terça-feira, 27 de março de 2012

Momento

Cléo de 5 à 7
Silêncio soma sons,
em prece.
Quieta, minha alma.

Eliana Mora

Ouvir os pássaros

me redime;
imprime soltas sinfonias
na manhã.

Eliana Mora













segunda-feira, 26 de março de 2012

Segunda história rápida sobre a felicidade –
descendo a colina ao escurecer – meu amor ficou
longe, com seu ar de não ter dúvida, e dizia: meus
pais... – não posso mais duvidar dos meus
passinhos, neste sítio – você agora fala até mais
baixo, delicada que eu reparo mais que os outros
depois de um tempo fora – é como voltar e achar as
crianças crescidas, e sentar na varanda para trocar
pensamentos e memórias de um tempo que passou –
mas quando eu fui (aquele dia no aeroporto) ainda
havia ares de mistério – agora, é agora, descendo
esta colina, sem nenhum, que eu conto então do
amor distante, e não imito a minha nostalgia, mas a
delicadeza, a sua, assim feliz.

Ana Cristina Cesar, in: A Teus Pés. Ed. Brasiliense

Fico quieta,

Few of Us
Não escrevo mais. Estou desenhando numa vila que não me pertence.
Nao penso na partida. Meus garranchos são hoje e se acabaram.
"Como todo mundo, comecei a fotografar as pessoas à minha volta, nas cadeiras de varanda."
Perdi um trem. Não consigo contar a história completa. Você mandou perguntar detalhes (eu ainda acho que a pergunta era daquelas cansadas de fim de noite, era eu que estava longe) mas não falo, não porque a minha boca esteja dura. Nem a ironia nem o fogo cruzado.

Ana Cristina Cesar, in: Edição Inglesa de 1980

domingo, 25 de março de 2012

Avanço

Chega um momento, depois de algum caminho percorrido, em que a gente pode até considerar que avançou menos do que supunha, mas entende ter avançado o máximo que conseguiu até então. E a gente agradece, com gentileza e compaixão por todos os caminhantes, porque somente quem caminha sabe o valor, o tamanho, a conquista, de que é feita a história de cada único passo. Há quem pare no meio da estrada e se enrede no suposto cansaço que mente o medo de prosseguir. Há quem corra tão freneticamente de si mesmo que nem percebe a paisagem ao seu redor. Há quem pareça recuar dois passos para cada um alcançado. No fim das contas, todos avançam, de uma forma ou de outra, ainda que, aos próprios olhos e aos alheios, o avanço seja imperceptível. E, nos trechos da jornada em que já é possível caminhar com mais atenção, respirando os sentimentos singulares de cada passo, a gente percebe que não há exatamente um lugar onde chegar. Nós somos o lugar. A gente percebe que pode aprender a relaxar e a usufruir também da viagem e que essa é forma mais hábil e generosa de avanço. Não há movimento que se assemelhe àquele que nasce de um coração contente.

Ana Jácomo

sexta-feira, 23 de março de 2012

Extremos da paixão

Nonnetta
Não, meu bem, não adianta bancar o distante lá vem o amor nos dilacerar de novo...

Andei pensando coisas. O que é raro, dirão os irônicos. Ou "o que foi?" - perguntariam os complacentes. Para estes últimos, quem sabe, escrevo. E repito: andei pensando coisas sobre amor, essa palavra sagrada. O que mais me deteve, do que pensei, era assim: a perda do amor é igual à perda da morte. Só que dói mais. Quando morre alguém que você ama, você se dói inteiro (a) mas a morte é inevitável, portanto normal. Quando você perde alguém que você ama, e esse amor - essa pessoa - continua vivo (a), há então uma morte anormal. O NUNCA MAIS de não ter quem se ama torna-se tão irremediável quanto não ter NUNCA MAIS quem morreu. E dói mais fundo- porque se poderia ter, já que está vivo (a). Mas não se tem, nem se terá, quando o fim do amor é: NEVER.

Pensando nisso, pensei um pouco depois em Boy George: meu-amor-me-abandonou-e-sem-ele-eu-nao-vivo-então-quero-morrer-drogado. Lembrei de John Hincley Jr., apaixonado por Jodie Foster, e que escreveu a ela, em 1981: "Se você não me amar, eu matarei o presidente". E deu um tiro em Ronald Regan. A frase de Hincley é a mais significativa frase de amor do século XX. A atitude de Boy George - se não houver algo de publicitário nisso - é a mais linda atitude de amor do século XX. Penso em Werther, de Goethe. E acho lindo.

No século XX não se ama. Ninguém quer ninguém. Amar é out, é babaca, é careta. Embora persistam essas estranhas fronteiras entre paixão e loucura, entre paixão e suicídio. Não compreendo como querer o outro possa tornar-se mais forte do que querer a si próprio. Não compreendo como querer o outro possa pintar como saída de nossa solidão fatal. Mentira: compreendo sim. Mesmo consciente de que nasci sozinho do útero de minha mãe, berrando de pavor para o mundo insano, e que embarcarei sozinho num caixão rumo a sei lá o quê, além do pó. O que ou quem cruzo entre esses dois portos gelados da solidão é mera viagem: véu de maya, ilusão, passatempo. E exigimos o terno do perecível, loucos.

Depois, pensei também em Adèle Hugo, filha de Victor Hugo. A Adèle H. de François Truffaut, vivida por Isabelle Adjani. Adèle apaixonou-se por um homem. Ele não a queria. Ela o seguiu aos Estados Unidos, ao Caribe, escrevendo cartas jamais respondidas, rastejando por amor. Enlouqueceu mendigando a atenção dele. Certo dia, em Barbados, esbarraram na rua. Ele a olhou. Ela, louca de amor por ele, não o reconheceu. Ele havia deixado de ser ele: transformara-se em símbolos em face nem corpo da paixão e da loucura dela. Não era mais ele: ela amava alguém que não existia mais, objetivamente. Existia somente dentro dela. Adèle morreu no hospício, escrevendo cartas (a ele: "É para você, para você que eu escrevo" - dizia Ana C.) numa língua que, até hoje, ninguém conseguiu decifrar.

Andei pensando em Adèle H., em Boy George e em John Hincley Jr. Andei pensando nesses extremos da paixão, quando te amo tanto e tão além do meu ego que - se você não me ama: eu enlouqueço, eu me suicido com heroína ou eu mato o presidente. Me veio um fundo desprezo pela minha/nossa dor mediana, pela minha/nossa rejeição amorosa desempenhando papéis tipo sou-forte-seguro-essa-sou-mais-eu. Que imensa miséria o grande amor - depois do não, depois do fim - reduzir-se a duas ou três frases frias ou sarcásticas. Num bar qualquer, numa esquina da vida.

Ai que dor: que dor sentida e portuguesa de Fernando Pessoa - muito mais sábio -, que nunca caiu nessas ciladas. Pois como já dizia Drummond, "o amor car(o,a,) colega esse não consola nunca de núncaras". E apesar de tudo eu penso sim, eu digo sim, eu quero Sins.

Caio Fernando Abreu, in: Pequenas Epifanias / O Estado de S. Paulo, 8/7/1986 / Ed. Agir

quinta-feira, 22 de março de 2012

Talvez não haja na nossa infância

Jessie Willcox-Smith
dias que tenhamos vivido tão plenamente como aqueles que pensamos ter deixado passar sem vivê-los, aqueles que passamos na companhia de um livro preferido. Era como se tudo aquilo que para os outros os transformava em dias cheios, nós desprezássemos como um obstáculo vulgar a um prazer divino: o convite de um amigo para um jogo exatamente na passagem mais interessante, a abelha ou o raio de sol que nos forçava a erguer os olhos da página ou a mudar de lugar, a merenda que nos obrigavam a levar e que deixávamos de lado intocada sobre o banco, enquanto sobre nossa cabeça o sol empalidecia no céu azul; o jantar que nos fazia voltar para casa e em cujo fim não deixávamos de pensar para, logo em seguida, poder terminar o capítulo interrompido, tudo isso que a leitura nos fazia perceber apenas como inconveniências, ela as gravava, contudo, em nós, como uma lembrança tão doce (muito mais preciosa, vendo agora à distância, do que o que líamos então com tanto amor) que se nos acontece ainda hoje folhearmos esses livros de outrora, já não é senão como simples calendários que guardamos dos dias perdidos, com a esperança de ver refletidas sobre as páginas as habitações e os lagos que não existem mais.

Marcel Proust, in: Sobre a Leitura. Tradução de Carlos Vogt. Ed. Pontes

quarta-feira, 21 de março de 2012

LXVIII

Quando lê a borboleta
o que voa escrito em suas asas?

Que letras conhece a abelha
para saber seu itinerário?

E com que cifras vai subtraindo
a formiga seus soldados mortos?

Como se chamam os ciclones
quando não têm movimento?

Pablo Neruda, in: O Livro das Perguntas. Tradução de Olga Savary. Ed. L&PM

terça-feira, 20 de março de 2012

O silêncio

O silêncio é gelo, pedra branca,
parede cinza, companheiro.
A guimba num cinzeiro
não é mais que um quarto vazio
uma voz que não é palavra
é sincero desamparo, a vida
conhecida sem mistério ou alarde.

Elaine Pauvolid

segunda-feira, 19 de março de 2012

Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças
[...] Não se consegue amar completamente senão na memória, Sebastião. As histórias que sonhamos para as pessoas amadas flutuam na neblina dos dias muito quentes, como mentiras leves tocadas pelo peso da verdade.

Inês Pedrosa, in: A Eternidade e o Desejo. Ed. Alfaguara

domingo, 18 de março de 2012

Amor sem esforço

Seria bacana se a gente pudesse dissolver a ilusão de que para sermos amados temos que ser outros que não nos habitam. Outros que não somos. Outros que, no fundo, não podemos ser, mas também não precisamos. Ter outras caras. Outros corpos. Outros gostos. Outros sonhos. Outros jeitos. É inútil qualquer esforço de tentar caber onde o nosso coração não está. Onde ele não pode nadar livremente, no tempo e no ritmo das próprias braçadas, aproveitando, feliz, o contato com a vida. Há um desperdício imenso de energia nessa história. É tenso demais viver para agradar, em troca de pertencimento, reconhecimento, alguma afeição. Maquiar as emoções, boicotar a própria essência, trocar a luz natural por luminárias artificiais, bolar planos fantásticos para chegar ao coração de quem quer que seja. Cansa, só de imaginar.

Além de inútil, é perigoso. Perigoso porque dói, mesmo quando faz aumentar nossos índices de popularidade. Nosso catálogo de endereços eletrônicos. Nossas referências no caderno de telefones. Nossa lista de contatos do celular. Perigoso porque requer de nós muito malabarismo emocional para não trairmos as personagens que criamos para atender as demandas alheias. É trabalhoso demais tentar ser o que não se é. Exaustivo. Drenagem pura. E, no fim das contas, o que buscam essas pessoas que queremos que nos amem? Procuram por nós ou pelas pessoas que tentamos parecer? Por nós ou pelas pessoas que querem que sejamos? Se não for por nós, não tem importância alguma. A leveza escoa, assustada, ralo afora. Se não for por nós, não é de verdade.

De vez em quando nós lembramos para, em geral, esquecer outra vez pouco depois: o amor não pede esforço. O amor acontece. Somos amados assim do nosso jeito. Assim do nosso tamanho. Assim do nosso lugar. Somos amados como somos, já preciosos. Isso é de uma liberdade que raramente sentimos ser capazes. As pessoas mais interessantes que conheço não fazem sacrifícios para ser amadas. São do jeito delas. Se são amadas, maravilha. Se não, vida que segue, mais a frente os encontros virão e é bem provável que tenham mais a ver com elas. A diferença que conta é que, à parte o amor que possam receber, elas são amadas por elas mesmas. Estão confortáveis por ser como dá pra ser a cada instante.

São pessoas que não querem mostrar nada além da espontaneidade que já conseguem. Não querem caber onde lhes falta espaço. Não têm a pretensão de ter montes de amigos: se tiverem um, capaz de amá-las, de verdade, já estão no lucro. Querem amar e ser amadas, sim, desde que cada pessoa tenha liberdade para ser. Nadam no ritmo delas, no tempo delas, nesse mar de águas tantas vezes turbulentas da vida. E consideram cada braçada uma vitória. Uma possibilidade de encontro. Se não acontecer, vez ou outra, continuam contando com o próprio pertencimento. O próprio reconhecimento. A própria afeição.

Ana Jácomo

Azul clarinho:

Irisz Agocs
A vida anda tão boa e tão tranquila. Se eu conseguisse resumir esse sentimento, diria que ele é inversamente proporcional aos julgamentos rasos, esses que podemos disparar com tanta facilidade e azedume. Parece que, ao contrário, quanto mais eu tento compreender as pessoas, num exercício cotidiano de aproximação e humildade, mais eu me sinto feliz. Com elas e comigo mesma.

Rita Apoena

sexta-feira, 16 de março de 2012

Qualificação

Não venham com razões
e palavras estreitas.

O que sou sustenta
o que não sou.
Por mais grave a doença,
a dor já me curou.

E levo no bordão,
o campo, a cerca,
as passadas que vão,
o rosto que se acerca
na rudeza do chão.

O que sou
é dar socos
contra facas quotidianas.
E é pouco.

Carlos Nejar

quinta-feira, 15 de março de 2012

15.

Betania Zacarias

O silêncio
está úmido
de aves.

Manoel de Barros, in: O Livro de Bernardo / Poesia Completa. Ed. Leya Brasil

2.

Betania Zacarias
Não tenho pensa.
Tenho só árvores ventos
passarinhos – issos.

Manoel de Barros, in: O Livro de Bernardo / Poesia Completa. Ed. Leya Brasil

quarta-feira, 14 de março de 2012

14/3, dia da Poesia :)

Para ouvir, ver e sentir...

_ Carlos Drummond de Andrade, Chico Buarque, Vinícius de Moraes, Cacaso, Paulo Leminski, Maria Bethânia, Fernando Pessoa, Eucanaã Ferraz, Hilda Hilst...























segunda-feira, 12 de março de 2012

[...] quem somos nós, quem é cada um de nós senão uma combinatória de experiências, de informações, de leituras, de imaginações? Cada vida é uma enciclopédia, uma biblioteca, um inventário de objetos, uma amostragem de estilos, onde tudo pode ser continuamente remexido e reordenado de todas as maneiras possíveis.

Italo Calvino

a experiência do leitor - II

[...] Cada novo livro que leio passa a fazer parte daquele livro abrangente e unitário que é a soma de minhas leituras. Isso não acontece sem esforço; para compor esse livro geral, cada livro particular deve transformar-se, relacionar-se com os livros que li anteriormente, tornar-se o corolário ou o desenvolvimento ou a refutação ou a glosa ou o texto de referência.

Italo Calvino, in: Se Um Viajante numa Noite de Inverno. Ed. Cia. das Letras

domingo, 11 de março de 2012

sorte

Charles Bukowski
o que está mal a respeito disso
tudo
é ver as pessoas
bebendo café e
esperando. gostaria de
embebê-los todos
na sorte. eles precisam
disso. precisam bem
mais do que eu.

sento nos cafés
e os vejo a
esperar. não creio
que haja muito mais
a fazer. as moscas
vão pra lá e pra cá
nos vidros das janelas
e bebemos nosso
café e fingimos
não olhar uns
para os outros.
espero junto com eles.
entre o movimento
das moscas
as pessoas vagueiam.

Charles Bukowski, in: O Amor é Um Cão dos Diabos. Tradução de Pedro Gonzaga. Ed. L&PM

sábado, 10 de março de 2012

Mãos

Vânia Medeiros
O mundo tem gosto duvidoso, Maria,
impossível, em uma vida, aprender a ser-se bom.
O mundo tem solo variado, Maria,
quando enfim sejamos grandes- oh desejo pueril-
qual chão nos suportaria:
é a grandeza que primeiro atola
num passo em falso, em terra acre...
Certo é amiudar as mãos com labor e paciência
até alcançar sua dureza nuclear, sua delicadeza fina.
Certo é amiudar-nos com labor e paciência
para em silêncio acolher - sem ferir-
o milagre, Maria, o milagre.

Raiça Bomfim

sexta-feira, 9 de março de 2012

Em marte aparece a tua cabeça -

Lilya Corneli
Em marte aparece a tua cabeça -
eu queria dizer. No lugar onde
desapareceu a janela,
a cabeça de vaca de fogo, aparece
a cabeça. Onde era a cortina fria,
de pássaro escutando.
Em marte, como a roupa bate o vento,
e na terra as ferraduras batem
no meu cabelo.
Como o fogo dentro da pedra turquesa,
em marte aparece a tua
cabeça de vaca. Por detrás da fria cortina -
eu queria dizer.

Agora sei que devo saber, só.
As letras da chuva loucas nas costas -
escrevendo, escrevendo.
Só, eu sei a dormir. Com um ramo
de peixes e um violino
no meio dos ll, dos mm, dos ii
da chuva.
Com meu ramo de violinos, só eu
no meio da chuva. Agora
sei que devo escrever os meus peixes.
A tua cabeça
aparece na janela de marte em fogo.

O fogo que anda em ti que andas como uma
pedra turquesa,
ao lado da fria cortina. Olhando, escutando
como um pássaro, onde chove.
Como só agora sei com as letras.

A chuva abre-te, o dia bate, a roupa
tropeça com as ferraduras
no meu cabelo. E só agora fazes
teu gesto com chuva, no meio das letras.
Abre-te, oh abre-te. Na cortina,
agora, a tua cabeça ao lado dos peixes -
escutando, escrevendo,
como só agora eu sei: o meu ramo
de violinos

Escuta: um copo, a catedral, o livro,
o candeeiro.
Eu agora sei escrevendo de lado o fogo
da cabeça. Escuta: descasco
maçãs, cômo maçãs, as maçãs
aparecem na sua cor no meio - e juntam-se
entre si, e vão sonhar. Escuta:
chovendo, escutando, escrevendo.
A roupa bate no vento.
Escuta como só agora bate a cor
nas maçãs. A tua cabeça, a cortina fria.

Dou-te as letras dos peixes, escutando -
só agora, só agora.
Escutando em ti, abrindo
com a tua chave todas as tuas maçãs
na sua cor. Só agora
escrevendo eu sei.

Herberto Helder, in: A Máquina Lírica / Antologia Ou o Poema Contínuo. Ed. A Girafa

Tríptico - II

Katia Chausheva
Não sei como dizer-te que minha voz te procura
e a atenção começa a florir, quando sucede a noite
esplêndida e vasta.
Não sei o que dizer, quando longamente teus pulsos
se enchem de um brilho precioso
e estremeces como um pensamento chegado. Quando,
iniciado o campo, o centeio imaturo ondula tocado
pelo pressentir de um tempo distante,
e na terra crescida os homens entoam a vindima
— eu não sei como dizer-te que cem ideias,
dentro de mim, te procuram.

Quando as folhas da melancolia arrefecem com astros
ao lado do espaço
e o coração é uma semente inventada
em seu escuro fundo e em seu turbilhão de um dia,
tu arrebatas os caminhos da minha solidão
como se toda a casa ardesse pousada na noite.
— E então não sei o que dizer
junto à taça de pedra do teu tão jovem silêncio.
Quando as crianças acordam nas luas espantadas
que às vezes se despenham no meio do tempo
— não sei como dizer-te que a pureza,
dentro de mim, te procura.

Durante a primavera inteira aprendo
os trevos, a água sobrenatural, o leve e abstracto
correr do espaço —
e penso que vou dizer algo cheio de razão,
mas quando a sombra cai da curva sôfrega
dos meus lábios, sinto que me faltam
um girassol, uma pedra, uma ave — qualquer
coisa extraordinária.
Porque não sei como dizer-te sem milagres
que dentro de mim é o sol, o fruto,
a criança, a água, o deus, o leite, a mãe,
o amor,

que te procuram.

Herberto Helder, in: A Colher na Boca, 1961 / Antologia Ou o Poema Contínuo. Ed. A Girafa

quinta-feira, 8 de março de 2012

Sábado, 26


Escribí un poema. No tiene ninguna importancia. Soy una enorme herida. Es la soledad absoluta. No quiero preguntar por qué.

Alejandra Pizarnik, in: Diarios. Ed. Lumen

Conversando a sós comigo

Federico Erra
perco-me em mim e no nada
sou um labirinto de memórias
onde o fio se perdeu
suspeito até que Ariadne não exista
nem eu
nem o tempo
e o local seja apenas o espaço
onde me confesso.

Helena Monteiro
Marina Faria

[...] Nós nos abraçamos. Desde sua primeira aparição e em cada uma das que se seguiram tive vontade de tê-lo em meus braços. Sempre, o tempo todo. Como se toda a população da terra tivesse fugido, como se nenhum jogo tivesse sido novo, ficamos parados na obscuridade sem dizer nada. Como se eu lhe fosse totalmente transparente, como se eu contemplasse seu belo e fatal voo. O mundo inteiro podia desaparecer, contanto que ficássemos ali abraçados, mas faltava-nos alguém para abraçar.

Mian Mian, in: Bombons Chineses. Ed. Geração

quarta-feira, 7 de março de 2012

Uma hora em San Gimignano - fragmento

A arte de viajar é uma arte de admirar, uma arte de amar. É ir em peregrinação, participando intensamente de coisas, de fatos, de vidas com as quais nos correspondemos desde sempre e para sempre. É estar constantemente emocionado - e nem sempre alegre, mas, ao contrário, muitas vezes triste, de um sofrimento sem fim, porque a solidariedade humana custa, a cada um de nós, algum profundo despedaçamento.

Cecília Meireles, in: Crônicas de Viagem I (Obra em Prosa). Ed. Nova Fronteira

terça-feira, 6 de março de 2012

a-m-o-r

[...] O amor, se existe, não é uma entidade. O amor é um milhão de pequenas coisas. Não é possível ter uma ideia genérica do que seja o amor ou procurar dicionalizá-lo. O amor é uma flor murcha, um marcador amarelo de textos, um disquete de computador, uma chave de fenda, um quadro de avisos onde se espeta um bilhete, um peso de papel azul que reproduz o globo terrestre, uma cama desfeita ao meio-dia e um copo d'água pela metade, folhas secas que o vento varreu para dentro de casa, um vulto sombrio nos olhos por causa de uma discussão com alguém, a pequena escultura mexicana de um pássaro, guardanapos de papel sobre a mesa-de-cabeceira, alguém que martela um prego em outro apartamento, uma lista telefônica aberta, mais nada.

Adriana Lisboa, in: Um beijo de Colombina. Ed. Rocco
Ann Texter

ah... se soubessem
de que lugar sombrio
brotam os versos
[...ainda fosse terra
— é casa
vazia

Nydia Bonetti

segunda-feira, 5 de março de 2012

Amor

Um poema, dizes, em que
o amor se exprima, tudo
resumindo em palavras.

Mas o que fica
nas palavras
daquilo que se viveu?

Um pó de sílabas,
o ritmo pobre da
gramática, rimas sem nexo...

Nuno Júdice, in: Meditação sobre Ruínas

Sobre os livros

Era uma vez um leitor, curioso sobre a história dentro de um livro. Era uma vez um livro, curioso sobre os olhos daquele leitor. Era uma vez a história de um. Era uma vez a história de outro. Mas porque alguém tinha de dar o braço a torcer, o livro rendeu-se e começou o primeiro capítulo.

Os livros sempre se rendem: não é a toa que eles capitulam.

Rita Apoena

domingo, 4 de março de 2012

Carta

Bem quisera escrevê-la
com palavras sabidas,
as mesmas, triviais,
embora estremecessem
a um toque de paixão.
Perfurando os obscuros
canais de argila e sombra,
ela iria contando
que vou bem, e amo sempre
e amo cada vez mais
a essa minha maneira
torcida e reticente,
e espero uma resposta,
mas que não tarde; e peço
um objeto minúsculo
só para dar prazer
a quem pode ofertá-lo;
diria ela do tempo
que faz do nosso lado;
as chuvas já secaram,
as crianças estudam,
uma última invenção
(inda não é perfeita)
faz ler nos corações,
mas todos esperamos
rever-nos bem depressa.
Muito depressa, não.
Vai-se tornando o tempo
estranhamente longo
à medida que encurta.
O que ontem disparava,
desbordado alazão,
hoje se paralisa
em esfinge de mármore,
e até o sono, o sono
que era grato e era absurdo
é um dormir acordado
numa planície grave.
Rápido é o sonho, apenas,
que se vai, de mandar
notícias amorosas
quando não há amor
a dar ou receber;
quando só há lembrança
ainda menos, pó,
menos ainda, nada,
nada de nada em tudo,
em mim mais do que em tudo,
e não vale acordar
quem acaso repouse
na colina sem árvores.
Contudo, esta é uma carta.

Carlos Drummond de Andrade, in: Claro Enigma. Ed. Record

Epigrama Nº 9

O vento voa,
a noite toda se atordoa,
a folha cai.

Haverá mesmo algum pensamento
sobre essa noite? Sobre esse vento?
Sobre essa folha que se vai?

Cecília Meireles

Um cais chamado saudade

havia um porto
antes
ao alcance da vista
um ponto
onde as naus
suspendiam viagem
as velas arfavam
desenfunadas
e sonhavam
a lua sobre o mar
era um sabre
aparando a água
havia um porto
antes
ao alcance do corpo
(um ponto
onde hoje atraco a saudade
e mais nada)

Sônia Régis

sexta-feira, 2 de março de 2012

Na terra do coração

Nonnetta
Na terra do coração passei o dia pensando - coração meu, meu coração. Pensei e pensei tanto que deixou de significar uma forma, um órgão, uma coisa. Ficou só com-cor, ação - repetido, invertido - ação, cor - sem sentido - couro, ação e não. Quis vê-lo, escapava. Batia e rebatia, escondido no peito. Então fechei os olhos, viajei. E como quem gira um caleidoscópio, vi:

Meu coração é um sapo rajado, viscoso e cansado, à espera do beijo prometido capaz de transformá-lo em príncipe.

Meu coração é um álbum de retratos tão antigos que suas faces mal se adivinham. Roídas de traça, amareladas de tempo, faces desfeitas, imóveis, cristalizadas em poses rígidas para o fotógrafo invisível. Este apertava os olhos quando sorria. Aquela tinha um jeito peculiar de inclinar a cabeça. Eu viro as folhas, o pó resta nos dedos, o vento sopra.

Meu coração é um mendigo mais faminto da rua mais miserável. Meu coração é um ideograma desenhado a tinta lavável em papel de seda onde caiu uma gota d’água. Olhado assim, de cima, pode ser Wu Wang, a Inocência. Mas tão manchado que talvez seja Ming I, o Obscurecimento da Luz. Ou qualquer um, ou qualquer outro: indecifrável.

Meu coração não tem forma, apenas som. Um noturno de Chopin (será o número 5?) em que Jim Morrison colocou uma letra falando em morte, desejo e desamparo, gravado por uma banda punk. Couro negro, prego e piano.

Meu coração é um bordel gótico em cujos quartos prostituem-se ninfetas decaídas, cafetões sensuais, deusas lésbicas, anões tarados, michês baratos, centauros gays e virgens loucas de todos os sexos.

Meu coração é um traço seco. Vertical, pós-moderno, coloridíssimo de neon, gravado em fundo preto. Puro artifício, definitivo.

Meu coração é um entardecer de verão, numa cidadezinha à beira-mar. A brisa sopra, saiu a primeira estrela. Há moças na janela, rapazes pela praça, tules violetas sobre os montes onde o sol se pôs. A lua cheia brotou do mar. Os apaixonados suspiram. E se apaixonam ainda mais.

Meu coração é um anjo de pedra de asa quebrada.

Meu coração é um bar de uma única mesa, debruçado sobre a qual um único bêbado bebe um único copo de bourbon, contemplado por um único garçom. Ao fundo, Tom Waits geme um único verso arranhado. Rouco, louco. Meu coração é um sorvete colorido de todas as cores, é saboroso de todos os sabores. Quem dele provar, será feliz para sempre.

Meu coração é uma sala inglesa com paredes cobertas por papel de florzinhas miúdas. Lareira acesa, poltronas fundas, macias, quadros com gramados verdes e casas pacíficas cobertas de hera. Sobre a renda branca da toalha de mesa, o chá repousa em porcelana da China. No livro aberto ao lado, alguém sublinhou um verso de Sylvia Plath: "Im too pure for you or anyone". Não há ninguém nessa sala de janelas fechadas.

Meu coração é um filme noir projetado num cinema de quinta categoria. A platéia joga pipoca na tela e vaia a história cheia de clichês.

Meu coração é um deserto nuclear varrido por ventos radiativos.

Meu coração é um cálice de cristal puríssimo transbordante de licor de strega. Flambado, dourado. Pode-se ter visões, anunciações, pressentimentos, ver rostos e paisagens dançando nessa chama azul de ouro.

Meu coração é o laboratório de um cientista louco varrido, criando sem parar Frankensteins monstruosos que sempre acabam destruindo tudo.

Meu coração é uma planta carnívora morta de fome. Meu coração é uma velha carpideira portuguesa, coberta de preto, cantando um fado lento e cheia de gemidos - ai de mim! ai, ai de mim!

Meu coração é um poço de mel, no centro de um jardim encantado, alimentando beija-flores que, depois de prová-lo, transformam-se magicamente em cavalos brancos alados que voam para longe, em direção à estrela Veja. Levam junto quem me ama, me levam junto também. Faquir involuntário, cascata de champanha, púrpura rosa do Cairo, sapato de sola furada, verso de Mario Quintana, vitrina vazia, navalha afiada, figo maduro, papel crepom, cão uivando pra lua, ruína, simulacro, varinha de incenso. Acesa, aceso - vasto, vivo: meu coração teu.

Caio Fernando Abreu, in: Pequenas Epifanias / O Estado de S. Paulo, 10/2/1988 / Ed. Agir

quinta-feira, 1 de março de 2012

.

A Fronteira da Alvorada
[...] Corpo: esta prisão através da qual nos impregnamos de vida. Esta pilha de dias que nos conduz, alógica, ao único destino possível. Inevitável. Vamos todos morrer de tempo; de dias. Corpo: esta maldita prisão! Então me diz: por que temos de criar uma prisão dentro da outra? Diz: Por que temos de nos encher de moral? O mal do século é a civilização. O excesso de civilização.

[...] Um ano. Apenas um ano e a sensação de que poderia ser qualquer outra pessoa ou coisa, ou ainda, pessoa-coisa no lugar dele. Sempre pôde. Não acredito que exista, para além das nuvens, algo que imponha uma ordem cósmica irrevogável. Ao contrário do que possa parecer, não sou fatalista. Tudo poderia ter acontecido de outra forma. Você e eu estávamos lá. E é só isso, Paim. Não sou o amor da sua vida, não existe amor que dure uma vida. Morremos de esquecimento.

Daniela Lima, in: Anatomia. Ed. Multifoco

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só fico feliz
quando me encontro comigo
mas é tão ambíguo

Alice Ruiz, in: Quase duelo de quase amor. Coleção Poesia Viva