terça-feira, 4 de maio de 2010

A Maria Clara Cacaia Jorge

Sampa, 10 de setembro/81

Maria Clara,

não vou fazer rodeio nenhum para dizer que estou muito preocupado com você. Como também não vou fazer rodeio para dizer que me senti muito magoado quando fui vê-la, no domingo. Você me conhece um pouco e sabe que eu só voltaria a sua casa se não tivesse um mínimo de amor-próprio. Ainda não tenho, não voltei. Em toda a sua atitude, você procurou deixar bem claro que estava-muito-ocupada-que-tinha-muitas-coisas-a-fazer-e-se-eu-quisesse-telefonasse-outra-hora. Haja, não é? Entenda bem: não me veja tentando reatar uma história de amor já bastante espatifada (ou talvez sim, mas você não me deu chance e a coisa mais saudável que eu podia fazer era entrar noutra). Acontece que, com ou sem cama, gosto profundamente de você. E você, faz tempo não está me dando chance de gostar de você. Sem pedir coisa alguma, além de uma certa delicadeza, de um certo estar presente e não fugindo o tempo todo.

Não estou dentro de sua cabeça, mas acho que posso compreender um pouco pelo menos, a sua confusão e a sua dor com esse problema de saúde. Mas escuta, chê: não é afastando as pessoas que te amam - como eu, por exemplo - que você vai se sentir melhor. Repito que estou preocupado com você. Fico pensando o dia inteiro, e querendo saber das coisas, que você me escreva, me ligue, que você me diga qualquer coisa para que eu possa estar ao seu lado. Você não está permitindo isso, Maria Clara Jorge, e eu não estou sabendo como agir. Entenda que eu quero estar com você, do seu lado, sabendo o que acontece. De repente me passa pela cabeça que a minha presença ou a minha insistência pode talvez irrita-lá. Então, desculpa, não insistirei mais.

Apesar de ferido naquele domingo em que você me deixou plantando na frente do seu edifício, subindo numa kombi e indo pra não sei onde, oferecendo uma carona que soou irônica, eu descendo as escadas e caminhando sozinho pelas ruas da Urca - apesar disso, te procurei no dia seguinte, quadraturas, ninguém atendia ao telefone e precisei vir embora. Eu queria dizer que eu estava com você, e a menos que você não me suporte mais, continuaria te procurando e querendo saber coisas.

Bobagens? Pois é, se quiser ria como você costuma rir para se defender. Não estou me defendendo de nada. Estou perguntando a você se permite que eu tenha carinho por você, sua idiota.

Fiquei de enviar o resultado daquele teste maluco do JB, o "Meça a sua sexualidade". Lá vai: seu tonus sexual deu 25 pontos (exatamente o mesmo meu), que significa médio. A libido deu rica (um ponto a mais seria atormentada); a minha também deu rica. As tendências mais fortes (acima de seis pontos), por ondem descrescente: cerebral, exibicionista (nove pontos); animal narcisista (oito pontos); polígama (sete pontos); homossexual (calças razoavelmente) e sádica (seis pontos). As minhas foram: narcisista, sádico (nove pontos); homossexual (oito pontos); animal, exibicionista (seis pontos). O que eu tive menos pontos (três) foi cerebral; você voyeur. É engraçado, guardei o recorte porque me parece um bom material literário.

Tá um dia luminoso de sol. Fui ao banco apanhar o $ dos meus frees e fiquei apavorado: pouquissímo. Preciso cobrar umas coisas, mas por enquanto não estou sabendo bem como passar um mês com cerca de 15 mil. Tive vontade de sentar na calçada da Augusta e chorar, mas preferi entrar numa papelaria e comprar um caderno lindo para anotar sonhos, mais uma pastinha de Oxum para guardar umas histórias novas. Tem duas, uma é muito irregular e complicada demais, chama-se "Saudade de Audrey Hepburn", creio que te falei dela. A outra me parece magnífica: é uma diálogo entre em casal, chama-se "Caixinha de Música", é um título irônico porque a coisa vai degenerando da leveza mais completa até a grande violência.

Meu relacionamento com Orlando tá um horror. Quando cheguei, a casa estava num baixo-astral de dar gosto. Ontem fiz faxina o dia inteiro, comprei flores, arrumei cantinhos. Melhorou muito. Mas é tudo muito solitário e triste. Estou cansado de segurar esta barra sozinho e não sei como vai ser. A sensação geral, em São Paulo, faz algum tempo, é de não ter mais nenhum amigo. Então fico mergulhado nas histórias que escrevo, leio, vejo e vivendo assim como por transferência. Estou um pouco com aquela expressão do Absinto de Degas.

Tudo bem. Não vou me queixar. Liguei pra você ontem, falei com Anne. Olha, não se sinta pressionada por nada disso. Nada te obriga a responder nem nada. Pode ficar em silêncio, se você tiver vontade. Mas estou aqui, continuo aqui não sei até quando, e quando e se você quiser, precisar, dê um toque. Te quero imensamente bem, fico pensando se dizendo assim, quem sabe, de repente você até acredita. Acredite.

Um beijo grande. Seu,

Caio.

Caio Fernando Abreu, in: O Essencial da Década de 80. Ed. Agir

4 comentários:

  1. Caio Fernando sempre me deixa emocionada! Adoro as cartas que ele escreveu... Quem dera eu tivesse recebido uma também. haha
    Um beijo e linda semana =*

    ResponderExcluir
  2. Gosto mais das cartas do Caio do que dos contos dele.

    ResponderExcluir
  3. Consegue como poucos adentrar em certas particularidades cotidianas!

    ResponderExcluir
  4. Nossa... lembrei de quando vc me enviou essa carta no final do ano passando, quando eu estava passando por problemas de saude com minha mãe. Ela chegou em casa eu sozinha tentando engolir o almoço quatro horas da tarde, lembro que eu desabei e chorei, chorei muito...
    Foi a palavra amiga que chegou mesmo de tão longe, nunca me esqueço, te adoro, Jeni.

    ResponderExcluir