segunda-feira, 30 de setembro de 2013

Os namorados pobres

O namorado dá
flores murchas
à namorada
e a namorada come as flores
porque tem fome

Não trocam cartas
nem retratos nem anéis
porque são pobres

Mas um dia
têm muito medo
de se esquecerem
um do outro
então apanham
um cordel
do chão
cortam o cordel
e trocam alianças
feitas de cordel

Não podem
combinar encontros
porque não têm
número de telefone
nem morada
assim encontram-se
por acaso
e têm medo
de não se voltarem
a encontrar

O acaso
naõ os favorece

Decidem nunca sair
do mesmo sítio
e ficarem sempre juntos
para não se perderem
um do outro

Procuram um sítio
mas todos os sítios
têm dono
ou mudam de nome

Então retiram
dos dedos
os anéis de cordel
atam um anel
ao outro
e enforcam-se

Mas a namorada
tem de esperar
pelo namorado
porque o cordel
só dá par[a] um
de cada vez

O namorado
descansa à sombra
da figueira
e a namorada
baloiça
na figueira

O dono da figueira
zanga-se
com os namorados pobres
porque julga
que estão a roubar figos
e a andar de baloiço

Adília Lopes

domingo, 22 de setembro de 2013

cabaças / como explica o que dança em Pina – 2

Série para Pina Bausch e para tudo o que dança em Pina 

Marjorie Salvaterra
estou nessa estrada
onde tudo é escuro
fundo marinho fundo
sei meus cabelos correndo contra
sei dum caos no mais íntimo da cadência
sei do Tango em Orion
dando à luz à ordem dos trens no oriente

estou quase ao fim dessa estrada
onde tudo é terra e nada
Terra e nada
e nada sei do sonambulismo nas coisas
e nada sei do que dorme ao açucareiro
assim
assim sendo
sendo que sei do Fado em Orion
dando alguma luz à ordem que não minha

sei do Flamenco em Orion
fazendo inverno, primavera
tramando outono, inverno
testando, legando verões à nuca
essa
essa que não sabe meus cabelos correndo contra
sei
do inverno
do Samba
sei do Samba em Orion
piscando-me a luz
e nada sei do sonambulismo nos garfos
meu cabelo
estou
quase ao início dessa estrada escura
uma mão se vai à cintura
quero saber das xícaras
e dos botequins

Carla Diacov

sábado, 21 de setembro de 2013

casida a árbol de díana

coração das 22h

água morna em profundo
a noite no espelho regresso

alguma coisa em lentidão
busca o sensível

inalcançável

*

outra casida a árbol de díana

uma voz no silêncio da negra noite se insinua
silêncio presença que se embosca em minha letra-lembrança.

a duração de seu corpo, pássaro que se debate em fuga.

Nina Rizzi, in: A Duração do Deserto


quinta-feira, 19 de setembro de 2013

volta em aberto

berserker
Ambígua volta
em torno da ambígua ida,
quantas ambiguidades
se pode cometer na vida?
Quem parte leva um jeito
de quem traz a alma torta.
Quem bate mais na porta?
Quem parte ou quem torna?

Paulo Leminski, in: Distraídos venceremos, 1987 / Toda Poesia. Ed. Companhia das Letras

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

20 ANOS RECOLHIDOS

Aëla Labbé
chegou a hora de amar desesperadamente
apaixonadamente
descontroladamente
chegou a hora de mudar o estilo
de mudar o vestido
chegou atrasada como um trem atrasado
mas que chega

Chacal, in: 26 Poetas Hoje. Org. Heloísa Buarque Hollanda. Ed. Aeroplano

terça-feira, 17 de setembro de 2013

meio-frio [fragmento]

L'Eclisse
tem um fio de saudade
entre eu e você
tem um fio de sangue recém-passado

Chacal, in: 26 Poetas Hoje. Org. Heloísa Buarque Hollanda. Ed. Aeroplano

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

A Luciano Alabarse

Sampa, 28 de maio/84.

Luciano, querido,
foram muitas correrias, não deu pra gente se ver nem falar direito. Pena. Mas there will be time, there will be time. Cheguei quarta de Porto, na quinta fui para Piracicaba (foi ótimo), voltei sexta e ontem, domingo, mudei.
A casa — bem, a casa é ótima! Simpaticíssima e grande, tem dois quartos aqui dentro, mais dois lá fora e — pasme — uma roseira no pátio. Ricardo Blat vem amanhã do Rio para tratarmos das coisas objetivas, aluguel, contas. Eu meio perdido em relação às coisas tipo cai-na-real, mas com uma certeza boa & inabalável que tudo- tudo-vai-dar-pé.

E vai. Minha sinopse foi aprovada por Bruna/Ricceili/Guga, virou pré-roteiro para talvez inaugurar a série. Hoje tem reunião e, a partir do dia 10, já começamos a receber. Estou ainda na função de desarrumar malas e arrumar cantinhos, não tive tempo para pôr no papel as histórias para Regina. Mas vai sair.

Hoje é o primeiro dia que fico só em cerca de 20 dias.

Tenho aprendido coisas que ainda estão vagas dentro de mim, mal comecei a elaborá-las. São coisas mais adultas, acho. Tem sido bom. Amigos cintilam em volta, estendem a mão na hora certa. Você vai se enriquecendo em fé. Carta rapidinha & dispersa. Estou a postos para a estréia de Reunião ¹ — dia 13 tenho que estar em Londrina para uma palestra, dia 14 estarei aí, morto de saudade & curiosidade.

A cidade está inacreditavelmente cheia de shows e filmes e peças — tem de Alberta Hunter a Arrigo Barnabé, passando por Caetano, Nana, Marina e até Belchior (de volta: Tania Faillace gostaria). Fui ver Christine, a história do automóvel tarado, e adorei. Vi Purgatório, do Mário Prata, mas é abobrinha demais.

Pessoal dos Morangos entusiasmado: pintou $ para a produção e já estão fazendo ensaios corridos. Amanhã começo a acompanhá-los.² Venha quando quiser, ligue, chame, escreva — tem espaço na casa e no coração, só não se perca de mim. Vai a nova direção, votos de bons ensaios e um grande beijo do seu

Caio F.

PS — Beijo no Emesto

¹ Trata-se da peça Reunião de família, adaptada por Caio do romance homônimo de Lya Luft e dirigida por Luciano Alabarse, tendo no elenco Clélia Alabarse, Eliane Steinmetz (a Gorda) e Ivan Matos, entre outros.
² Morangos mofados foi levado à cena em 1985, com direção de Paulo Yutaka.

Caio Fernando Abreu, in: Cartas. Org. Italo Moriconi. Ed. Aeroplano

A Charles Kiefer

Rio de Janeiro, 24 de maio de 1983

Charles,
é rápido (mas espero que não rasteiro), só pra te dar notícias. Bem, finalmente estou aqui, e me sentindo muito bem, num lugar fantástico (o Hotel Santa Teresa, em cima do morro), meio tropical, meio colonial, meio bávaro. Meio muito. Meu quarto dá para uma enorme jaqueira e, atrás dela e de uma infinidade de telhadinhos, vejo a cidade lá embaixo. O sol se põe bem na frente. Tenho respirado horrores.

Disciplinei minha vida: acordo às 7h30, nado duas horas, faço refeições em horas exatas. Escrevo no mínimo quatro horas por dia. Nas outras, caminho pelo morro ou desço à cidade — uma barra lá embaixo, fico louco pra subir de novo. Estou ficando saudável, bonito & corado. Uma gracinha. Só me falta agora arrumar um Grande Amor, assim mesmo, com maiúsculas. Virá logo: a cidade é mágica, sensual, afetiva, tesuda.

Não foi possível escrever a você antes de vir. Muita loucura. Desmontar a casa foi uma trip entre o divino e o diabólico: eu não sabia se era um demônio punk ou um anjo caído dos céus. Talvez os dois. Quem sabe nenhum? Também andava escrevendo furiosamente. Aliás, andava fazendo tudo furiosamente. O livro está pronto, e eu não posso (obrigado pelo convite) ceder O marinheiro nem qualquer outra das três novelas à Mercado Aberto: elas formam um tripé (?), uma trilogia (?) in-se-pa-rá-vel. Por isso mesmo, o livro chama-se Triângulo das águas (a água dos rios, dos mares, da chuva). Passam-se à noite. Terminam ao amanhecer. E assim que me sinto: amanhecendo.

Não sei até quando será possível segurar a barra econômica daqui. Estou desempregadíssimo com uma grana pra segurar uns três meses, só. Depois não sei. Por enquanto termino o livro, e olho, cheiro, sinto gostos, ouço, toco. São Paulo quase que me mata, tchê. Isola. 

É de tardezinha, agora. Começou a chover. Eu tinha pensado em descer de bondinho para ir ao cinema ver Lili Marlene, de Fassbinder. Melhor ficar. Tem pessoas absurdas aqui em cima: velhinhos, estrangeiros artistas. Faço amizade aos poucos, gaúcho de fronteira. Leio Jean Genet. Comprei um incenso delicioso hoje (gardênia). Tenho trepado muito: as culpas vão se diluindo. Ser feliz é uma obrigação.

Te quero bem. Espero notícias. O telefone daqui é (021)222- 4088. O endereço vai no verso do envelope. Um abraço grande do seu

Caio F.
(o primo de Christiane)¹

¹Caio gostava de se assinar Caio F. Em diversas cartas ele faz jogos entre essa assinatura e a de Christiane F., a adolescente alemã cujas experiências são relatadas no livro Eu, Christiane F., 13 anos, drogada e prostituída, lançado no Brasil em 1982, atualmente em sua 40ª edição, pela Bertrand Brasil.

Caio Fernando Abreu, in: Cartas. Org. Italo Moriconi. Ed. Aeroplano

domingo, 8 de setembro de 2013

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o pássaro
caminha sobre o muro esquecido das asas
e pia
embora saiba todos os mistérios do canto
sou eu
o pássaro cinzento sobre este muro branco

Nydia Bonetti

quinta-feira, 5 de setembro de 2013

volta

Brian Rea
esses dias de tédio
em que se tem tempo –
tempo só se arranja quando
não se tem
quando sobra desse jeito
a gente repete os assuntos
o ônibus chega rápido
e os trajetos ficam curtos
– de repente
readaptar-se à própria casa
como foi lá? bom
rever os gigantes, os mínimos
dedicar a eles igual dose
de carinho ou indiferença
usar as roupas que ficaram
meses dobradas no armário
com cheiro de sachê
nessas tardes sem compromisso
esticadas com rolo de macarrão
tudo é longo
nada dura

Alice Sant'Anna

quarta-feira, 4 de setembro de 2013

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Elizabeth Builes

Frutas que só ficam
Maduras depois de colhidas
Minhas velhas conhecidas

Paulo Leminski, in: Quarenta clics em Curitiba [1976] / Toda Poesia. Ed. Companhia das Letras

terça-feira, 3 de setembro de 2013

7.

vontade constante
de dizer te quero tanto
dela me distraio

mas você me abraça
e de repente todo
o mundo não tem
membros superiores

e então me beija
eu poderia matar
todas as plantas
tenho muito ar

até que sinto
na ponta dos dedos
coragem de dizê-la.

Bruna Beber

segunda-feira, 2 de setembro de 2013

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Hope Gangloff
- Rhoda  com sua intensa abstração, com seus olhos cegos, cor de carne de caracol, não o destrói, vento oeste, quer venha à meia-noite quando as estrelas ardem, quer venha em hora mais prosaica, ao meio-dia. Ela se posta à janela e olha as chaminés e vidraças quebradas nas casas dos pobres -

Oh vento oeste, quando soprarás...
[...]

Virginia Woolf, in: As ondas. Tradução de Lya Luft. Ed. Novo Século.

domingo, 1 de setembro de 2013

Quando setembro vier

De tão azul, o céu parecerá pintado. E nós embarcaremos logo rumo à ilhas Cíclades.

Houvesse cortinas no quarto, elas tremulariam com a brisa entrando pelas janelas abertas, de manhã bem cedo. Acordei sem a menor dificuldade, espiei a rua em silêncio, muito limpa, as azaléias vermelhas e brancas todas floridas. Parecia que alguém tinha recém pintado o céu, de tão azul.

Respirei fundo. O ar puro da cidade lavava meus pulmões por dentro.
Setembro estava chegando enfim.

Na sala, encontrei a mesa posta para o café — leite e pão frescos, mamão, suco de laranja, o jornal ao lado. Comi bem devagarinho, lendo as notícias do dia. Tudo estava em paz, no Nordeste, no Oriente Médio, nas Américas Central, do Norte e do Sul. Na página policial, um debate sobre a espantosa diminuição da criminalidade. Comi, li, fumei tão devagarinho que mal percebi que estava atrasado para o trabalho. Achei prudente ligar, avisando que iria demorar um pouco.

A linha não estava ocupada. Quando o chefe atendeu, comecei a contar uma história meio longa demais, confusa demais. Só quando ele repetiu calma, calma, pela terceira vez, foi que parei de falar. Então ele disse que tinha acabado de sair de uma reunião com os patrões: tinham decidido que meu trabalho era tão bom, mas tão bom que, a partir daquele dia, eu nem precisava mais ir lá. Bastava passar todo fim de mês, para receber o salário que havia sido triplicado.

Desliguei um pouco tonto. Então, podia voltar a meu livro? Discreta e silenciosa como sempre, a empregada tinha tirado a mesa. No centro dela, agora, sobre uma toalha de renda branca, havia rosas cor de chá, aquelas que Oxum mais gosta. No escritório, abri as gavetas e apanhei a pilha de originais de três anos, manchados de café, de vinho, de tinta e umas gotas escuras que pareciam sangue. Reli rapidamente. E a chave que faltava, há tanto tempo, finalmente pintou. Coloquei papel na máquina, comecei a escrever iluminado, possuído a um só tempo por Kafka, Fitzgerald, Clarice e Fante. Não, Pedro não tinha ido embora, nem Dulce partido, nem Eliana enlouquecido. As terras de Calmaritá realmente existiam: para chegar lá, bastava tomar a estrada e seguir em frente.

Escrevi horas. Sem sentir, cheio de prazer. Quando pensava em parar, o telefone tocou. Então uma voz que eu não ouvia há muito tempo, tanto tempo que quase não a reconheci (mas como poderia esquecê-la?), uma voz amorosa falou meu nome, uma voz quente repetiu que sentia uma saudade enorme, uma falta insuportável, e que queria voltar, pediu, para irmos às ilhas gregas como tínhamos combinado naquela noite. Se podia voltar, insistiu, para sermos felizes juntos. Eu disse que sim, claro que sim, muitas vezes que sim, e aquela voz repetiu e repetia que me queria desta vez ainda mais, de um jeito melhor e para sempre agora. Os passaportes estavam prontos, nos encontraríamos no aeroporto: São Paulo/Roma/Atenas, depois Poros, Tinos, Delos, Patmos, Cíclades. Leve seu livro, disse. Não esqueça suas partituras, falei. Olhei em volta, a empregada tinha colocado para tocar A sagração da primavera, minha mala estava feita. Peguei os originais, a gabardine, o chapéu e a mala. Então desci para a limusine que me esperava e embarquei rumo a.

PS — Andaram falando que minhas crônicas estavam tristes demais. Aí escrevi esta, pra variar um pouco. Pois como já dizia Cecília/Mia Farrow em Rosa púrpura do Cairo: “Encontrei o amor. Ele não é real, mas que se há de fazer? Agente não pode ter tudo na vida...” Fred e Ginger dançam vertiginosamente. Começo a sorrir, quase imperceptível. Axé. E The End.

Caio Fernando Abreu, in: Pequenas Epifanias / O Estado de S. Paulo, 27/8/1986 / Ed. Agir