quarta-feira, 27 de junho de 2012

María Wernicke



[...] E as coisas vinham docemente de repente, seguindo harmonia prévia, benfazeja, em movimentos concordantes: as satisfações antes da consciência das necessidades.

João Guimarães Rosa, in: Primeiras Estorias. Ed. José Olympio

segunda-feira, 25 de junho de 2012

ana c. me supre

Delilah Woolf
"abri curiosa o céu"
"uma lâmpada queimada me contempla"

"muda feito uma coisa última"
"demito o verso como quem acena"

"é outra
a dor que dói"

Líria Porto

Somos folhas breves onde dormem

Lara Fairie
Somos folhas breves onde dormem
aves de sombra e solidão.
Somos só folhas e o seu rumor.
Inseguros, incapazes de ser flor,
até a brisa nos perturba e faz tremer.
Por isso a cada gesto que fazemos
cada ave se transforma noutro ser.

Eugénio de Andrade, in: As Mãos e os Frutos

AELO

Francesca Woodman
II

Outro, que voa: o amor,
(imaterial) peso do mundo.

Hoje, sobre mim, amor,
o peso da matéria
do mundo.

(suspensa e atônita)

A humanidade de um anjo
a angeologia de um homem.

Síntese impossível:
homemulheranjo
e o pássaro do assombro.

Roberta Tostes Daniel

quarta-feira, 20 de junho de 2012

não é fácil dizer sim não é fácil

Katia Chausheva
Foi muito fácil dizer não ao homem que me convidou para correr o mundo. Mais fácil ainda foi dizer não ao mundo, a seus convites, a seus apelos.
Foi muito fácil dizer não aos livros e às tintas. Mais fácil ainda dizer não ao pensamento.
Foi muito fácil dizer não para meus sonhos. Mais fácil ainda dizer não à minha sede.
Difícil foi dizer sim, pode ir embora.
Difícil, difícil mesmo, foi aprender a dizer sim para mim mesma.

Lia Beltrão, in: Antologia Dedo de Moça. Ed. Terracota
só quero o que seja prumo
para os meus avessos

meu endereço é onde adormeço

despertando rumos
amanheço o medo

Jane Sprenger Bodnar, in: Antologia Dedo de Moça. Ed. Terracota

sábado, 16 de junho de 2012

Rebecca Rebouché


nem sempre foi assim
eu não tinha areia nos olhos
nem neblina

Líria Porto

sexta-feira, 15 de junho de 2012



Mas sentir falta não é amar. Sentir falta é o mesmo que sentir saudade. Amar a gente ama mesmo a distância, mesmo sem sentir falta.

Claudia Nina, in: Esquecer-te de Mim. Ed. Babel

terça-feira, 12 de junho de 2012

Chagall
Teu rosto, esta aparição

do milagre de uma estrela

finda, a irradiar

na cosmoagonia,

nos meus retratos.

Roberta Tostes Daniel

segunda-feira, 11 de junho de 2012

Caso de amor

Rebecca Rebouché
Uma estrada é deserta por dois motivos: por abandono ou por desprezo. Esta que eu ando nela agora é por abandono. Chega que os espinheiros a estão abafando pelas margens. Esta estrada melhora muito de eu ir sozinho nela. Eu ando por aqui desde pequeno. E sinto que ela bota sentido em mim. Eu acho que ela manja que eu fui para a escola e estou voltando agora para revê-la. Ela não tem indiferença pelo meu passado. Eu sinto mesmo que ela me reconhece agora, tantos anos depois. Eu sinto que ela melhora de eu ir sozinho sobre seu corpo. De minha parte eu achei ela bem acabadinha. Sobre suas pedras agora raramente um cavalo passeia. E quando vem um, ela o segura com carinho. Eu sinto mesmo hoje que a estrada é carente de pessoas e de bichos. Emas passavam sempre por ela esvoaçantes. Bando de caititus a atravessavam para ver o rio do outro lado. Eu estou imaginando que a estrada pensa que eu também sou como ela: uma coisa bem esquecida. Pode ser. Nem cachorro passa mais por nós. Mas eu ensino para ela como se deve comportar na solidão. Eu falo: deixe deixe meu amor, tudo vai acabar. Numa boa: a gente vai desaparecendo igual quando Carlitos vai desaparecendo no fim de uma estrada... Deixe, deixe, meu amor.

Manoel de Barros, in: Memórias Inventadas / As Infâncias de Manoel de Barros. Ed. Planeta

sábado, 9 de junho de 2012

SIMULACRO DE UMA SOLIDÃO

Nan Goldin
8 de julho

Nós estamos em plena decadência. Eu e você estamos em plena decadência. A nossa relação está em plena decadência. Quando duas pessoas chegam a se dizer isso tranquilamente, é sinal de terra á vista. Nem tudo é um naufrágio na vida. Mas um dia eu ainda me afogo no álcool.

Ana Cristina Cesar, in: 26 Poetas Hoje. Org. Heloísa Buarque Hollanda. Ed. Aeroplano

sexta-feira, 8 de junho de 2012

MARÍTIMOS

Barbara Cole
I.

Porque és um corpo
E me afogas.
Todo um oceano
Arrastas:
Redes, vertigens,
Peixes, voragens.
Porque o teu anzol
Lanceia minha fome;
Tua isca,
Meu beijo rasga.


II.

Estiolam meus cabelos
Que não ventam
Nos teus olhos
Arremessam águas.
Furam meus cardumes de pedra.


III.

Teu corpo obcecado
Vence a matéria de rochedos.
Deito na pedra;
Quebras com sangue,
Por imaginá-la.
Acaso meu corpo,
Essa espécie de água
Viva em que ardes
O flagelo das algas.

Roberta Tostes Daniel

quarta-feira, 6 de junho de 2012

solilóquio

antes que anoiteça, e já anoiteceu, busco reencontrar-me com as palavras. inútil. partiram. todas. um riso baixo ecoa da janela. abro-a. e lá estão elas, as minhas palavras, escondidas no canteiro de hortênsias cor-de-rosa, zombando da minha aflição. se acaso se escondessem por entre as hortênsias azuis, seria menor a minha sensação de abandono e solidão?

Márcia Maia

terça-feira, 5 de junho de 2012

Trapo

Deviantart
Há uma ausência por trás do azul quase indecente dessa tarde. Uma ausência pulsando em mim. Que se estende pela casa e faz do telefone mudo, morada e reduto. E da sexta, qualquer vã e vazia segunda, terça, quarta-feira. E tu, nascedouro de amores e ausências que tens sido, percebes o quanto só me sei e sinto? Alguma vez te soubeste assim? Acaso ainda sabes de nós? De mim?

Márcia Maia

segunda-feira, 4 de junho de 2012

XXXI

Barbara Cole
Barcas
Carregando a vida
Descendo as águas.
Passam pesadas
Distantes do poeta e de sua caminhada.

Barcas
Inundadas de afago
Nas águas da meiguice.
O fulgor dos cacos
Ilumina o dorso dos afogados:
Eu soterrada
Em aguaduras escuras de velhice.

Barca é o teu nome.
E passas
Candente, clara
Navegas tua última viagem
Sobre o meu corpo molhado de palavras.

Hilda Hilst, in: Cantares. Ed. Globo

Chuva de vento

De que distância
chega essa chuva
de asas, tangida
pela ventania?

Vem de que tempo?
Noturna agora
a chuva morta
bate na porta.

(As biqueiras da infância, as lavadeiras
correm, tiram as roupas do varal,
relinchos do cavalo na campina,
tangerinas e banhos no quintal,
potes gorgolejando, tanajuras,
os gansos, a lagoa, o milharal.)

De onde vem essa
chuva trazida
na ventania?

Que rosas fez abrir?
Que cabelos molhou?

Estendo-lhe a mão: a chuva fria.

Mauro Mota, in: Itinerário. Ed. José Olympio, 1975

domingo, 3 de junho de 2012

contrassenso

Edward Hopper
gosto de colecionar silêncios
eles sempre têm algo a dizer

Marina Rabelo, in: Por Cada Uma. Ed. Una