sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Nosso tempo

Salvador Dali
I

Este é tempo de partido,
tempo de homens partidos.

Em vão percorremos volumes,
viajamos e nos colorimos.
A hora pressentida esmigalha-se em pó na rua.
Os homens pedem carne. Fogo. Sapatos.
As leis não bastam. Os lírios não nascem
da lei. Meu nome é tumulto, e escreve-se
na pedra

Visito os fatos, não te encontro.
Onde te ocultas, precária síntese,
penhor de meu sono, luz
dormindo acesa na varanda?
Miúdas certezas de empréstimos, nenhum beijo
sobe ao ombro para contar-me
a cidade dos homens completos.

Calo-me, espero, decrifo.
As coisas talvez melhorem.
São tão fortes as coisas!

Mas eu não sou as coisas e me revolto.
Tenho palavras em mim buscando canal,
são roucas e duras,
irritadas, enérgicas,
comprimidas há tanto tempo,
perderam o sentido, apenas querem explodir.

Carlos Drummond de Andrade, in: A Rosa do Povo. Ed. Record

4 comentários:

  1. Palavras apenas, palavras pequenas :)

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  2. Ese é um dos poemas do Drummond q mais gosto, é perfeito!

    "Mas eu nao sou as coisas e me revolto"
    Gosto muito!

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  3. eu tenho esse livro! amo-o do início ao fim!

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  4. Palavras explodindo... com o aval de Drummond, perfeito!

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