domingo, 29 de abril de 2012

Resistência

um pote cheio
do furor que escorria dos teus olhos
guardei

porque gastamos todas
as nossas mãos

e restou inteiro
esse sentimento
enrugado

que não
passa

Mariana Botelho, in: O Silêncio Tange o Sino. Ed. Ateliê Editorial
Maria Elina
é uma cidade muito pequena
para tanta distância

é preciso
ir devagar
com os cuidados, meu pai

devagar com os cuidados

é uma cidade muito pequena
para caber tanta dor

Mariana Botelho

sexta-feira, 27 de abril de 2012

O grito

Katia Chausheva
se ao menos esta dor servisse
se ela batesse nas paredes
abrisse portas
falasse
se ela cantasse e despenteasse os cabelos

se ao menos esta dor se visse
se ela saltasse fora da garganta como um grito
caísse da janela fizesse barulho
morresse

se a dor fosse um pedaço de pão duro
que a gente pudesse engolir com força
depois cuspir a saliva fora
sujar a rua os carros o espaço o outro
esse outro escuro que passa indiferente
e que não sofre tem o direito de não sofrer

se a dor fosse só a carne do dedo
que se esfrega na parede de pedra
para doer doer doer visível
doer penalizante
doer com lágrimas

se ao menos esta dor sangrasse.

Renata Pallottini, in: Obra Poética. Ed. Hucitec

quinta-feira, 26 de abril de 2012

Lavoura Arcaica
O mundo das paixões é um mundo do desequilíbrio, é contra ele que devemos esticar o arame das nossas cercas, e com as farpas de tantas fiadas tecer um crivo estreito, e sobre este crivo emaranhar uma sebe viva, cerrada e pujante, que divida e proteja a luz calma e clara da nossa casa, que cubra e esconda dos nossos olhos as trevas que ardem do outro lado.

Raduan Nassar, in: Lavoura Arcaica. Ed. Companhia das Letras

.

Lavoura Arcaica
[...] Os olhos no teto, a nudez dentro do quarto; róseo, azul ou violáceo, o quarto é inviolável; o quarto é individual, é um mundo, quarto catedral, onde, nos intervalos da angústia, se colhe, de um áspero caule, na palma da mão, a rosa branca do desespero, pois entre os objetos que o quarto consagra estão primeiro os objetos do corpo.

Raduan Nassar, in: Lavoura Arcaica. Ed. Companhia das Letras

terça-feira, 24 de abril de 2012

21 gramas

21 Gramas
pudesse talvez um legista
dissecar-me os 21 gramas
perdidos à hora da morte
e que se crê sejam a alma
encontraria 20 gramas de vazio
um de descrença e absolutamente
nenhuma calma tampouco alma

Márcia Maia

segunda-feira, 23 de abril de 2012

cometi um erro

Charles Bukowski
me estiquei até a última prateleira do armário
e puxei de lá uma calcinha azul
e mostrei a ela e
perguntei "são suas?"

e ela olhou e disse,
"não, devem ser da cadela".

depois disso ela se foi e não a vi
desde então. não está na sua casa.
continuo passando por lá, enfiando bilhetes
debaixo da porta. volto ali e os bilhetes
continuam intocados. arranco a cruz de Malta
do retrovisor do meu carro e a amarro
com um cadarço à sua maçaneta, deixo
um livro de poemas.
ao retornar na noite seguinte tudo
continua ali.

continuo rondando as ruas em busca
daquele encouraçado cor de vinho que ela dirige
com uma bateria fraca, e as portas
pendendo das dobradiças estropiadas.

circulo pelas ruas
a um passo de chorar,
envergonhado de meu sentimentalismo e
possível amor.

um homem velho e confuso dirigindo na chuva
perguntando-se onde a boa sorte foi
parar.

Charles Bukowski, in: O Amor é Um Cão dos Diabos. Tradução de Pedro Gonzaga. Ed. L&PM

domingo, 22 de abril de 2012

O Desterro
[...] O amor não tem portas que possamos abrir e fechar, nem passagens secretas para um sótão onde possamos fazer férias dele. Toma conta de tudo em nós, envolve-nos como um lençol de tédio, sedoso, infindo. Ninguém fala deste tédio sublime, tão contrário à ação e à eficácia, imóvel inimigo do progresso do mundo. Só no trono do sonho, iluminado e funesto, o amor interessa. Prolongada, a vida torna-se demasiado curta e o amor ganha o ritmo da chuva que bate leve, levemente.

Inês Pedrosa, in: Nas Tuas Mãos. Ed. Alfaguara

sábado, 21 de abril de 2012

[da trama das ausências]

Katia Chausheva

a tua ausência
teceu em mim
um longo e áspero bordado

de silêncios
e pedras

Nydia Bonetti

sexta-feira, 20 de abril de 2012

Travessia

Barbara Cole
Ecoam lentos certos cantos, não obstante a ânsia por ouvi-los. Devoram. Devem ser decantados. Em nome do que? Do tom, do som, do prazer. Eu sigo riscando o que digo. Demolindo frases, encurtando sentenças. Só assim têm reverberado. Tudo áspero, imediato. Mas o desejo é de enchente. Continuidades que não chegam. Contiguidades que eu ataco. E se eu escrevo "eu te infinito tortuosa", isso é uma travessia. Folhas que se consomem. Flores fósseis que despertam. "Azucrina o teu cabelo de égua". Ecoa, lento ecoa o canto. Demora maré que me sangra. Acontecendo na vida os meus sussurros. Pra me livrar do tormento, pela salvação, pelo fetiche. Jogo de azar. Mormente o pranto. Esgarço a teia do dizer movendo brisas enfurecidas.

Roberta Tostes Daniel

quinta-feira, 19 de abril de 2012

Tropeço

Alone Gut
Há tanto tempo não usado, encontrei o amor, sem querer. Ontem. Jogado debaixo da cama. Empoeirado. Sem caixa, bula ou manual. Um amor, assim, abandonado. Sujo. Rasgado. Fóssil soterrado. Navio afundado há anos. Casarão com tábuas pregadas nas janelas. Lençóis brancos sobre os móveis. Um amor acostumado com o escuro. Com o frio do quarto fechado. Com a passagem rápida de um inseto no meio da madrugada. Um velho amor largado. Pronto pra ser reciclado. Um amor procurado por toda casa nos lugares errados. Nos armários limpos. Entre taças. Louças. Dentro de caixas fechadas com laços. Sob tapetes varridos. Cantos desinfetados. Um amor chamado no grito. No gemido da febre. No cochicho da oração. Um amor sumido. Necessitado. Um amor que apareceu quando quis. De repente. Em um lugar inesperado. Há tanto tempo não usado, eu, ontem, tropecei no amor. Empoeirado. Sujo.

Rasgado. Abandonado debaixo da cama. Um amor que talvez nem funcione mais.

Eduardo Baszczyn

quarta-feira, 18 de abril de 2012

tessitura

A Dupla Vida de Véronique
nem serve silêncio
imagem qualquer
toda palavra em negativa
disposição

e próprio das mãos
umas profundas umidades
de onde a memória insiste
tremula

meu desejo tão desejo

Denise Freitas
Sundari Carmody
a manhã nos obriga
a chorar
sempre

esquecer
a tosse noturna do filho

a urgência
do amor

o verbo
nosso pai
o silêncio
nosso filho

nosso rito diário
de esquecer

Mariana Botelho

terça-feira, 17 de abril de 2012

a ausência tua
que carrego nas mãos
e trago nos olhos
conversaríamos sobre
pássaros
vozes de rio
o silêncio em que moro
cantaríamos
a última estrela
tempo não
haveria
vento sim
vida
seríamos

Nydia Bonetti

segunda-feira, 16 de abril de 2012

concerto breve

Amanda Cass
aos poucos
passo da manhã
à noite
da esfuziante claridade
que entontece
à plácida penumbra azulada
do anoitecer

e me acalmo
e me sonho
uma paz de água rasa
em contínuo movimento
mansas marés
escoando sobre mim
antes que amanheça.

Márcia Maia

sábado, 14 de abril de 2012

O guardador de rebanhos - fragmento

Sequência: Ann Texter

I

Eu nunca guardei rebanhos,
Minha alma é como um pastor,
Conhece o vento e o sol
E anda pela mão das Estações
A seguir e a olhar.
Toda a paz da Natureza sem gente
Vem sentar-se a meu lado.
Mas eu fico triste como um pôr de sol
Para a nossa imaginação,
Quando esfria no fundo da planície
E se sente a noite entrada
Como uma borboleta pela janela.

Mas a minha tristeza é sossego
Porque é natural e justa
E é o que deve estar na alma
Quando já pensa que existe
E as mãos colhem flores sem ela dar por isso.

Como um ruído de chocalhos
Para além da curva da estrada,
Os meus pensamentos são contentes.
Só tenho pena de saber que eles são contentes,
Porque, se o não soubesse,
Em vez de serem contentes e tristes,
Seriam alegres e contentes.

Pensar incomoda como andar à chuva
Quando o vento cresce e parece que chove mais.

Não tenho ambições nem desejos
Ser poeta não é uma ambição minha
É a minha maneira de estar sozinho.

[...]

8/3/1914

Alberto Caeiro, in: Heterônimo de Fernando Pessoa / Obra Poética. Ed. Nova Aguilar, 1977

BOCAS ATROPELAM FALAS

17 Fois Cécile Cassard
bocas atro / pelam falas: / teu beijo / de língua aci / dentada

Marceli Andresa Becker

sexta-feira, 13 de abril de 2012

deserto

Ann Texter
palavras me exaurem
quando penso morrer à míngua
brotam-me versos como margaridas

depois da chuva
mares de areia
viram jardim

Líria Porto

quinta-feira, 12 de abril de 2012

sippanont samchai
em alguma esquina perdida no tempo
num dia qualquer
que não
sei
quando
fui
embora
de mim
retorno
agora
atônita
resta
um mergulho
no profundo oceano do esquecimento

Nydia Bonetti

8.

sippanont samchai
Nasci para administrar o à-toa
o em vão
o inútil.

Pertenço de fazer imagens.
Opero por semelhanças.
Retiro semelhanças de pessoas com árvores
de pessoas com rãs
de pessoas com pedras
etc etc.

Retiro semelhanças de árvores comigo.
Não tenho habilidade pra clarezas.
Preciso de obter sabedoria vegetal.
(Sabedoria vegetal é receber com naturalidade uma rã no talo.)
E quando esteja apropriado para pedra, terei também sabedoria mineral.

Manoel de Barros, in: Livro Sobre Nada. Ed. Record

quarta-feira, 11 de abril de 2012

EX/PLICAÇÃO

sippanont samchai
não há um
sentido único
num
poema

quando alguém
começa a ex-
plicá-lo e
chega ao fim
en-
tão só fica o
ex
do ponto de
partida

beco

(tente outra
vez)

sem saída

Haroldo de Campos, in: A Educação dos Cinco Sentidos. Ed. Brasiliense

terça-feira, 10 de abril de 2012

s.o.s. solidão

Hadley Hooper
sonho
que
comporta
outros
corpos
pesa
pouco

tenso
o pesadelo
que
suporta
cama

:
sem
soma
de
t[r]emores

Valéria Tarelho
2046 - Segredos do Amor
vontade de ficar sozinha
só para saber
se você ia
ou vinha
quando deixou
esse bagaço
no meu peito
pedaço estreito
defeito na mercadoria
do jeito que você queria

Alice Ruiz

Abril sem fumaça

Juliana Moraes

Gosto de abril. Descobri que é perfeito na hora de preparar o espírito e a casa para os dias frios que logo chegarão. Lavar cobertores, arrumar agasalhos, espalhar tapetes pelos quartos. Faz-me recordar do tear. Aquele que passou todo o verão escondido e agora parece sussurrar: “Ainda posso cumprir as promessas do inverno passado”...

Vássia Silveira

segunda-feira, 9 de abril de 2012

Felicidade perdida


É para a desconhecida

cheia de mimo e frescor,
perene fonte de vida,
singela rosa d'amor;
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Tomás Ribeiro, Dom Jaime



As linhas que adiante se seguem são extraídas do diário dum meu amigo, caráter singular e romanesco, que nas horas vagas consigna em um grosso caderno de papel almaço as suas impressões diárias.
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LV
3 de janeiro de 1909 (meia-noite)

Acabo de chegar do Ginásio. Antes de me deitar quero contar-se, papel amigo, um caso banal que me sucedeu durante o espetáculo. Escuta:
"Estava na platéia. Era no segundo intervalo. Percorria a sala distraidamente com a vista, quando de repente os meus olhos se fixaram numa frisa. Ocupavam-na uma senhora idosa, duas crianças e uma rapariga de dezoito anos. Escusado será dizer que foi esta última quem atraiu o meu olhar. O seu rosto, que eu via de perfil, era encantador. Vestia de preto. Provavelmente luto aliviado.

"O intervalo terminara. O pano subira. Sem dar a menor atenção ao que se passava no palco, continuei fitando a desconhecida que, cheia de interesse, seguia a representação... De súbito, o seu olhar encontrou-se com o meu... Não tenho nada de tímido, mas foi-me impossível sustentar o brilho dos seus olhos. Abaixei os meus.

"Este jogo de olhares durou todo o ato... durou todo o intervalo seguinte...durou até ao fim do espetáculo... Outro que não fosse eu, tê-la-ia esperado à porta, teria indagado a sua morada e depois... depois seriam as cartas de frases inflamadas, a troca de retratos: o amor alfacinha - e julgo que de toda a parte - em suma. Eu não: dirigi-me para minha casa, rapidamente..."
O que me levou a proceder assim? Um prazer destruidor, por certo... Deixá-lo... Fiz mal em gastar tinta com semelhante banalidade.

LVI
4 de janeiro (2h. madrugada).

Não consegui adormecer. Levanto-me... para confessar a verdade: amo essa desconhecida de quem ainda há pouco desdenhava!... Sim! amo-a, amo-a!... Amanhã irei procurá-la. Encontra-la-ei! O amor é o melhor dos guias...

LVII
5 de janeiro (8h. noite).

Quando em Lisboa se quer encontrar alguém, vai-se à Rua do Ouro, à tarde. Assim fiz eu hoje. Percorri-a cinco vezes... em vão! Olhei para todas as raparigas de preto. Nenhuma era a minha amada... Quem sabe? Parece-me que já nem a conheço... Ah! agora me lembro: passei ombro a ombro com uma que, ao ver-me, desviou a cara para o lado! Seria ela? Talvez... Não sei... Era... era ela... Meu Deus! Meu Deus! Como sofro...

LVIII
7 de janeiro (11h. manhã).

Tenho-a procurado por toda a parte. Não a encontrei, nem poderei encontrá-la... porque não a conheço!... Sim, a verdade é esta: já não me recordo do seu rosto!
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CVII
28 de fevereiro (5h. tarde)

Reli agora mesmo os capítulos LV a LVIII. Por eles soube que no começo do ano amava... uma desconhecida, e que estava louco de dor por não a poder encontrar... É curioso! Se não fosse tê-lo assentado nessas páginas nem sequer me recordaria do "trágico sucesso!"...
Ah! Ah! Ah!
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Dizem que toda a gente, durante a sua vida, encontra uma vez, mas uma vez só, a felicidade: os que a reconhecem, são os venturosos; os outros - a grande maioria -, os desgraçados...

Seria essa desconhecida? a minha felicidade?... Talvez, porque nunca mais a encontrarei. Ninguém pode encontrar uma pessoa que não conhece.

(Lisboa, fevereiro de 1909)

Mário de Sá-Carneiro, in: Princípio / Obras Completas. Ed. Nova Aguilar

domingo, 8 de abril de 2012

Eu tenho uma estante de livros. A maioria deles foram sequer abertos, mas eles sempre estiveram comigo. Podia tê-los jogado fora ou dar de presente. Os livros não eram meus, pertenceram ao meu pai e à minha mãe. Alguns eram mais velhos do que eu e eu briguei por eles. Sequer abertos. Peguei uma vassoura e uma pá para limpar atrás da estante e assim, desloquei-a, tomando cuidado para não deixar os livros cair. Demorei quase uma hora para movê-la, mas não consegui colocar de volta. Anos passaram e a estante deslocada permaneceu em seu não-lugar, no meio de tudo.

Rafael F. Carvalho, in: A Estante Deslocada. Ed. Patuá

sábado, 7 de abril de 2012

Alaya Gadeh
hoje sonhei ser segredo,
seu segredo,
algo distante de mim.
aquilo que mora no pulmão do maestro,
enquanto pausa, enquanto lembra, enquanto espera o som.
sonhei ser antes da pintura da nave,
antes da tinta ou das mãos,
antes da ideia.
sonhei ser segredo,
seu segredo.

Adriana Versiani

quinta-feira, 5 de abril de 2012

um sopro de vida

[...] Tinha a impressão de que já vivera tudo apesar de não poder dizer em que momentos. E ao mesmo tempo sua vida inteira parecia poder resumir-se num pequeno gesto para a frente, uma ligeira audácia e depois num recuo suave sem dor, e nenhum caminho então para onde se dirigir - sem pousar direito no solo, suspensa na atmosfera quase sem conforto, quase confortável, com a languidez cansada que precede o sono.

Clarice Lispector, in: O Lustre. Ed. Francisco Alves

quarta-feira, 4 de abril de 2012

XXII

Amor, amor aquele e aquela,
se já não são, para onde foram?

Ontem, ontem disse a meus olhos
quando voltaremos a ver-nos?

E quando se muda a paisagem
são tuas mãos ou tuas luvas?

Quando canta o azul da água
como foge o rumor do céu?

Pablo Neruda, in: O Livro das Perguntas. Tradução de Olga Savary. Ed. L&PM

terça-feira, 3 de abril de 2012

Carta de guia

Amanda Cass
I

Nossa vida
Construímos
A cada passo,
A cada minuto,
A cada esquina,
De mãos unidas.

II

Sempre teu rosto e o crepúsculo.
Em teus olhos a viagem das nuvens
É um estranho presságio
Que evito decifrar.

III

Caminhemos
Sem perguntas
Como os suicidas
Que jamais indagam
A profundidade do abismo.

IV

Sob a chuva de verão,
Contra as colunas da lei,
Sobre o corpo do soldado,
Com o estandarte rasgado
De qualquer revolução.

V

Vivemos, Dora, na certeza
De sermos amanhã
O que ontem não fomos.

José Paulo Paes, in: Cúmplices, 1951 / Poesia Completa. Ed. Companhia das Letras

Madrigal

Betania Zacarias
Meu amor é simples, Dora,
Como a água e o pão.

Como o céu refletido
Nas pupilas de um cão.

José Paulo Paes, in: Cúmplices, 1951 / Poesia Completa. Ed. Companhia das Letras

29 de junio, domingo, 1959

Investigación y búsqueda de la poesía. Comienzo con Góngora.

Dostoievski: leer repetidas veces Los hermanos Karamazov: sua equivalencia con el psicoanálisis.

Alejandra Pizarnik, in: Diarios. Ed. Lumen

segunda-feira, 2 de abril de 2012

Do outro lado da tarde

Sim, deve ter havido uma primeira vez, embora eu não lembre dela, assim como não lembro das outras vezes, também primeiras, logo depois dessa em que nos encontramos completamente despreparados para esse encontro. E digo despreparados porque sei que você não me esperava, da mesma forma como eu não esperava você. Certamente houve, porque tenho a vaga lembrança — e todas as lembranças são vagas, agora —, houve um tempo em que não nos conhecíamos, e esse tempo em que passávamos desconhecidos e insuspeitados um pelo outro, esse tempo sem você eu lembro. Depois, aquela primeira vez e logo após outras e mais outras, tudo nos conduzindo apenas para aquele momento.

Às vezes me espanto e me pergunto como pudemos a tal ponto mergulhar naquilo que estava acontecendo, sem a menor tentativa de resistência. Não porque aquilo fosse terrível, ou porque nos marcasse profundamente ou nos dilacerasse — e talvez tenha sido terrível, sim, é possível, talvez tenha nos marcado profundamente ou nos dilacerado — a verdade é que ainda hesito em dar um nome àquilo que ficou, depois de tudo. Porque alguma coisa ficou. E foi essa coisa que me levou há pouco até a janela onde percebi que chovia e, difusamente, através das gotas de chuva, fiquei vendo uma roda-gigante. Absurdamente. Uma roda-gigante. Porque não se vive mais em lugares onde existam rodas-gigantes. Porque também as rodas-gigantes talvez nem existam mais. Mas foram essas duas coisas — a chuva e a roda-gigante —, foram essas duas coisas que de repente fizeram com que algum mecanismo se desarticulasse dentro de mim para que eu não conseguisse ultrapassar aquele momento.

De repente, eu não consegui ir adiante. E precisava: sempre se precisa ir além de qualquer palavra ou de qualquer gesto. Mas de repente não havia depois: eu estava parado à beira da janela enquanto lembranças obscuras começavam a se desenrolar. Era dessas lembranças que eu queria te dizer. Tentei organizá-las, imaginando que construindo uma organização conseguisse, de certa forma, amenizar o que acontecia, e que eu não sabia se terminaria amargamente — tentei organizá-las para evitar o amargo, digamos assim. Então tentei dar uma ordem cronológica aos fatos: primeiro, quando e como nos conhecemos — logo a seguir, a maneira como esse conhecimento se desenrolou até chegar no ponto em que eu queria, e que era o fim, embora até hoje eu me pergunte se foi realmente um fim. Mas não consegui. Não era possível organizar aqueles fatos, assim como não era possível evitar por mais tempo uma onda que crescia, barrando todos os outros gestos e todos os outros pensamentos.

Durante todo o tempo em que pensei, sabia apenas que você vinha todas as tardes, antes. Era tão natural você vir que eu nem sequer esperava ou construía pequenas surpresas para te receber. Não construía nada — sabia o tempo todo disso —, assim como sabia que você vinha completamente em branco para qualquer palavra que fosse dita ou qualquer ato que fosse feito. E muitas vezes, nada era dito ou feito, e nós não nos frustrávamos porque não esperávamos mesmo, realmente, nada. Disso eu sabia o tempo todo.

E era sempre de tarde quando nos encontrávamos. Até aquela vez que fomos ao parque de diversões, e também disso eu lembro difusamente. O pensamento só começa a tornar-se claro quando subimos na roda-gigante: desde a infância que não andávamos de roda-gigante. Tanto tempo, suponho, que chegamos a comprar pipocas ou coisas assim. Éramos só nós dois na roda-gigante. Você tinha medo: quando chegávamos lá em cima, você tinha um medo engraçado e subitamente agarrava meu braço como se eu não estivesse tão desamparado quanto você. Conversávamos pouco, ou não conversávamos nada — pelo menos antes disso nenhuma frase minha ou sua ficou: bastavam coisas assim como o seu medo ou o meu medo, o meu braço ou o seu braço. Coisas assim.

Foi então que, bem lá em cima, a roda-gigante parou. Havia uma porção de luzes que de repente se apagaram — e a roda-gigante parou. Ouvimos lá de baixo uma voz dizer que as luzes tinham apagado. Esperamos. Acho que comemos pipocas enquanto esperamos. Mas de repente começou a chover: lembro que seu cabelo ficou todo molhado, e as gotas escorriam pelo seu rosto exatamente como se você chorasse. Você jogou fora as pipocas e ficamos lá em cima: o seu cabelo molhado, a chuva fina, as luzes apagadas.

Não sei se chegamos a nos abraçar, mas sei que falamos. Não havia nada para fazer lá em cima, a não ser falar. E nós tínhamos tão pouca experiência disso que falamos e falamos durante muito e muito tempo, e entre inúmeras coisas sem importância você disse que me amava, ou eu disse que te amava — ou talvez os dois tivéssemos dito, da mesma forma como falamos da chuva e de outras coisas pequenas, bobas, insignificantes. Porque nada modificaria os nossos roteiros. Talvez você tenha me chamado de fatalista, porque eu disse todas as coisas, assim como acredito que você tenha dito todas as coisas — ou pelo menos as que tínhamos no momento.

Depois de não sei quanto tempo, as luzes se acenderam, a roda-gigante concluiu a volta e um homem abriu um portãozinho de ferro para que saíssemos. Lembro tão bem, e é tão fácil lembrar: a mão do homem abrindo o portãozinho de ferro para que nós saíssemos. Depois eu vi o seu cabelo molhado, e ao mesmo tempo você viu o meu cabelo molhado, e ao mesmo tempo ainda dissemos um para o outro que precisávamos ter muito cuidado com cabelos molhados, e pensamos vagamente em secá-los, mas continuava a chover. Estávamos tão molhados que era absurdo pensar em sairmos da chuva. Às vezes, penso se não cheguei a estender uma das mãos para afastar o cabelo molhado da sua testa, mas depois acho que não cheguei a fazer nenhum movimento, embora talvez tenha pensado.

Não consigo ver mais que isso: essa é a lembrança. Além dela, nós conversamos durante muito tempo na chuva, até que ela parasse, e quando ela parou, você foi embora. Além disso, não consigo lembrar mais nada, embora tente desesperadamente acrescentar mais um detalhe, mas sei perfeitamente quando uma lembrança começa a deixar de ser uma lembrança para se tornar uma imaginação. Talvez se eu contasse a alguém acrescentasse ou valorizasse algum detalhe, assim como quem escreve uma história e procura ser interessante — seria bonito dizer, por exemplo, que eu sequei lentamente os seus cabelos. Ou que as ruas e as árvores ficaram novas, lavadas depois da chuva. Mas não direi nada a ninguém. E quando penso, não consigo pensar construidamente, acho que ninguém consegue. Mas nada disso tem nenhuma importância, o que eu queria te dizer é que chegando na janela, há pouco, vi a chuva caindo e, atrás da chuva, difusamente, uma roda-gigante. E que então pensei numas tardes em que você sempre vinha, e numa tarde em especial, não sei quanto tempo faz, e que depois de pensar nessa tarde e nessa chuva e nessa roda-gigante, uma frase ficou rodando nítida e quase dura no meu pensamento. Qualquer coisa assim: depois daquela nossa conversa depois daquela nossa conversa na chuva, você nunca mais me procurou.

Caio Fernando Abreu, in: O Ovo Apunhalado. Ed. Agir

domingo, 1 de abril de 2012

(no precipício era o verbo)

Syrie Kovitz
no fundo de tudo
essa vontade de morrer nas coisas,
essa urgência de afogada;
viver nelas:

palavras, pessoas, coisas.

melhor ouvir
o que a boca não consegue dizer,
melhor, abismada,
viver em voz alta;

- cantar, à boca,
o silêncio de um uivo.

longos os espaços
entre os acontecimentos,
a batalha alpinista
do entendimento.

- dizer

os braços
nos ensinam
a morrer

contando
as feridas.

Roberta Tostes Daniel
o outono pode ser uma canção

silenciosa e terna. ou
prenúncio. da inevitável outra

estação

pode ser

doce. de um fruto qualquer. ou

antevéspera. do grande frio

tenho tachos de cobre no fogão

Nydia Bonetti