quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

tangerinas
me fazem lembrar domingos
em que o sol ardia
sob minhas
unhas
e nos vãos dos meus dentes
fiapos
deste mesmo sol

Nydia Bonetti

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Seo Manoel -- "é preciso transver o mundo".

Iluminuras de Violeta Lopiz
[...]

― Difícil de entender, me dizem, é sua poesia;
o senhor concorda?
― Para entender nós temos dois caminhos: o da
sensibilidade que é o entendimento do corpo; e
o da inteligência que é o entendimento do
espírito.
Eu escrevo com o corpo
Poesia não é para compreender, mas para
Incorporar
Entender é parede; procure ser uma árvore.

[...]

Meu olho perde as folhas quando a lesma
A gente comunga é sapo
Nossa maçã é que come Eva
Estrela é que tem firmamento
Mas se estrela fosse brejo, eu brejava.


[...]

― E como é que o senhor escreve?
― Como se bronha.
E agora peço desculpas
Estou arrumado para pedra.

Manoel de Barros, in: Arranjos para Assobio. Ed. Record

sábado, 15 de dezembro de 2012

Folheto

Jonė Reed
Sou o comprimido calmante.
Actuo em casa,
sou eficaz na repartição,
sento-me no exame,
apresento-me em tribunal,
colo minuciosamente a louça partida.
Basta que me tomes,
que me ponhas debaixo da língua,
que me engulas
com um copo de água.

Sei o que fazer na desgraça,
como aguentar a má notícia,
diminuir a injustiça,
desanuviar a falta de Deus,
escolher o chapéu de luto a condizer.
Por que esperas?
Confia na piedade química.

Wislawa Szymborska / Tradução de Elżbieta Milewska e Sérgio das Neves

sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

Girassol noturno

Lilya Corneli
Circulo às tontas
Ansiosa pelo lusco-fusco,
O legítimo anunciador da madrugada.

Busco repouso
Enviesada
Esperando o silêncio maior.

Invento purificações com água quente
Sob luz de velas imaginárias,
Num ritual santificado.

Não é de hoje que colho
Com minhas mãos ásperas
Essas dolorosas astúcias de salvação.

Isabella Maia, in: Por Cada Uma. Ed. Una

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

porralouca

Hope Gangloff
brindes 
de fúria
aguardente 
drinques de 
sangue 
drugs 

[life] é esse 
filete
de veneno
que trago 
na língua 
e guardo 
nos dentes 

[pus 
à mostra] 

banquete 
que pulsa 
veias 
vísceras 
carne crua 
carniça 

loucura seria 
bebê-la [vida] 
água com açúcar 
mastigá-la sopa 
[fria de ócio] 

sugo & mordo 
essa vida 
pútrida 
antes que ela 
[vampira] 
me engula

Valéria Tarelho

terça-feira, 11 de dezembro de 2012

A Maria Adelaide Amaral

Porto Alegre, 26 de agosto de 1983 

Levinha, querida,

depois de 10 anos de proibição pela censura, saiu, vai aí o programa. Sou suspeitos claro, mas acho lindo. Tem tido casa cheia toda noite, crítica boa, aplausos em pé, aquelas coisas.¹ Ando comovido e feliz. Vim para a estréia, aí recebi tanto carinho que fui ficando até hoje. Só volto pro Rio dia 5. 

Aproveito e mando, no fim da carta, o endereço de lá. Tá tudo indo bem. Minha cabeça melhorou demais com a saída de Sampa. Estou no momento mergulhado na revisão das últimas provas do livro novo, o Triângulo das águas, três novelas que chamo de “noturnos”, a sair em outubro pela Nova Fronteira. Tem várias homenagens, uma delas a você... Reticências de suspense! 

Escrevo meio na corrida, pra aproveitar um embalinho de saudade forte. 

Outra noite, em Gramado, falei horas sobre você. Me dê notícias, pro Rio ou pra cá (o fone daqui é 0512-33-4197). Dá um beijo em Murilo e um abraço nos guris. Diga, por favor, a Bel que penso nela com freqüência e mando nice vibs. Que você esteja feliz, em paz, produzindo. 

Todo o carinho do seu velho

Caio F. 
(o primo intelectualizado de Christiane) 

¹ Caio refere-se à montagem de sua peça Pode ser que seja só o lei eiro lófora, dirigida por Luciano Alabarse, na Casa de Cultura de Porto Alegre, após dez anos de proibiçao pela Censura do regime militar.

Caio Fernando Abreu, in: Cartas. Org. Italo Moriconi. Ed. Aeroplano

segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

Viagem

Helga Aichinger
Viajar
mas não
para

viajar
mas sem
onde

sem rota sem ciclo sem círculo
sem finalidade possível.

Viajar
e nem sequer sonhar-se
esta viagem.

Orides Fontela

domingo, 9 de dezembro de 2012

Clarice.


[...] Nem tudo o que escrevo resulta numa realização, resulta mais numa tentativa. O que também é um prazer. Pois nem tudo eu quero pegar. Às vezes, quero apenas tocar. Depois, o que toco às vezes floresce e os outros podem pegar com as duas mãos.

Clarice Lispector, in: Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres. Ed. Francisco Alves

sábado, 8 de dezembro de 2012

*

Edward Hopper
ah... o templo das dores quando se adentra
erguem-se as pontes

correntes

trancam-se imensos
portões

Nydia Bonetti

sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

A Maria Adelaide Amaral

Silvia Sala
Sampa, 15.02.82 

Levíssima¹:

Taí o Strindberg. Olha: o tamanho é por volta de 40 linhas de 70 toques, portanto duas laudas. Claaaro que pode ser duas e meia. Espero que te guste. Para que eu não enlouqueça muito, gostaria que você me entregasse lá pelo dia 22 (próxima quinta, após o feriado de quarta). Ou então 26, que é a segunda seguinte.² 

Esqueci de te falar ontem que vi o Bastidores, tava lá em Campinas, chez Hilda Hilst. Gostamos mucho. Guria, como tu é segura, chê! Parece que nunca fez outra coisa na vida a não ser dar entrevistas na tevê. Maravilha. 

Uma novidade boa: meus Morangos mofados tão saindo mês que vem (o das noivas, maio). Aguarde breve convite para ti-ti-ti de lançamento. Ia te mandar o livro hoje de manhã, mas acabei não vindo trabalhar. Ontem à noite fui ver A mulher do lado, de Truffaut, dei umas boas choradas (é liiiindo e amaaaaargo), saí meio down e acabei tomando uns vinhos talvez além da conta. 

Sinto saudade docê, todos os dias. Vai um cheirinho de alecrim e muito carinho. Seu, 

Caio, o Fernando Abreu 

¹ Os apelidos “Levinha” e “Levísisma” vêm dos 42 quilos que Maria Adelaide pesava quando Caio a conheceu. Nas palavras de Maria Adelaide, ele era muito magro, mas um dia a pegou ao colo e descobriu que ela não era magra, era levíssima.
² De novembro de 1981 a junho de 1982, Caio foi editor do periódico literário Leia Livros, de São Paulo. Aqui ele encomenda a Maria Adelaide uma resenha sobre Inferno, do dramaturgo sueco Strindberg.

Caio Fernando Abreu, in: Cartas. Org. Italo Moriconi. Ed. Aeroplano

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

1

Enzo Sellerio
Uma rede de olhares
mantém o mundo unido,
não o deixa cair.
E embora eu não saiba o que acontece com os cegos,
meus olhos vão se apoiar em costas
que podem ser de deus.
No entanto,
eles buscam outra rede, outro frio,
que anda fechando olhos com um terno emprestado
e descerra uma chuva já sem solo nem céu.
Meus olhos buscam isso
que nos faz tirar os sapatos
pra ver se há algo mais nos sustentando por baixo
ou inventar um pássaro
para averiguar se existe o ar
ou criar um mundo
para saber se há mesmo um deus
ou colocar o chapéu
para confirmar que existimos.

Roberto Juarroz, in: Poesía vertical, 1983 - 1993. Tradução de Renato Rezende. In: Puentes. Poesía argentina y brasileña contemporánea. Ed. Fondo de Cultura Económica. Antología bilingue

quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

roteiro

Djoka Ivackovic
a ave voa de dentro do poema, gargalhando, pra o meu ninho 
malemolente. 

lentos, dentes. dilacera.

Nina Rizzi, in: Tambores para N'Zinga. Ed. Multifoco

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

Mudo convite

Stefan Culev

Há palavras que vestem o seu corpo
tecem fugas:

Sangue.
Carne.
Mundo.

E há palavras que de tão silenciosas
deitam nuas:

Raul Macedo

segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

Fidelidade na encruzilhada

Angela Petsis
No sol alto, sem ostentação nem impaciência, se prolonga o teu caminho. Serenidade do que é ignorado: uma emersão futura te salvará em qualquer homem.

Esse relâmpago que torna a fraternidade possível, tanto na renúncia como na inocência e na esperança, é uma das propriedades da poesia. Mas nada autoriza o poeta a dar-lhe um nome definitivo e menos ainda a converter-se no profissional de sua dicção ou do seu descobrimento.

Usura do alucinado. Indubitavelmente, este mundo é teu. Mas só existe do teu despredimento. O poeta, testemunha da sua própria existência, coexiste com o mundo.

Todo poeta sabe que a palavra não é instrumento. É vida com os demais. Bem comum. Solidão comum. A declamação e a ortopedia do espírito ficam às margens. Impossibilidade, portanto, do poema fabricado ter acesso à terra dos homens, de alimentar sua viagem.

Afazeres da poesia: tornar toda justificação desnecessária.

Tudo ajuda, menos a retórica da pureza e a ordem dos eleitos. É preciso intercambiar na intempérie nossos sinais de reconhecimento com as coisas e com nossos irmãos.

Arriscar a incongruência para conhecer tua realidade, a realidade dos outros. Nada mais contrário ao teu próprio fluir do que a adoção de certezas de superfície.

Fatalidade das aparências. No meio do caminho, entre a concessão e o protesto, exposto a todos os excessos da ingenuidade e do cálculo, este amigo verdadeiro, este amante fiel, este lúcido conhecedor, é frequentemente confundido com seus inimigos: o narciso, o bêbado e o inconsequente.

Inevitabilidade de uma voz, de um homem real na encruzilhada, sem desprezo nem excessiva consideração pelas margens. A incandescência da palavra seu maior logro é função dos gestos silenciosos, frequentemente ignorados, do nadador sobrevivente e fraternal. Poesia modo de nadar, de estar presente, alheia às retribuições do espetáculo . Poesia irmã na solidão e no esquecimento. Poesia viril esperança entre os homens.

Edgar Bayley, in: Ni Razón ni Palabra. Tradução de Renato Rezende. In: Puentes. Poesía argentina y brasileña contemporánea. Ed. Fondo de Cultura Económica. Antología bilingue. 

domingo, 2 de dezembro de 2012

.

Katia Chausheva

Todo mundo tem um rosto
- ou deveria ter.
Por óbvia, a assertiva
se lamenta de sua conclusão.
Que tudo tem em que se diga:
eis que sou.
Ainda que por qualquer onde,
a quem perdeu a cabeça
e não tem mais a promessa
de liderança alguma
sobre si.

Roberta Tostes Daniel

sábado, 1 de dezembro de 2012

LA CALLE

Es una calle larga y silenciosa. 
Ando en tinieblas y tropiezo y caigo 
y me levanto y piso con pies ciegos 
las piedras mudas y las hojas secas 
y alguien detrás de mí también las pisa: 
si me detengo, se detiene; 
si corro, corre. Vuelvo el rostro: nadie. 
Todo está oscuro y sin salida, 
y doy vueltas y vueltas en esquinas 
que dan siempre a la calle 
donde nadie me espera ni me sigue, 
donde yo sigo a un hombre que tropieza 
y se levanta y dice al verme: nadie. 

Octavio Paz