segunda-feira, 30 de julho de 2012

IV

R de Rien
Foi Julho sim. E nunca mais esqueço.
O ouro em mim, a palavra
Irisada na minha boca
A urgência de me dizer em amor
Tatuada de memória e confidência.
Setembro em enorme silêncio
Distancia meu rosto. Te pergunto:
De Julho em mim ainda te lembras?
Disseram-me os amigos que Saturno
Se refaz este ano. E é tigre
E é verdugo. E que os amantes
Pensativos, glaciais
Ficarão surdos ao canto comovido.
E em sendo assim, amor;
De que me adianta a mim, te dizer mais?

(domingo, 2 de julho de 1995)

Hilda Hilst, in: Dez Chamamentos ao Amigos / Júbilo, memória, noviciado da paixão. Ed. Globo

domingo, 29 de julho de 2012

Água água

Barbara Cole
Menina sublunar, afogada,
que voz de prata te embala
toda desfolhada?

Tendo como um só adorno
o anel de seus vestidos,
ela própria é quem se encanta
numa canção de acalanto
presa ainda na garganta.

Olga Savary

quinta-feira, 26 de julho de 2012

Um Quarto e Meio
(...) a dor de todas as ruas vazias. sinto-me capaz de caminhar na língua aguçada deste silêncio. e na sua simplicidade, na sua clareza, no seu abismo. sinto-me capaz de acabar com esse vácuo, e de acabar comigo mesmo. a dor de todas as ruas vazias. (...)

Al Berto, in: O Medo. Ed. Lisboa: Assírio & Alvim

quarta-feira, 25 de julho de 2012

Paisagem com grão de areia

sippanont samchai
Nós o chamamos de grão de areia,
mas ele não se considera nem grão nem areia.
Vive perfeitamente bem sem um nome,
seja genérico, particular,
provisório, permanente,
incorreto ou preciso.

Nosso olhar, nosso toque nada significam para ele.
Ele não se sente observado e tocado.
E o fato de que caiu no parapeito
é uma experiência nossa, não dele.
Poderia cair em qualquer outro lugar,
sem saber se parou de cair
ou se continua caindo.

A janela tem uma bela vista do lago,
mas a vista não se vê a si mesma.
Ela existe nesse mundo
sem cor, sem formato,
sem som, sem cheiro e sem dor.

O fundo do lago existe sem chão
e sua margem, sem beira.
Sua água não se sente nem seca nem molhada
e suas ondas nem uma nem muitas.
Elas quebram surdas a seu próprio barulho
em pedras nem grandes nem pequenas.

E tudo isso sob um céu que por natureza não é céu,
onde o sol se põe sem se pôr
e se esconde sem se esconder por trás de uma nuvem indiferente,
agitada por um vento
que sopra apenas por soprar.

Um segundo passa.
Outro.
Um terceiro.
Mas esses três segundos são apenas nossos.

O tempo passou feito um mensageiro com notícias urgentes.
Mas isso é apenas nossa símile.
O personagem é inventado, sua pressa imaginária,
sua notícia desumana.

Wislawa Szymborska / Tradução de Sylvio Fraga Neto e Danuta Haczynska da Nóbrega

terça-feira, 24 de julho de 2012

fuga

Amanda Cass



durante a ida, eu vou trocando os sapatos pra confundir a sua busca. deixo pegadas falsas pra que nunca mais me encontre. durante a ida, olho pra trás e não reconheço meus rastros. na fuga, me perco de você e de mim.


Eduardo Baszczyn

segunda-feira, 23 de julho de 2012

wireless

Jean Marc Caracci
o medo de se perder, mundo
punk, desenhando à faca na água suas dúvidas, você
conversa consigo pelo espelho oxidado em terceira
pessoa, rasurando à unha o nitrato, comendo grama
por grama o retrato que lhe vem na prata
quando rói os dedos entre os campos
minados, o medo
de se perder, converse comigo, nada
mais pode ser dito depois
que o chão desaparece, mundo
junkie, jungle, os hipopótamos são os únicos
que atravessam a rua sem esmagar
as flores no asfalto, linces e gazelas
não, você está
solto no espaço, nenhum céu
desaba, permanece
imóvel na aparência do instante
em que você escorre a esmo pelas trilhas
e deleta arquivos antigos, converse
comigo, menos laços, odiar
as lembranças, o medo
de se perder, mas é justo
pra onde você
vai

Nuno Rau

cinco ou seis maneiras de se perder na cidade

Jean Marc Caracci
você tem cinco ou seis maneiras de se perder
na cidade Numa delas
o Livro dos Espíritos é um oráculo
tatuado em braile na pele
de meninas mestiças que dançam
nuas sobre lençóis grená
um cântico sufi enquanto
o sentido arde em suas vísceras e seus pés
escrevem um livro chamado
motel nosso lar Em outra
o labirinto de memórias detona
a dessublimação feroz
que você rasura no Breviário
das Horas, estação
por estação, como se isso
criasse qualquer âncora
entre você e o mundo E ainda uma
que repete ao infinito a metamorfose
em que diante do abismo você
é um poema escrito numa língua
estranha cujo último verso
esconde uma
chave As outras não
interessam

Nuno Rau

domingo, 15 de julho de 2012

Brilho de Uma Paixão
o dia é só um esboço ainda do que talvez não seja
telas em branco, tantas
outras são cores abstratas
puro concreto á vezes se impõe
viver é mesmo arte. que seja:- pintura ou palavra
um barco à vela. vento
ao acaso

Nydia Bonetti

sexta-feira, 13 de julho de 2012

Eu era apenas quanto



Eu era apenas quanto
a tua mão tocasse
ou sobre o que inclinavas,
no breu da noite, a face.

Eu era, embaixo, quanto
notavas turvo, apenas:
traços, no início, vagos;
feições, mais tarde, plenas.

Foste quem logo, ardente,
criou-me a sussurrar,
seja à direita, à esquerda,
a concha auricular.

Foste, a agitar cortinas,
quem, na umidade cava
da boca, introduziu-me
a voz que te chamava.

Eu era cego e, vindo,
sumindo-te de mim,
doaste-me a visão.
Fica um vestígio, assim.

E, assim, criam-se mundos
que são postos de lado,
girando, quando prontos,
presente abandonado.

Em meio, pois, de treva
e luz, calor e frio,
prossegue o nosso globo
seu giro no vazio.

Joseph Brodsky, in: Quase uma Elegia / Tradução de Boris Schnaiderman e Nelson Ascher

*Vídeo: Fragmento da biografia de Joseph Brodsky (Um Quarto e Meio - Poltory Komnaty Ili Sentimentalnoje Putesestvije Na Rodinu, 2009). Direção de Andrey Khrzhanovskiy

quinta-feira, 12 de julho de 2012

Yo soy...

Frida Kahlo, 1943
mis alas?
dos pétalos podridos

mi razón?
copitas de vino agrio

mi vida?
vacío bien pensado

mi cuerpo?
un tajo en la silla

mi vaivén?
un gong infantil

mi rostro?
un cero disimulado.

mis ojos?
ah! trozos de infinito

Alejandra Pizarnik, in: La Tierra más Ajena, 1955 / Poesía Completa. Ed. Lumen

terça-feira, 10 de julho de 2012

Sobre uma poesia sem pureza

Rebecca Rebouché
É muito conveniente, em certas horas do dia ou da noite, observar profundamente os objetos em descanso: as rodas que percorreram grandes, poeirentas distâncias, suportando grandes cargas vegetais ou minerais, os sacos das carvoarias, os barris, as cestas, os cabos e asas dos instrumentos do carpinteiro. Deles se desprende o contato com o homem e da terra como uma lição para o torturado poeta lírico. As superfícies usadas, o gasto que as mãos infligiram às coisas, a atmosfera muitas vezes trágica e sempre patética desses objetos infunde uma espécie de atração não desprezível à realidade do mundo.

A confusa impureza dos seres humanos se percebe neles, o agrupamento, uso e desuso dos materiais, as marcas do pé e dos dedos, a constância de uma atmosfera humana inundando as coisas a partir do interno e do externo.

Assim seja a poesia que buscamos, gasta como por um ácido pelos deveres da mão, penetrada pelo suor e pela fumaça, cheirando a urina e a açucena salpicada pelas diversas profissões que se exercem dentro e fora da lei.

Uma poesia impura como traje, como um corpo, com manchas de nutrição, e atitudes vergonhosas, com pregas, observações, sonhos, vigília, profecias, declarações de amor e de ódio, bestas, arrepios, idílios, credos políticos, negações, dúvidas, afirmações, impostos.

A sagrada lei do madrigal e os decretos do tato, olfato, paladar, vista, ouvido, o desejo de justiça, o desejo sexual, o ruído do oceano, sem excluir deliberadamente nada, sem aceitar deliberadamente nada, a entrada na profundidade das coisas num ato de arrebatado amor, e o produto poesia manchado de pombas digitais, com marcas de dentes e gelo, roído talvez levemente pelo suor e pelo uso. Até alcançar essa doce superfície do instrumento tocado sem descanso, essa suavidade duríssima da madeira manejada, do orgulhoso ferro. A flor, o trigo, a água têm também essa consistência especial, esse recurso de um magnífico tato.

E não nos esqueçamos nunca da melancolia, o gasto sentimentalismo, perfeitos frutos impuros de maravilhosa qualidade esquecida, deixados de lado pelo frenético livresco: a luz da lua, o cisne ao anoitecer, “vida minha” são sem dúvida o poético elementar e imprescindível. Quem foge do mau gosto cai no gelo.

Pablo Neruda, in: Sobre Uma Poesia sem Pureza, 1935. Tradução de Eliane Zagury. *Publicado na revista Caballo Verde para la Poesía, nº 1, Madri, outubro de 1935.

segunda-feira, 9 de julho de 2012

Por um acaso

sippanont samchai

Poderia ter acontecido.
Teve que acontecer.
Aconteceu antes. Depois. Mais perto. Mais longe.
Aconteceu, mas não com você.

Você foi salvo pois foi o primeiro.
Você foi salvo pois foi o último.
Porque estava sozinho. Com outros. Na direita. Na esquerda.
Porque chovia. Por causa da sombra.
Por causa do sol.

Você teve sorte, havia uma floresta.
Você teve sorte, não havia árvores.
Você teve sorte, um trilho, um gancho, uma trave, um freio,
um batente, uma curva, um milímetro, um instante.
Você teve sorte, o camelo passou pelo olho da agulha.

Em consequência, porque, no entanto, porém.
O que teria acontecido se uma mão, um pé,
a um passo, por um fio
de uma coincidência.

Então você está aí? A salvo, por enquanto, das tormentas em curso?
Um só buraco na rede e você escapou?
Fiquei mudo de surpresa.
Escuta,
como seu coração dispara em mim.

Wislawa Szymborska / Tradução de Sylvio Fraga Neto e Danuta Haczynska da Nóbrega

sexta-feira, 6 de julho de 2012

um bom sujeito

recebo telefonemas
demais.
eles procuram
pela criatura.
não deviam fazer isso.

nunca liguei para
Knut Hamsun ou
Ernie ou
Céline.

nunca liguei para
Salinger
nunca liguei para
Neruda.

esta noite recebi
uma chamada:

“olá. você é
Charles Bukowski?”

“sim.”

“bem, eu tenho uma
casa.”

“e?”

“um bordel.”

“entendo.”

“li seus
livros. tenho
um puteiro num barco em
Sausalito.”

“beleza.”

“quero lhe passar o meu
número de telefone. quando
você vier a San Francisco
eu lhe pago um drinque.”

“certo. me passa o
número.”

anotei-o.

“mantemos um negócio de categoria. estamos
em busca de advogados e senadores,
cidadãos da elite, assaltantes,
cafetões, e por aí vai.”

“eu ligo pra você quando
estiver por aí.”

“boa parte das garotas
lê seus livros. elas
o amam.”

“sério?”
“sério.”

nos despedimos.

gostei daquela
ligação.

Charles Bukowski, in: O Amor é Um Cão dos Diabos. Tradução de Pedro Gonzaga. Ed. L&PM

quarta-feira, 4 de julho de 2012

doidivanas

Egon Schiele
esta doida de sentires e de pedras
de nublares de viveres e de luas
de sonhares de tornados de dilúvios

esta insana das noites seculares
dos falares dos silêncios dos transtornos
das tempestades desaguares e de lama

esta louca dos amores impossíveis
das demências dos pulsares dos entornos
das claridades dos escuros e dos vãos

esta mulher como tant(r)as
habita-me

Líria Porto, in: De Lua

terça-feira, 3 de julho de 2012

imóvel

Maria Elina

neste quartoesala-eu
palavras pelo chão
entre
folhas secas e verdes.
músicas escorrem
pelas paredes.

Karina Rabinovitz, in: Poesia pra Caixinha [de fósforo]

desabafo

Maria Elina
um dia desses
viro a mesa.

viro eu mesma.

Karina Rabinovitz, in: Poesia pra Caixinha [de fósforo]

ma[e]ternidade

Maria Elina

meu coração umbilical
está, até hoje, preso
no espaço sideral.

Karina Rabinovitz, in: Poesinha pra Caixinha [de fósforo]