Agora é diferente, virou venda frenética de chocolates, pacote turístico, meia dúzia de filmes bíblicos pela tevê (Victor Mature, Deborah Kerr, Jean Simmons). Mas naquele período jurássico quando nasci e cresci, Semana Santa era coisa séria. Não apenas séria, mas misteriosa. Mais que misteriosa, até mesmo um pouco aterrorizante.
Vários e vagos mistérios, alguns até hoje não esclarecidos. Não se podia comer carne — e não só na Sexta-Feira Santa, não, que hoje fazem um bacalhauzinho e pronto. A semana toda, ninguém comia carne. “O corpo de Cristo”, diziam, e era inevitável sentir-se meio canibal só em pensar num bom bife. Havia também a obrigação do silêncio. Não se podia brincar barulhento demais, rir muito alto, tinha-se que manter ar contrito, enlutado. Cantar então era um sacrilégio brabo, principalmente na Sexta- Feira, quando não se podia nem ligar o rádio. Mas se o rádio continuava funcionando — e tocando música —, por que não se podia ligá-lo? E os donos das rádios, por que perdiam tempo com as emissoras no ar se era proibido sintonizá-las? De que adianta uma rádio no ar, se ninguém escuta? Não havia resposta. Havia, isto sim, silêncios demais nas Semanas Santas de antigamente.
“Jesus morreu” era a única resposta. E lá estavam na Igreja os santos todos cobertos por panos roxos e pretos, assustadores.
Na Sexta-Feira (e por que “da Paixão” ninguém explicava), uma mórbida, lívida estátua de Cristo dentro de um caixão de vidro. Me fascinavam as gotas de sangue, rubis sobre a pele. Muitas vezes tive a tentação de arrancar uma com a unha, guardá-la só para mim. O medo do pecado mortal era o que me detinha. No dia em que Cristo está morto, diziam, cada pecado multiplicava-se por mil, pois era também o dia em que o demônio estava solto. E com toda corda, poderosíssimo. Na Sexta-Feira Santa tinha-se que andar na ponta dos pés, falar em voz muito baixa e não cometer absolutamente nenhum pecado — mesmo os mais bestas, tipo espetar bumbum de formiga com agulha de costura — para não atrair o demônio. Com ele solto, pecados normalmente leves tinham a sua gravidade multiplicada, eram capazes de arrastar alguém ao fogo dos infernos por toda a eternidade.
No Sábado de Aleluia, Jesus ressuscitava. Podia-se começar a gritar, a cantar, a dizer palavrão, enfim: a pecar à vontade outra vez. Mas ninguém explicava por que toda aquela tristeza do dia anterior, se todo mundo sabia que Cristo acabaria ressuscitando no dia seguinte. Era puro fingimento? Hoje sei, era mesmo. Ou não fingimento, mas liturgia, rito. Mistério maior era no domingo, acordar cedo para procurar pela casa toda os ninhos feitos em caixas de sapato, com papel de seda, palha e cola de farinha de trigo danada pra embolar. Os ninhos estavam cheios de ovos de chocolate deixados pelo coelhinho da Páscoa. Ótimo, claro, que criança não adora se empapuçar de sugar blues?
Mas ninguém nunca explicava qual a relação entre a morte e a ressurreição de Cristo com ovos de chocolate. E muito menos com coelhos. Galinha de Páscoa seria mais lógico. Ou pata, vá lá. Agora, coelho? E tem mais: não era coelha, era coelho mesmo. Coelho então também bota ovo? Só na Páscoa, talvez. Ou talvez apenas faça ovos, não ponha, eu refletia. Eu refletia muito naquele tempo.
Nos anos seguintes devo ter perguntado sobre isso, e até mesmo ouvido alguma resposta satisfatória. Vagamente, na minha cabeça, ronda uma lenda qualquer, talvez polonesa. Ou quem sabe misturo isso àquela tradição polonesa de pintar ovos de Páscoa (aliás, tenho um lindo que ganhei em Curitiba). Acho que não prestei atenção, pelo menos não lembro de nada. Também não quero que me expliquem agora. Tem muita coisa que, francamente, cá entre nós, não faço mesmo questão de saber.
Caio Fernando Abreu, in: Pequenas Epifanias / Crônica do Zero Hora, 1/4/1995 / Ed. Agir
Vários e vagos mistérios, alguns até hoje não esclarecidos. Não se podia comer carne — e não só na Sexta-Feira Santa, não, que hoje fazem um bacalhauzinho e pronto. A semana toda, ninguém comia carne. “O corpo de Cristo”, diziam, e era inevitável sentir-se meio canibal só em pensar num bom bife. Havia também a obrigação do silêncio. Não se podia brincar barulhento demais, rir muito alto, tinha-se que manter ar contrito, enlutado. Cantar então era um sacrilégio brabo, principalmente na Sexta- Feira, quando não se podia nem ligar o rádio. Mas se o rádio continuava funcionando — e tocando música —, por que não se podia ligá-lo? E os donos das rádios, por que perdiam tempo com as emissoras no ar se era proibido sintonizá-las? De que adianta uma rádio no ar, se ninguém escuta? Não havia resposta. Havia, isto sim, silêncios demais nas Semanas Santas de antigamente.
“Jesus morreu” era a única resposta. E lá estavam na Igreja os santos todos cobertos por panos roxos e pretos, assustadores.
Na Sexta-Feira (e por que “da Paixão” ninguém explicava), uma mórbida, lívida estátua de Cristo dentro de um caixão de vidro. Me fascinavam as gotas de sangue, rubis sobre a pele. Muitas vezes tive a tentação de arrancar uma com a unha, guardá-la só para mim. O medo do pecado mortal era o que me detinha. No dia em que Cristo está morto, diziam, cada pecado multiplicava-se por mil, pois era também o dia em que o demônio estava solto. E com toda corda, poderosíssimo. Na Sexta-Feira Santa tinha-se que andar na ponta dos pés, falar em voz muito baixa e não cometer absolutamente nenhum pecado — mesmo os mais bestas, tipo espetar bumbum de formiga com agulha de costura — para não atrair o demônio. Com ele solto, pecados normalmente leves tinham a sua gravidade multiplicada, eram capazes de arrastar alguém ao fogo dos infernos por toda a eternidade.
No Sábado de Aleluia, Jesus ressuscitava. Podia-se começar a gritar, a cantar, a dizer palavrão, enfim: a pecar à vontade outra vez. Mas ninguém explicava por que toda aquela tristeza do dia anterior, se todo mundo sabia que Cristo acabaria ressuscitando no dia seguinte. Era puro fingimento? Hoje sei, era mesmo. Ou não fingimento, mas liturgia, rito. Mistério maior era no domingo, acordar cedo para procurar pela casa toda os ninhos feitos em caixas de sapato, com papel de seda, palha e cola de farinha de trigo danada pra embolar. Os ninhos estavam cheios de ovos de chocolate deixados pelo coelhinho da Páscoa. Ótimo, claro, que criança não adora se empapuçar de sugar blues?
Mas ninguém nunca explicava qual a relação entre a morte e a ressurreição de Cristo com ovos de chocolate. E muito menos com coelhos. Galinha de Páscoa seria mais lógico. Ou pata, vá lá. Agora, coelho? E tem mais: não era coelha, era coelho mesmo. Coelho então também bota ovo? Só na Páscoa, talvez. Ou talvez apenas faça ovos, não ponha, eu refletia. Eu refletia muito naquele tempo.
Nos anos seguintes devo ter perguntado sobre isso, e até mesmo ouvido alguma resposta satisfatória. Vagamente, na minha cabeça, ronda uma lenda qualquer, talvez polonesa. Ou quem sabe misturo isso àquela tradição polonesa de pintar ovos de Páscoa (aliás, tenho um lindo que ganhei em Curitiba). Acho que não prestei atenção, pelo menos não lembro de nada. Também não quero que me expliquem agora. Tem muita coisa que, francamente, cá entre nós, não faço mesmo questão de saber.
Caio Fernando Abreu, in: Pequenas Epifanias / Crônica do Zero Hora, 1/4/1995 / Ed. Agir
Grato peo comentário! Ótimo teu blog também. Abraços!
ResponderExcluirSempre o sagrado e o profano...
ResponderExcluirCaio...........a mistura do amargor e da gentileza,do desencanto coroado de luzinhas de esperança.
ResponderExcluire você sensivel a tudo isso
adorei aqui
afagos