente pelo suor e pelo uso. Até alcançar essa doce superfície do instrumento tocado sem descanso, essa suavidade duríssima da madeira manejada, do orgulhoso ferro. A flor, o trigo, a água têm também essa consistência especial, esse recurso de um magnífico tato.

E não nos esqueçamos nunca da melancolia, o gasto sentimentalismo, perfeitos frutos impuros de maravilhosa qualidade esquecida, deixados de lado pelo frenético livresco: a luz da lua, o cisne ao anoitecer, “vida minha” são sem dúvida o poético elementar e imprescindível. Quem foge do mau gosto cai no gelo.

Pablo Neruda, in: Sobre Uma Poesia sem Pureza, 1935. Tradução de Eliane Zagury. *Publicado na revista Caballo Verde para la Poesía, nº 1, Madri, outubro de 1935.

3 comentários:

  1. [a poesia que respira,

    que se agita, que se derrama, grita;

    assim reclama o Poeta!]

    um imenso abraço,

    Leonardo B.

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  2. Gata garota, fazia séculos q eu não passava na blogsfera, postei e sai passeando. Teu blog tá lindo, bem como seus posts. Bem como vc.

    Bem como sempre!

    Beijos

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