sexta-feira, 1 de julho de 2011

A Maria Clara Cacaia Jorge

Sampa, 1º de julho de 1982

Maria Clara,
você se foi e eu afundei numa melancolia de dar gosto, não sei se tem alguma relação, mas acho que sim, porque gostei muito que você tivesse vindo, deu vontade de ficar mais tempo, deu vontade de levar essa história até o fim - e eu não tenho a menor ideia do que você pensa a respeito, a gente não conversa sobre isso, só fica fazendo uma linha nada-tem-muita-importância, ou algo assim.

Passei dois dias praticamente na cama, na segunda à noite saí só para o tal jantar da Ana Maria, já tinha convidado 100 mil vezes, mais um bolo seria a suprema falta de educação. Mas eu não tinha nada pra dizer, e não tava também a fim de ouvir nada. Ficou no ar aquela coisa da felicidade-obrigatória, tudo muito estridente, exaustivo. Realmente não tenho paciência mais pras pessoas, ou não quero ter. Ontem, graças a Deus, o Rubens transferiu o outro jantar com a romancista cearense, e eu acabei ficando o dia todo jogado - não consegui sequer ir à aula do Viola. Li a Ópera do sabão que a Marília tinha trazido, e é correto e engraçado, mas só, vi um filme na televisão, liguei pra Sônia pedindo um help, sem entender muito o que está se passando. Hoje consegui acordar um pouco mais cedo, ainda é de manhã e vou tentar agitar um dentista à tarde, uma passada na Magliani pra entregar um recado de Tina Presser, talvez me enfie num cinema pra ver O homem elefante, depois passo na Rodoviária pra ver se encontraram seus documentos.

Um desânimo. Uma lerdeza. Um oco. Aquela velha sensação de estar jogando fora a vida, tão antiga e familiar que nem chega a ser assustadora. É horrivelmente conhecida. Claro que vai passar, também porque não tem nenhuma razão específica. Um diagnóstico diria algo como "fadiga generalizada", em todos os níveis.

A história com San Martin está resolvida. Orlando me chamou segunda à noite pra dizer que não tava a fim dele aqui dentro. Ontem ele ligou e eu passei o recado. Orlando tá estranho. Tive ontem uma forte vontade de passar uns dias em Porto Alegre. Vacilei. Até o dia 10 estou duríssimo. Além disso, teria que explicar a Nair a razão dessa folga - até agora não disse nada sobre a demissão. Sei lá. Deixa rolar.

Fiquei preocupado com o seu assalto. Segunda à noite dona Líria, e empregada, também foi assaltada. Levaram absolutamente tudo. Fiz umas histórias, contei a Sônia.

Achei você diferente. Primeiro você parecia muito triste, depois passei a achar que estava era um pouco séria, e depois ainda que estava meio distante.
Ou cansada.

Na Bandeirantes, Alceu Valença está cantando um negócio muito engraçado, chamado Fé na perua. Agora entrou Elza Maria - céus! Não sei se vou pra MPB, teria que batalhar favores, detesto. Além disso não tenho impulso.

Não consigo escrever, não tenho tentado. Fico me enganando. Tenho pensando umas coisas muito cruéis a respeito. Sempre pensei que literatura justificava minha vida. Começo a perceber que. Não sei que começo a perceber. Tenho medo de não escrever nunca mais. Escorregar cada vez mais fundo nesse esvaziamento.
Deixa pra lá.

Quase meio-dia, vou tomar banho e me vestir para as produções vespertinas. Tenho que ficar à tarde toda fora porque querem pintar por dentro a janela do meu quarto. Mudou a cor da frente. Orlando pediu também que retirassem o carpete da sala. Com tudo isso, há quase duas semanas a casa foi invadida e não consigo trabalhar em paz. Aliás, não consigo trabalhar. Está uma quarta-feira de Xangô muito bonita, cheia de sol.

Carta queixosa, depressiva. 50% é astral de gripe. A outra metade não importa muito. Pela primeira vez penso que é péssimo estar assim desocupado o dia inteiro. Bobagem.

Um beijo.
Me queira bem.
Te quero bem.

Caio

Caio Fernando Abreu, in: Caio 3 D - O Essencial da Década de 1980. Ed. Agir

5 comentários:

  1. Eu não consigo ler Caio e ficar indiferente.

    Como O quero bem, sempre...

    Caio me emociona!

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  2. Cartas literárias são ótimas. Um abraço, Yayá.

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  3. Faço do 8ª paagrafo minhas palavras.......

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  4. Como não se encantar com Caio? Ele é fantástico demais.

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  5. As vezes, tudo que existe aqui dentro é um suspiro. rs

    bacio

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