quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Lluvia
[...] Contamos histórias prolongadas sobre nossos passados, embelezando, borbando e enfeitando, teatralizando como costumam fazer os romancistas. É claro que fingíamos estar dizendo a verdade, toda a verdade, e nada mais do que a verdade, mas ninguém (como diz Henry Miller) pode contar a verdade absoluta; e até mesmo nossas relações autobiográficas mais condignas eram, em parte, invenção - literatura, em suma.

Erica Jong, in: Medo de Voar. Ed. Nova Cultural

terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Nonnetta

você pára
a fim de ver
o que te espera

só uma nuvem
te separa
das estrelas

Paulo Leminski, in: Melhores Poemas. Seleção Fred Góes e Álvaro Marins. Ed. Global

a noite
me pinga uma estrela no olho
e passa

Paulo Leminski, in: Melhores Poemas. Seleção Fred Góes e Álvaro Marins. Ed. Global

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

4 poemas : série "melancolia e blues"

Sundari Carmody
mas de mil vezes
te criei

não te fizeste

insistes em não ser
já nem te sopro

*

há um piano
um violino um bandolim
ai de mim
nesse meu silêncio
sem cordas

*

angustia é lâmina
mais
que afiada
e no meu corpo
já não cabe mais
cicatriz

*

música

música

quando

vou te ouvir outra vez

tocar

Nydia Bonetti

O inominável

Sundari Carmody
Semente de horas invisíveis
Saudade aflita do que não vivi –
navio de desejos enrugados.

Morada no cume do monte ensolarado
tempestade muda que desaba.
E lá, bem dentro do coração,
desespero de intensa toada,
aquele vazio.

Não é fácil sentir os pelos na pele
contar as horas em que apenas sonho
e ver sentada o infinito cínico doído:
aquilo que não tem nome.

Clarissa Macedo

Flash

deviantART Lillyfly
Repente
a mente
sente
a árvore
desde
a semente

sente

mão vegetal
em tenra parede
fremente

braço animal
contraído
porão mineral
ruído

mental

folhafalhafolha
f a r f a l h a
vento – navalha

contra o cimento

meu pensamento

Armando Freitas Filho, in: Dual, 1966. Coleção Poesia Viva

SIM & SIM.

Alicia Varela
Lua crescente no outono da noite londrina: sim
No bar do italiano bigodudo: sim
Vinho tinto a taça a chuva seu rosto não

ninguém ali
aqui
silêncio
imenso de vozes
aqui
sou só
um
enfim
(estrangeiro

Ademir Assunção, in: Tempo Instável na Tarde dos Anjos Desolados. Coleção Poesia Viva

domingo, 26 de fevereiro de 2012

sem pausa

Sundari Carmody
De modo que eu, este caos, não sei o que penso, o que digo ou o que sou. Desconhecida de mim mesma.

Estou debruçada na janela e ouço ele abrir e em seguida bater a porta e depois de algum tempo não ouço mais nada além das crianças chegando da escola e do rádio da vizinha então deito na cama e me encolho agora as crianças estão brincando de pique-pega nas escadas e no rádio as notícias do dia e em mim além do silêncio um certo alívio afinal não há mais nada

a sua matéria não é mais possível
para
mim

Tenho a impressão de ouvir os meus sonhos se esgueirando pelos cantos da casa e acordando as lembranças e o amor e então levanto e fecho a porta do quarto na tentativa de deixar o mundo barulhento do outro lado da grossa camada de madeira mas em pouco tempo os malditos sonhos passaram por entre as frestas e alcançaram o meu peito

a gente pode esquecer dos sonhos
mas os sonhos
não esquecem

Daniela Lima

Cabeludinho

Beata Oswiecinska
Quando a Vó me recebeu nas férias, ela me apresentou aos amigos: Este é meu neto. Ele foi estudar no Rio e voltou de ateu. Ela disse que eu voltei de ateu. Aquela preposição deslocada me fantasiava de ateu. Como quem dissesse no Carnaval: aquele menino está fantasiado de palhaço. Minha avó entendia de regências verbais. Ela falava de sério. Mas todo-mundo riu. Porque aquela preposição deslocada podia fazer de uma informação um chiste. E fez. E mais: eu acho que buscar a beleza nas palavras é uma solenidade de amor. E pode ser instrumento de rir. De outra feita, no meio da pelada um menino gritou: Disilimina esse, Cabeludinho. Eu não desiliminei ninguém. Mas aquele verbo novo trouxe um perfume de poesia à nossa quadra. Aprendi nessas férias a brincar de palavras mais do que trabalhar com elas. Comecei a não gostar de palavra engavetada. Aquela que não pode mudar de lugar. Aprendi a gostar mais das palavras pelo que elas entoam do que pelo que elas informam. Por depois ouvi um vaqueiro a cantar com saudade: Ai morena, não me escreve/que eu não sei a ler. Aquele a preposto ao verbo ler, ao meu ouvir, ampliava a solidão do vaqueiro.

Manoel de Barros, in: Memórias Inventadas / As Infâncias de Manoel de Barros. Ed. Planeta

sábado, 25 de fevereiro de 2012

anotações insensatas - fragmentos - hoje, 16 anos sem Caio F.

Federico Erra
[...] Dor branca, querendo primeiro compreender, antes de doer abolerada, a dor. Doeria mais tarde, quem sabe, de maneira insensata e ilusória como doem as perdas para sempre perdidas, e portanto irremediáveis, transformadas em memórias iguais pequenos paraísos-perdidos. Que talvez, pensava agora, nem tivessem sido tão paradisíacos assim.

Caio Fernando Abreu, in: Pequenas Epifanias / O Estado de S. Paulo, 22/4/1987 / Ed. Agir

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Mais do que tudo, odeio
Tantas noites em flor da Primavera,
Transbordantes de apelos e de espera,
Mas donde nunca nada veio.

Sophia de Mello Breyner Andresen, in: Poesia I, 1944 / Poemas Escolhidos. Seleção Vilma Arêas. Ed. Companhia das Letras

Meio-dia

Meio-dia. Um canto da praia sem ninguém.
O sol no alto, fundo, enorme, aberto,
Tornou o céu de todo o deus deserto.
A luz cai implacável como um castigo.
Não há fantasmas nem almas,
E o mar imenso solitário e antigo,
Parece bater palmas.

Sophia de Mello Breyner Andresen, in: Poesia I, 1944 / Poemas Escolhidos. Seleção Vilma Arêas. Ed. Companhia das Letras

Mar

I

De todos os cantos do mundo
Amo com um amor mais forte e mais profundo
Aquela praia extasiada e nua,
Onde me uni ao mar, ao vento e à lua.

II

Cheiro a terra as árvores e o vento
Que a Primavera enche de perfumes
Mas neles só quero e só procuro
A selvagem exalação das ondas
Subindo para os astros como um grito puro.

Sophia de Mello Breyner Andresen, in: Poesia I, 1944 / Poemas Escolhidos. Seleção Vilma Arêas. Ed. Companhia das Letras

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

De paredes e flores

Katia Chausheva
de palavras se adiam (palpam) dores
e de paredes se rodeiam flores
de flores se munem as palavras
que içam fogos
e de muros se alteiam
os lugares de amores
[...]
qual de nós de seiva (em sangue)
emparedadas flores.

Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa, in: Novas Cartas Portuguesas. Ed. Círculo do Livro

versos de circunstância

Elena Odriozola
olha pelo caminho quem vem
repete ene vezes
no ipê um passarinho ao me
acordar
e porque o dia nasce o dia
passa o dia morre a noite
nasce a noite corre
e ninguém vem
noite alta um outro mente
amanhã eu vou
amanhã eu vou
amanhã eu vou

Márcia Maia

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

29 de abril, martes, 1958



Contínuo sin hacer nada. Pronto sucederá, no lo temido, sino lo ansiado, sino sobre todo lo ansiado.
Sueño con el aislamiento. Yo sola, cerca del mar. Sola. Absolutamente sola. Ésta es mi imagen de la felicidad.

Alejandra Pizarnik, in: Diarios. Ed. Lumen

(119.) Ana é quem desarrumou minhas fórmulas.

Ana, de Lavoura Arcaica
Ana desregulou o modo de funcionamento de minha alma, de minha relação com meu próprio discurso (minha arquitetura mínima e suficiente até então). Agora, o suficiente se tornou apenas o necessário, Ana. O amor não é um lugar - era essa a minha certeza eclesiástica desenhada por minha voz para mim mesmo. Você desregulou a fórmula: o amor é um lugar? O amor, agora, tem um corpo. Sei que estou idealizando, Ana, eu sei. Sei que tudo é pretexto, falando de mim, só de mim, sei que estou aceitando a possibilidade (e ainda usando você como pretexto) de que a fórmula anterior se torne o oposto, assim: o amor é um lugar, clave central da ficção que temos de ser se quisermos que a vida seja possível, pelo menos. Não, Ana, também não concordo com isso, o que pouco importa, porque, afinal, as coisas são tais e quais a nossa fragilidade permite dizê-las.

Wesley Peres, in: Casa entre Vértebras. Ed. Record

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Passagem da noite

Sundari Carmody
É noite. Sinto que é noite
não porque a sombra descesse
(bem me importa a face negra)
mas porque dentro de mim,
no fundo de mim, o grito
se calou, fez-se desânimo.
Sinto que nós somos noite,
que palpitamos no escuro
e em noite nos dissolvemos.
Sinto que é noite no vento,
noite nas águas, na pedra.
E que adianta uma lâmpada?
E que adianta uma voz?
É noite no meu amigo.
É noite no submarino.
É noite na roça grande.
É noite, não é morte, é noite
de sono espesso e sem praia.
Não é dor, nem paz, é noite,
é perfeitamente a noite.

Mas salve, olhar de alegria!
E salve, dia que surge!
Os corpos saltam do sono,
o mundo se recompõe.
Que gozo na bicicleta!
Existir: seja como for.
A fraterna entrega do pão.

Amar: mesmo nas canções.
De novo andar: as distâncias,
as cores, posse das ruas.
Tudo que à noite perdemos
se nos confia outra vez.
Obrigado, coisas fiéis!
Saber que ainda há florestas,
sinos, palavras; que a terra
prossegue seu giro, e o tempo
não murchou; não nos diluímos.
Chupar o gosto do dia!
Clara manhã, obrigado,
o essencial é viver!

Carlos Drummond de Andrade, in: A Rosa do Povo. Ed. Record

.

Katia Chausheva
[...] eu me sinto esfacelar de instante em instante.

Lúcio Cardoso, in: A Luz no Subsolo. Ed. Brasiliense

sábado, 18 de fevereiro de 2012

(ter) presente

O Fabuloso Destino de Amélie Poulain
[...] Cheiros, pensou ela. Por que será que cheiros disparam lembranças de forma tão insistente?

Erica Jong, in: Pára-quedas & Beijos. Ed. Círculo do Livro

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

a experiência do leitor

Balthus
[...] "Você não pode embarcar de novo na vida, esta viagem de carro única, quando ela termina", escreve o romancista turco Orhan Pamuk em O Castelo Branco," mas, se tem um livro na mão, por mais complexo ou difícil que seja compreendê-lo, ao terminá-lo você pode, se quiser, voltar ao começo, ler de novo, e assim compreender aquilo que é difícil, assim compreendendo também a vida".

Alberto Manguel, in: Uma História da Leitura. Tradução de Pedro Maia Soares. Ed. Companhia das Letras

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

assim, bem leve :)

[...] A vida é demasiado preciosa para ser gasta com desprezo.

Erica Jong, in: Salve sua Vida. Ed. Círculo do Livro

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Instante

Brilho de Uma Paixão
Deixai-me limpo
O ar dos quartos
E liso
O branco das paredes

Deixai-me com as coisas
Fundadas no silêncio

Sophia de Mello Breyner Andresen, in: Livro Sexto, 1962 / Poemas Escolhidos. Seleção Vilma Arêas. Ed. Companhia das Letras

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Será possível

Será possível que nada se cumprisse?
Que o roseiral a brisa as folhas de hera
Fossem como palavras sem sentido
- Que nada sejam senão seu rosto ido
Sem regresso nem resposta - só perdido?

Sophia de Mello Breyner Andresen, in: O Nome das Coisas, 1977. / Poemas Escolhidos. Seleção Vilma Arêas. Ed. Companhia das Letras

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

(49.) Depois de não ser mais o tempo, depois de me aninhar no silêncio das imagens...

A Liberdade é Azul
Em verdade, isso é coisa para um futuro, para depois, que agora me falta coragem, que agora ouço o tiquetaquear do relógio com uma calma intransitiva. Depois, percorrerei de outro modo minhas palavras, e posso até ousar ouvir o entre elas, e posso até cultivar os nãos de que sou feito. Por agora, prefiro viver sintaticamente, deixar as vias semânticas em teia. O que mais sou é isso, suvenir de palavras. Suvenir de palavras emitido por uma boca que não há, senão sendo ela também palavra. Reino da onipalavra? Não, estou tentando configurar a mim mesmo a dimensão onde estou engarranchado.

Wesley Peres, in: Casa entre Vértebras. Ed. Record

domingo, 12 de fevereiro de 2012

Viajar? Para viajar basta existir.

Vou de dia para dia, como de estação para estação, no comboio do meu corpo, ou do meu destino, debruçado sobre as ruas e as praças, sobre os gestos e os rostos, sempre iguais e sempre diferentes, como, afinal, as paisagens são.

Se imagino, vejo. Que mais faço eu se viajo? Só a fraqueza extrema da imaginação justifica que se tenha que deslocar para sentir.

"Qualquer estrada, esta mesma estrada de Entepfuhl, te levará até o fim do mundo." Mas o fim do mundo, desde que o mundo se consumou dando-lhe a volta, é o mesmo Entepfuhl de onde se partiu. Na realidade, o fim do mundo, como o princípio, é o nosso conceito do mundo. É em nós que as paisagens têm paisagem. Por isso, se as imagino, as crio; se as crio, são; se são, vejo-as como às outras. Para quê viajar? Em Madrid, em Berlim, na Pérsia, na China, nos Pólos ambos, onde estaria eu senão em mim mesmo, e no tipo e género das minhas sensações?

A vida é o que fazemos dela. As viagens são os viajantes. O que vemos, não é o que vemos, senão o que somos.

Fernando Pessoa, in: Livro do Desassossego. Ed. Companhia das Letras

sábado, 11 de fevereiro de 2012

Alguns gostam de poesia

Poesia
Alguns —
quer dizer que nem todos.
Nem sequer a maior parte mas sim uma minoria.
Não contando as escolas onde se tem que,
e quanto a poetas,
dessas pessoas, em mil, haverá duas.

Gostam —
mas gosta-se também de sopa de espaguete,
dos galanteios e da cor azul,
do velho cachecol,
brindar à nossa gente,
fazer festas ao cão.

De poesia —
mas que é isso a poesia?
Muitas e vacilantes respostas
já foram dadas à questão.
Por mim não sei e insisto que não sei
e esta insistência é corrimão que me salva.

Wislawa Szymborska / Tradução de Júlio Sousa Gomes, in: Paisagem com Grão de Areia, Lisboa: Relógio d’água, 1996.

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

ah...

Factotum - Sem Destino
bebendo cerveja alemã
e tentando alcançar o
poema imortal às
5 da tarde
mas, ah, eu disse aos
estudantes que a coisa certa
a fazer é não tentar.

mas quando as mulheres não estão
por perto e os cavalos não estão
correndo
o que mais se pode fazer?

tive um par de
fantasias sexuais
almocei fora
enviei três cartas
fui à mercearia.
nada na tv.
o telefone está calado.
passeio fio dental
entre meus dentes.

não vai chover e eu escuto
os primeiros a chegar das
8 horas de trabalho enquanto
dirigem e estacionam seus carros
atrás dos apartamentos
ao lado.

me sento bebendo cerveja alemã
e tento alcançar
o grande poema
e não irei conseguir.
apenas seguirei bebendo
mais e mais cerveja alemã
e enrolando cigarros
e lá pelas 11 horas
estarei deitado
na cama desfeita
olhando para cima
acordado sob a luz
elétrica
esperando ainda pelo poema
imortal.

Charles Bukowski, in: O Amor é Um Cão dos Diabos. Tradução de Pedro Gonzaga. Ed. L&PM

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

No caminho com Maiakóvski - fragmento

Katia Chausheva
[...] Tu sabes,
conheces melhor do que eu
a velha história.
Na primeira noite eles se aproximam
e roubam uma flor
do nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na segunda noite, já não se escondem:
pisam as flores,
matam nosso cão,
e não dizemos nada.
Até que um dia,
o mais frágil deles
entra sozinho em nossa casa,
rouba-nos a luz, e,
conhecendo nosso medo,
arranca-nos a voz da garganta.
E já não podemos dizer nada [...]

Eduardo Alves da Costa

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

(42.) Sei de cor o som do seu corpo,

Do Amor e Outros Demônios
sei a textura de suas páginas mais azuis, sei os peixes de sua voz e quais de suas janelas não se abrem, sei a umidade de seu chão, sei as paredes de sua chuva, sei a lua em seu umbigo, sei suas vírgulas se fazendo caminho para o que não sei e a rouquidão específica de cada um dos seus silêncios e a ruptura de seus pensamentos quando me envio em leve vento fazendo-me grafia invisível em sua nuca, sei a mobília de seus olhos e os ruídos de suas aldravas, sei a sutil ranhura de seus dentes em meu cansaço, sei a alvura extrema de sua ante-sala e a nódoa que impede minha fala, sei a acústica de todo o seu corpo suando enquanto dorme sonhando o mapa evanescente dos meandros do miolo de seu rumoroso ser em carne viva. Pois aqui estou, metafórico e físico, encordoado na imagem do seu grito, sabendo o que não sei, falando o infalável, aqui estou, fora de qualquer casa, dentro de qualquer casa, caminhável, caminhante, quase transitivo, quase permitindo que as palavras me digam, quase sendo as palavras, quase sendo o que não digo, aqui estou, não redigindo a carta que me pediu, em que falaria de mim e só de mim, aqui estou, redigindo o seu corpo, fazendo do seu corpo palavra, ainda que sabendo que nem mesmo nas palavras pode um homem banhar-se outra vez no mesmo rio.

Wesley Peres, in: Casa entre Vértebras. Ed. Record

Happy birthday to me

Irisz Agocs
Sugestões para presente

Amor. Bolinhas de sabão. O som de copos com água. O som das gotas no chão. Um sorriso tímido. A música por trás dos ruídos. Um barquinho de papel. Um avião nas mãos de um menino. Um coração encostado no outro. Um ou dois para sempres. Uma pipa atravessando as nuvens. Uma sementeira de tulipas. Um par de meias listradas. Dois ou três cata-ventos. Uma palavra inventada.

Rita Apoena

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

"Ah! se eu pudesse entender/ O que dizem os teus olhos..."

Blue Valentine
[...] Fitavam-se um nos olhos do outro, como se o segredo da vida estivesse ali. O que é que os enamorados vêem, um nos olhos do outro, aliás? Vêem-se mutuamente?

Erica Jong, in: Medo de Voar. Ed. Nova Cultural

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

Uma parte do eu

Eu,
aprendiz de rocha,
vaga-lume
e machado

Dependente
de marco,
café e cigarro

Curiosa
por trilhas, trilhos
e sozinhos

Detentora de um sonho
que se perdeu no caminho.

Barbara Leite

"apesar das dúvidas, dos desesperos, apesar da vontade de me livrar disso, não paro de afirmar em mim mesmo o amor como valor."

The Edge of Love
[...]
- É só que eu quero sentir-me realmente bem perto de alguém, unida a alguém, completada, ao menos uma vez. Quero amar alguém de verdade.
- E o que faz você pensar que o amor resolve alguma coisa?
- Talvez não resolva nada - contrapus -, mas quero assim. Quero sentir-me inteira.

Erica Jong, in: Medo de Voar. Ed. Nova Cultural

domingo, 5 de fevereiro de 2012

(36.)

Sundari Carmody
Todo rumor me leva a esse ninguém que me escuta. Trabalho constante e letal para qualquer realidade que não em dissolução. Há também paredes em meus pensamentos mais leves. Penso nisso até quando o café empresta seu calor a meus olhos, e o sol me engasga. Minhas palavras, umas às outras se adentram, se engavetam; meus desejos pulam de agora em agora, sincronizando vida e morte.

Wesley Peres, in: Casa entre Vértebras. Ed. Record

(2.)

A casa do homem é mesmo o entre – é o que eu penso. E as cartas, no fundo, partem de um ausente em direção a outro ausente. Nunca sabemos o que dizemos. Depois que dizemos, às vezes, entendemos um pouco. A gente fala pra humanizar o silêncio, repartir. Não suportamos o silêncio todo, anterior às palavras, o silêncio mítico que mesmo os deuses não devem suportar facilmente.

Wesley Peres, in: Casa entre Vértebras. Ed. Record

Capri, septiembre de 1961 - fragmento


La espera del amor, el amor a la espera. Cuando venga con sus ojos de niebla. La noche me transforma en la esperadora del amor.

Alejandra Pizarnik, in: Diarios. Ed. Lumen

sábado, 4 de fevereiro de 2012

XLVI - para hoje, dia de Hilda

Katia Chausheva
Talvez eu seja
O sonho de mim mesma.
Criatura-ninguém
Espelhismo de outra
Tão em sigilo e extrema
Tão sem medida
Densa e clandestina

Que a bem da vida
A carne se fez sombra.

Talvez eu seja tu mesmo
Tua soberba e afronta.
E o retrato
De muitas inalcançáveis
Coisas mortas.

Talvez não seja.
E ínfima, tangente
Aspire indefinida
Um infinito de sonhos
E de vidas.

Hilda Hilst, in: Cantares. Ed. Globo

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Selo

Recebi este selo do blog: Anestesiando a Mente - obrigada pela lembrança Thais :)

Como regras: responder 7 coisas sobre mim e repassar este selo para 7 blogs.

____ Eu:
1. "vai ao teatro, mas prefere cinema".
2. gosta de escutar música quando está no engarrafamento dos ônibus.
3. esquece das horas dentro de uma biblioteca/livraria...
4. queria tomar sorvete todo dia.
5. sonha em viajar atrás de Mafalda - só para sentar no banquinho com ela.
6. chocólatra (mas estou tentando diminuir...)
7. não empresto os meus livros tão facilmente.

____ Blogs que indico:
1. Vem Cá Luisa, me dá a tua mão...
2. Compartimento Secreto para Pequenas Coisas
3. Let It Be
4. Palavras: matéria de vida
5. Belas Coisas Simples
6. "Entre Aspas"
7. Que seja Infinito


o estouro

Táxi Driver
demais
tão pouco

tão gordo
tão magro
ou ninguém.

risos ou
lágrimas

odiosos
amantes

estranhos com faces como
cabeças de
tachinhas

exércitos correndo através
de ruas de sangue
brandindo garrafas de vinho
baionetando e fodendo
virgens.

ou um velho num quarto barato
com uma fotografia de M. Monroe.

há tamanha solidão no mundo
que você pode vê-la no movimento lento dos
braços de um relógio.

pessoas tão cansadas
mutiladas
tanto pelo amor como pelo desamor.

as pessoas simplesmente não são boas umas com as outras
cara a cara.

os ricos não são bons para os ricos
os pobres não são bons para os pobres.

estamos com medo.

nosso sistema educacional nos diz que
podemos ser todos
grandes vencedores.

eles não nos contaram
a respeito das misérias
ou dos suicídios.

ou do terror de uma pessoa
sofrendo sozinha
num lugar qualquer

intocada
incomunicável

regando uma planta.

as pessoas não são boas umas com as outras.
as pessoas não são boas umas com as outras.
as pessoas não são boas umas com as outras.

suponho que nunca serão.
não peço para que sejam.

mas às vezes eu penso sobre
isso.

as contas dos rosários balançarão
as nuvens nublarão
e o assassino degolará a criança
como se desse uma mordida numa casquinha de sorvete.

demais
tão pouco

tão gordo
tão magro
ou ninguém

mais odiosos que amantes.

as pessoas não são boas umas com as outras.
talvez se elas fossem
nossas mortes não seriam tão tristes.

enquanto isso eu olho para as jovens garotas
talos
flores do acaso.

tem que haver um caminho.

com certeza deve haver um caminho sobre o qual ainda
não pensamos.

quem colocou este cérebro dentro de mim?

ele chora
ele demanda
ele diz que há uma chance.

ele não dirá
"não".

Charles Bukowski, in: O Amor é Um Cão dos Diabos. Tradução de Pedro Gonzaga. Ed. L&PM

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

(152.)


Queria ser simples. Em vez disso tento coisas como pensar o Zero, dar-lhe imagem que seja. Habito esse ferro-velho de palavras e silêncios, com suas possibilidades infinitas de significar, estou enleado nisso, em inventar alguma beleza, ainda que precária e incapaz de fazer voar o interior de uma bolha de sabão. Queria ser simples, digo isso e sinto a pequena alegria daqueles que podem ainda expressar seus desejos mais ingênuos - não autênticos, ingênuos apenas.

Wesley Peres, in: Casa entre Vértebras. Ed. Record

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

As três palavras mais estranhas

Sundari Carmody
Quando pronuncio a palavra Futuro
a primeira sílaba já pertence ao passado.

Quando pronuncio a palavra Silêncio,
destruo-o.

Quando pronuncio a palavra Nada,
crio algo que não cabe em nenhum não-ser.

Wislawa Szymborska / Tradução de Elzbieta Milewska e Sérgio das Neves

Brincadeiras

Betania Zacarias
No quintal, a gente gostava de brincar com palavras
mais do que de bicicleta.
Principalmente porque ninguém possuia bicicleta.
A gente brincava de palavras descomparadas. Tipo assim:
O céu tem três letras,
O sol tem três letras,
O inseto é maior.
O que parecia um despropósito
Para nós não era despropósito.
Porque o inseto tem seis letras, e o sol só tem três
Logo o inseto é maior. (Aqui entrava a lógica?)
Meu irmão que era estudado falou quê lógica quê nada
Isso é um sofisma. A gente boiou no sofisma.
Ele disse que sofisma é risco n’água. Entendemos tudo.
Depois Cipriano falou:
Mais alto do que eu, só Deus e os passarinhos.
A dúvida era saber se Deus também avoava
Ou se Ele está em toda parte como a mãe ensinava.
Cipriano era um indiozinho guató que aparecia no
quintal, nosso amigo. Ele obedecia a desordem.
Nisso apareceu meu avô.
Ele estava diferente e até jovial.
Contou-nos que tinha trocado o Ocaso dele por duas andorinhas.
A gente ficou admirado daquela troca.
Mas não chegamos a ver as andorinhas.
Outro dia a gente destampamos a cabeça de Cipriano.
Lá dentro só tinha árvore árvore árvore
Nenhuma ideia sequer.
Falaram que ele tinha predominâncias vegetais do que platônicas.
Isso era.

Manoel de Barros, in: Memórias Inventadas / As Infâncias de Manoel de Barros. Ed. Planeta

Todas as recordações são rastros de lágrimas

Uma vez apaixonei-me por alguém. Após um tempo, ela não estava mais aqui. Fui a 2046, pensei que poderia estar lá me esperando. Mas não pude encontrá-la. Não consigo parar de me perguntar se ela me amava ou não. Mas nunca descobri a resposta. Talvez a sua resposta fosse como um segredo... Que ninguém saberia.
Vamos nos ver novamente. Então se você achar que não deveríamos estar juntos, diga-me isso francamente. Naquele dia, há 6 anos, um arco íris apareceu no meu coração. E ainda continua lá como uma chama ardendo dentro de mim. Mas quais são os seus verdadeiros sentimentos em relação a mim? São como o arco íris depois da chuva? Ou... Esse arco íris já se desvaneceu há muito? Estou esperando por sua resposta.
[...] Pouco a pouco comecei a duvidar de mim mesmo. O motivo por que ela não me respondia não era simplesmente por que suas reações estavam retardadas... Mas somente porque não me amava. Assim finalmente descobri isso. E isso esta completamente fora de meu controle. A única coisa que me restava... Era desistir.

Do filme: 2046 - Segredos do Amor (2046)
Direção: Wong Kar-Wai, 2004