domingo, 26 de maio de 2013

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Elina Brotherus
[...] Você continua a falar, sozinho no mundo como você deseja. Você diz que o amor sempre lhe pareceu fora de lugar, que você jamais compreendeu, que você sempre se esquivou de amar, que você sempre se quis livre para não amar. Você diz que está perdido. Você diz que você não sabe onde, dentro de que você está perdido.

Ela não escuta, ela dorme.
Você conta a história de uma criança.
O dia alcançou as janelas.

Marguerite Duras, in: A doença da morte. Tradução de Vadim Nikitin. Ed. Cosac Naify.

sábado, 4 de maio de 2013

[A um passo do pássaro, respiro]

Clara Joris - So far away

HÁ SEM DÚVIDA UM CANSAÇO. Respirar mesmo, cansa. E essa coisa toda de pensar o sentido, a relação, as relações. E as coisas, a vida, um monte de buracos. Penso em que merda de coisa sou eu, em que merda de coisa é o mundo. Eu e o mundo: pronominar o que não é pronominável. Tive de tomar distância. Eu não a suporto, e não suporto ficar longe dela, Ana. Tive de tomar e manter, tenho de tomar e manter distância, sem sair de perto, eis o manejo preciso - impreciso. Os mesmos ares, os ares mesmos, cheios de oxigênio infiltrado infiltrando-se em nossas pequenas celas, células matando o corpo no que lhe dá o com o que viver.

É preciso, não possível, porém, a distância física. É preciso, ainda, enfrentar fantasmas que substituam o fantasma perceptivo, ela me entrando olhos boca nariz poros, e eu a adentrando, e um silêncio pequeno e eu dentro, e toda ela esse emaranhamento de ciclovias desejantes, o desejo a pé, lento, querendo o contrário de si próprio.

Run, run, run...

Ana, um dos nomes de minha doença, tão minha que parece nada ter a ver comigo, com meu nome, com minha carne. Evidente que terei de voltar. Voltar sem ter ido. Não posso fugir. É pior. Sofrer, sofrê-la é, será inevitável. Queria me livrar disso, amor. Toda culpa e toda violência advêm de que não nos livramos de amar algo alguém, ainda que utilizemos outros nomes que eufemizem o amor. Tudo porque tem o corpo, acho. Sem o corpo, poderíamos não ser cavalgados pelos afetos. Tudo seria luz clara cristal, e não haveria dor e haveria apenas o silêncio líquido injetado no centro de uma rocha compacta (nesse hipótese ideal, seríamos um minério), apenas isso haveria, silêncio líquido liberando-se numa lentidão lentamente distribuindo morte ao que já é morte.

Deixar o eixo, ensolarar-me do caule mecânico e invertebrado. Nenhuma medida cautelar no horizonte de eventos. Evaporar rumo ao chão, e enrolar o vento com o grão mais consistente do meu pensamento.

O medo de palavras, dos sons delas. Amo-a sim, amo a sua bunda. Não me interesso  pelo silêncio dela. O nome é indiferente. Tenho medo. Sou um homem letrado em escrínio: fecho e calculo e vertebro o som das coisas, e enfeixo os riscos no risco preciso de uma régua mental que me orienta para o número certo de passos e por que rua.

Fly

Ana vive nessa cidade (sempre escuto necessidade, Freud explica é o caralho) e não tem olhos. Por ela, morro sempre que posso. E é isso que ela entende pouco: "o sempre que posso." Um dia serei de outra cor, Ana. Serei mouro e terei musculatura cerebral dos diabos quando sonham.

Musculatura dos diabos quando sonham: o amor é um sintoma que pode dar certo enquanto dá certo mesmo dando errado. "O amor é a forma mais difícil do egoísmo", me diz Ana.

E penso no amor por essa cidade que tem pouco a ver comigo. Mas nasci nela, nessa cidade de história historieta mambembe. Mais de um milhão de habitantes e a cidade morta e viva. Cidade-mãe, que me prende por meu gostar pouco dela, por amá-la por comodidade, por ter berço na linguagem: nasci lá. Respiro a um passo da origem, a um passo da morte. Mania besta de equidistâncias.

Wesley Peres, in: As Pequenas Mortes. Ed. Rocco