quarta-feira, 14 de outubro de 2015

vida áerea

Isabelle Wenzer

o quanto você quer, me diga, com frio na barriga,
proclamar norte onde seu nariz aponte, se livrar do
que não interessa, com força, abrir a cabeça, meter pés
pelas mãos, com pressa, não importa, sentar no escombro
ombro a ombro com a obra, me diga me diga, com frio
na barriga, quanto tempo perdido, quantos reais no bolso,
quantos livros não lidos, quantos minutos de espera,
quantos dentes cariados, me diga o quanto você quer isso
                                                                              [tudo
e para onde quer que envie, se você quer que embrulhe

Angélica Freitas, in: Rilke shake. Ed. Cosac Naify

terça-feira, 13 de outubro de 2015

116.

Ann Hamilton
Escrever é esquecer. A literatura é a maneira mais agradável de ignorar a vida. A música embala, as artes visuais animam, as artes vivas (como a dança e o representar) entretêm. A primeira, porém, afasta-se da vida por fazer dela um sono; as segundas, contudo, não se afastam da vida – umas porque usam de fórmulas visíveis e portanto vitais, outras porque vivem da mesma vida humana.

Não é esse o caso da literatura. Essa simula a vida. Um romance é uma história do que nunca foi e um drama é um romance dado sem narrativa. Um poema é a expressão de ideias ou de sentimentos em linguagem que ninguém emprega, pois que ninguém fala em verso.

Fernando Pessoa, in: Livro do Desassossego. Ed. Companhia das Letras

segunda-feira, 12 de outubro de 2015

As estações

Sreevatsava Vemaraju
Estão em mim as estações
como se fossem uma só
as quatro sempre estão em mim
são quatro faixas de um abismo
da aurora até o ocaso
a chuva o verde o sol o vento
sem me desvelar estão em mim
são a missão recém-nascida
e são os mortos do meu mundo
minhas ocultas estações
me fazem feliz/ sofrem em mim
cada uma delas tem um céu
e cada céu é um espelho
que fala de todos e de mim
as estações se congregam
se reconhecem e se abraçam
as quatro sempre estão em mim
sou seu fervor suas folhas mortas
seu granizo suas colheitas
sua porta aberta seus cadeados
sua insolação seus aguaceiros
como um destino estão em mim
as estações se embaralham
para se mesclar com minha vida
para se juntar com minha morte
e então fugir de mim.

Mario Benedetti, in: Correio do Tempo. Ed. Alfaguara

domingo, 11 de outubro de 2015

AGULHAS

Christian Pitschl
usei
o corpo
há tempos
com um fim
determinado

pico de neblina
álcool setenta
vala comum

hoje
oriento
meu corpo
no abismo

agulho
outros
meridianos

Chacal, in: A vida é curta pra ser pequena (2002) / Belvedere. Ed. Cosac Naify

POEMETOS

Andre Kertesz

a) manhã
Ninguém ainda. As rosas me saúdam
e eu saúdo o silêncio
das rosas.

b) ausência
Aqui ninguém
e nuvens.

c) ave
Asas suspensas em
instanteluz.

d) lua
Integralidade.
Fixidez.

e) Narciso
A flor a água a face
a flor a água
a flor.

f) primavera
Da não-espera
acontecem as
flores.

g) lago
Tensão
fria
da água: paz - em - ser.

h) espera
As janelas abertas.
A porta apenas encostada...

i) vaso
mas incomunicante.

j) fim
A ausência das rosas. O caminho
já sem ninguém, para o silêncio.

Orides Fontela, in: Helianto (1973) / Poesia Reunida. Ed. Cosac Naify