quinta-feira, 31 de julho de 2014

Plano de evasão

Ovsyanki, 2010. Aleksei Fedorchenko
Que mais podemos fazer?
Este amor é um país cansado

que não nos deixa mudar.
O medo cerca as fronteiras

e a capital é Nenhures,
cidade de perdulários

e pequenas ruas tortas
onde vem morrer a noite -

aqui estamos ambos sós,
desunidos, extraviados,

não há táxis na praceta
nem cinzeiros nos cafés

e perdemos os amigos
entre as curvas de um enredo

que deixámos de seguir.
Mas não era nada disto

o que tinha na cabeça
ao começar a escrever:

os versos chamam o escuro,
abrem os portões ao frio

e eu quero estar nas colinas
do outro lado do rio.

Rui Pires Cabral, in: Ladrador. Ed. Averno.

359.

Daniel Seung Lee
Ninguém compreende outro. Somos, como disse o poeta, ilhas no mar da vida; corre entre nós o mar que nos define e separa. Por mais que uma alma se esforce por saber o que é outra alma, não saberá senão o que lhe diga uma palavra – sombra disforme no chão do seu entendimento.  

Amo as expressões porque não sei nada do que exprimem. Sou como o mestre de Santa Marta: contento-me com o que me é dado. Vejo, e já é muito. Quem é capaz de entender? 

Talvez seja por este cepticismo do inteligível que eu encaro de igual modo uma árvore e uma cara, um cartaz e um sorriso. (Tudo é natural, tudo artificial, tudo igual.) Tudo o que vejo é para mim o só visível, seja o céu alto azul de verde branco de manhã que há-de vir, seja o esgar falso em que se contrai o rosto de quem está a sofrer perante testemunhas a morte de quem ama. 

Bonecos, ilustrações, páginas que existem e se voltam. Meu coração não está com eles nem quase minha atenção, que os percorre de fora, como uma mosca por uma papel. 

Sei eu sequer se sinto, se penso, se existo? Nada: só um esquema objectivo de cores, de formas, de expressões de que sou o espelho oscilante por vender inútil. 

Fernando Pessoa, in: Livro do Desassossego. Ed. Companhia das Letras

quarta-feira, 9 de julho de 2014

A verdadeira ternura...

Menschen am Sonntag, 1930
A verdadeira ternura não se confunde
com coisa alguma. É silenciosa.
Em vão envolves com cuidado
os meus ombros e meu colo nesta estola.
Em vão palavras carinhosas
dizes sobre o nosso primeiro amor.
Como conheço bem esses insistentes
e insatisfeitos olhares teus.

Dezembro de 1913
Tsárskoei Seló.


Anna Akhmátova, in: Antologia Poética / Tradução de Lauro Machado Coelho. Ed. L&PM

terça-feira, 8 de julho de 2014

10

Yelena Yemchuk
São muitas, seguramente, as coisas
que ainda querem ser cantadas por mim:
tudo o que mudo ressoa,
o que no escuro subterrâneo afia a pedra,
o que irrompe através da fumaça.
Ainda não ajustei contas com a chama,
nem com o vento e nem com a água...
É por isso que a minha sonolência
abre-me, de par em par, os portões
que levam à estrela da manhã.

1942
Tashként

Anna Akhmátova, in: Antologia Poética / Tradução de Lauro Machado Coelho. Ed. L&PM

No umbral da primavera são assim certos dias:

Edward Steichen, The Blue Sky, 1923 

Para N.G. Tchúlkova
No umbral da primavera são assim certos dias:
sob os montes de neve repousa a pradaria,
as árvores sussurram desnudas mas alegres
ao sopro de um vento carinhoso e elástico.
E o corpo espanta-se ao sentir-se leve
e já não reconhece a própria casa
e nem ao canto, de que já se cansara,
e uma vez mais o canta, comovido, como se fosse novo.

Primavera de 1915.
Sliepniôvo.

Anna Akhmátova, in: Antologia Poética / Tradução de Lauro Machado Coelho. Ed. L&PM