sexta-feira, 28 de junho de 2013

Rio, 25.06.53

Clarice: está é uma das muitas cartas para você que iniciei e não cheguei a mandar. Depois desta continuo a lhe escrever mentalmente todos os dias. Mas agora vai esta mesmo de qualquer maneira. Tive notícias suas pelo Mauro e soube também que sua irmã lhe manda toneladas de recortes de jornal - tirando assim a minha última oportunidade de me reabilitar com você. Pois apesar desta carta, me escreva, Clarice. Estou precisando receber uma carta e gostaria que fosse sua. Conte coisas, fale de seus planos, dê notícias do Maury - a quem envio um grande abraço. E outro para você, do

Fernando


Fernando Sabino e Clarice Lispector, in: Cartas Perto do Coração. Ed. Record

terça-feira, 18 de junho de 2013

Não posso dizê-lo de outro modo

virá um dia um dia virá um dia
haverá um dia
uma manhã
e teremos o que fomos somos
houve um dia
um delfim
um escabelo um pâmpano no ar
não posso dizê-lo de outro modo

quando me ponho a conversar sobre estas coisas
minha intenção é ser muito claro e muito direto
não posso dizê-lo de outro modo
virá um dia um dia virá um dia
uma manhã
e tudo será muito claro e muito desperto

Edgar Bayley, in: El día, 1968. Tradução de Renato Rezende. In: Puentes. Poesía argentina y brasileña contemporánea. Ed. Fondo de Cultura Económica. Antología bilingue. 

domingo, 16 de junho de 2013

Palavras

Rebecca Rebouché
Palavra dentro da qual estou a milhões
de anos é árvore.
Pedra também.
Eu tenho precedências para pedra.
Pássaro também.
Não posso ver nenhuma dessas palavras que
não leve um susto.
Andarilho também.
Não posso ver a palavra andarilho que
eu não tenha vontade de dormir debaixo
de uma árvore.
Que eu não tenha vontade de olhar com
espanto, de novo, aquele homem do saco
a passar como um rei de andrajos nos
arruados de minha aldeia.
E tem mais: as andorinhas,
pelo que sei, consideram os andarilhos
Como árvore.

Manoel de Barros, in: O Fazedor de Amanhecer. Ed. Salamandra

sexta-feira, 14 de junho de 2013

seo Manoel - II

Martha Barros / Gotas de Sol
Aprendi que o artista não vê apenas. Ele tem visões. A visão vem acompanhada de loucuras, de coisinhas à toa, de fantasias, de peraltagens. Eu vejo pouco. Uso mais ter visões. Nas visões vêm as imagens, todas as transfigurações. O poeta humaniza as coisas, o tempo, o vento. As coisas, como estão no mundo, de tanto vê-las nos dão tédio. Temos que arrumar novos comportamentos para as coisas. E a visão nos socorre desse mesmal.

Manoel de Barros, in: Entrevista "Caminhando para as Origens", a Bosco Martins, Cláudia Trimarco e Douglas Diegues. / Caros Amigos, 2007.

quarta-feira, 12 de junho de 2013

220

Nan Goldin
estou ligada a você por trambiques, contratos
tomadas, pactos, esparadrapos
por chaves, rejuntes, canudos, cabos
pelo sim pelos nãos
estou agarrada a você
como o cabelo à cabeça
como o verbo à gramática

portanto se você falir
se você cantar
ou se quiser riscar o mundo
num fusca caolho
estou com você
a centímetros de explicação
cantando
falindo
na estrada

e se você se perder
juro que tenho um quê de indiana jones
pra te resgatar de uma tribo canibal
e tenho um quê de canibal pra te comer no sofá florido

sujeito indefinido, já já a gente vai
ver o que a vida faz disso
por ora sintonizo tv a cabo pirata
e avisto sentido em estar contigo
agarrada a trambiques, recados
colchão, band-ais, abraços
no fundo de um ap
na superpopulada sp

Juliana Bernardo, in: Vitamina. Ed. Patuá

terça-feira, 11 de junho de 2013

81

Robert Asman
O próprio do sofista, segundo Aristófanes, é inventar novas razões. Procuremos inventar novas paixões ou reproduzir as velhas com a mesma intensidade.

Analiso mais uma vez esta conclusão, de raiz pascaliana: a verdadeira crença está entre a superstição e a libertinagem.

José Lezama Lima, Tratados en La Habana.

( --- 74 )

Julio Cortázar, in: O Jogo da Amarelinha. Tradução de Fernando de Castro Ferro. Ed. Civilização Brasileira

segunda-feira, 10 de junho de 2013

7

Joseph Lorusso
Toco a tua boca, com um dedo toco o contorno da tua boca, vou desenhando essa boca como se estivesse saindo da minha mão, como se pela primeira vez a tua boca se entreabrisse e basta-me fechar os olhos para desfazer e tudo recomeçar. Faço nascer, de cada vez, a boca que desejo, a boca que a minha mão escolheu e te desenha no rosto, uma boca eleita entre todas, com soberana liberdade eleita por mim para desenhá-la com minha mão em teu rosto e que por um acaso, que não procuro compreender, coincide exatamente com a tua boca que sorri debaixo daquela que a minha mão te desenha.

Me olhas, de perto tu me olhas, cada vez mais de perto e, então, brincamos de cíclope, olhamo-nos cada vez mais de perto e nossos olhos se tornam maiores, se aproximam entre si, sobrepõem-se e os cíclopes se olham, respirando confundidos, as bocas encontram-se e lutam debilmente, mordendo-se com os lábios, apoiando ligeiramente a língua nos dentes, brincando nas suas cavernas onde um ar pesado vai e vem com um perfume antigo e um grande silêncio. Então, as minhas mãos procuram afogar-se nos teus cabelos, acariciar lentamente a profundidade do teu cabelo enquanto nos beijamos como se tivéssemos a boca cheia de flores ou de peixes, de movimentos vivos, de fragrância obscura. E, se nos mordemos, a dor é doce; e, se nos afogamos num breve e terrível absorver simultâneo de fôlego, essa instantânea morte é bela. E já existe uma só saliva e um só sabor de fruta madura, e eu te sinto tremular contra mim, como uma lua na água.

( --- 8 )

Julio Cortázar, in: O Jogo da Amarelinha. Tradução de Fernando de Castro Ferro. Ed. Civilização Brasileira

domingo, 9 de junho de 2013

New York, 15 de dezembro de 1946. (trecho)

Clarice,
Estou muito triste por ter passado muito tempo sem te escrever e não ter ainda respondido à sua carta. Não me esqueci.

[...]

Por que estou me lembrando dessas coisas? Porque estou com saudade, saudade dos meus amigos entre os quais você naturalmente está incluída, saudade de uma rua e de um nome, de um jeito de olhar que eu já tive, da voz de minha mãe me chamando para o almoço. Estamos no inverno. Você se diz no outono mas só me lembro de uma tarde rebelde a todas as estações que um dia te trouxe numa ventania lá perto do Cinema Odeon. Depois havia um romance italiano em que a porta se abria e o vento entrava sem pedir licença. Na Suiça deve haver muito vento, há muito vento nas praias guanabarinas das quais você é Emily Brontë, segundo o Tristão. Suas cartas são trazidas pelo vento; quando você fala em maçãs redondas e vermelhas, o vento deve estar sorrindo e ventando. Clarice, não me vá escrever E O Vento Levou!

[...]

Você me pergunta por que hesito a cada carta em mandá-la. Não tire disso conclusões pessimistas a respeito da destinatária. Hesito simplesmente porque acho pouco delicado eu escrever cartas tão longas, as suas sendo tão mais curtas. Mas nessa não hesito: peço apenas que você me responda logo, com muitas notícias, contando muitos casos. E me apresso em colocar o ponto final, com um abraço de saudade.

Fernando
Fernando Sabino e Clarice Lispector, in: Cartas Perto do Coração. Ed. Record

sábado, 8 de junho de 2013

jam session

Elena Odriozola



deixo o som
do teu soul
me tocar

jazzliricamente
soo azul
como um blues

Marina Rabelo

sexta-feira, 7 de junho de 2013

sereno

Eva Armisen
não corro mais - cansei de ir à frente
a alma atrás

lado a lado posso apreciar a poesia
dar bom dia aos pássaros

Líria Porto

quinta-feira, 6 de junho de 2013

.

Room In Rome

efêmeros
meros passageiros
todos

Nydia Bonetti

quarta-feira, 5 de junho de 2013

Berna, 13 de outubro 1946. (trecho)

Fernando,
que bom receber carta sua.

[...]

Demorei tanto a responder por motivos exteriores ao prazer que tenho em receber carta sua e ao gosto de lhe responder. Por que é que você hesita em cada carta, sobre se deve ou não mandá-la? Acho que sou tão seca que corto o movimento das pessoas. E só quem é assim é que pode compreender como é ruim ser assim.

Estou aqui em pleno outono, e apesar de ser outono, apenas por ser "pleno", tem o mesmo fulgor de primavera plena, de inverno pleno - a impressão que dá é que alguma coisa está madura. Talvez sejam as maçãs,
que
são
redondas
e
vermelhas

E depois dessa extrema poesia, peço, porque estou com frio, uma esmolinha pelo amor de Deus. E para rimar digo adeus, que é rima pobre e nua, mas, ai de nós, absoluta. Recebam um abraço de saudade,

Clarice.

Clarice Lispector e Fernando Sabino, in: Cartas Perto do Coração. Ed. Record