quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Escova

Martha Barros
Eu tinha vontade de fazer como os dois homens que vi sentados na terra escovando osso. No começo achei que aqueles homens não batiam bem. Porque ficavam sentados na terra o dia inteiro escovando osso. Depois aprendi que aqueles homens eram arqueólogos. E que eles faziam o serviço de escovar osso por amor. E que eles queriam encontrar nos ossos vestígios de antigas civilizações que estariam enterrados por séculos naquele chão. Logo pensei de escovar palavras. Porque eu havia lido em algum lugar que as palavras eram conchas de clamores antigos. Eu queria ir atrás dos clamores antigos que estariam guardados dentro das palavras. Eu já sabia também que as palavras possuem no corpo muitas oralidades remontadas e muitas significâncias remontadas. Eu queria então escovar as palavras para escutar o primeiro esgar de cada uma. Para escutar os primeiros sons, mesmo que ainda bígrafos. Comecei a fazer isso sentado em minha escrivaninha. Passava horas inteiras, dias inteiros fechado no quarto, trancado, a escovar palavras. Logo a turma perguntou: o que eu fazia o dia inteiro trancado naquele quarto? Eu respondi a eles, meio entresonhado, que eu estava escovando palavras. Eles acharam que eu não batia bem. Então eu joguei a escova fora.

Manoel de Barros, in: Memórias Inventadas / As Infâncias de Manoel de Barros. Ed. Planeta

4 comentários:

  1. ai de mim se não fosse essa clausura pra escovar...
    - ai de nós!

    temos mesmo de terminar os dias do ano assim:

    Manoel pra cá, Manoel pra lá...

    assim que é bom!

    beijo

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  2. Uau!

    Me identifiquei muito com a escova,

    Por vezes, meus momentos,


    Menina: um ano de bençãos à Ti,

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  3. lindo texto.
    gostei dessa analogia entre ossos e palavras.

    http://www.citacoesecia.blogspot.com/

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