terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Algum preço a gente tem que pagar quando resolve fingir que a vida voltou ao normal - quando não é nada disso que está acontecendo...

Sundari Carmody
[...] o que será que é o contrário do amor? Para a maioria, o contrário do amor é o ódio, não, muito óbvio. Cheguei à conclusão de que o contrário do amor é o estado permanente de perplexidade. A perplexidade ferida, que te prende numa armadilha de onde você só vai conseguir escapar com a ajuda de quem te abandonou.

Do filme: Como Esquecer
Direção: Malu De Martino, 2010

43

- Eu não te amo mais.
- O quê? Fale mais alto,
a ligação está horrível!

Jorge Furtado, in: Os Cem Menores Contos Brasileiros do Século. Org. Marcelino Freire. Ed. Ateliê Editorial

Nonnetta
Se eu soubesse o que procuro
com esse controle remoto...

Fernando Bonassi, in: Os Cem Menores Contos Brasileiros do Século. Org. Marcelino Freire. Ed. Ateliê Editorial

Flor e cronópio

Sequência: Diane Golay
Um cronópio encontra uma flor solitária no meio dos campos. Primeiro pensa em arrancá-la, mas percebe que é uma crueldade inútil, e se coloca de joelhos junto dela e brinca alegremente com a flor, isto é: acaricia-lhe as pétalas, sopra para que ela dance, zumbe feito uma abelha, cheira seu perfume, e deita finalmente debaixo da flor envolvido em uma enorme paz.

A flor pensa: "É como uma flor."

Julio Cortázar, in: Histórias de Cronópios e de Famas. Tradução de Gloria Rodríguez. Ed. Civilização Brasileira

segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

(130.)

Sundari Carmody
Às vezes, penso que sol nunca houve em mim. Tenho alma tão molhada e escura quanto um corpo no seu dentro de rumores, alheio a qualquer pergunta que pretenda abordá-lo. Noutras vezes, penso que sou sol só encadeado no silêncio de ser sol e só. O vazio é um acontecimento ordinário em mim; sem dúvida, sou um ser falado pela solidão: talvez, por isso, eu não fale de outra coisa. O meu interesse pelo vento, Ana, não é mero.

Wesley Peres, in: Casa entre Vértebras. Ed. Record

Hoje, 30/1, dia da saudade - e 9 canções para embalar os saudos@s.


Saudade:
Substantivo feminino - Lembrança nostálgica e, ao mesmo tempo, suave, de pessoas ou coisas distantes ou extintas, acompanhada do desejo de tornar a vê-las ou possuí-las; nostalgia. (Dicionário Aurélio)






Devia ser Proibido - Poema de Alice Ruiz, na voz de Itamar Assumpção

*


Chico Buarque canta Chega de Saudade

*


Otto - Saudade

*


Legião Urbana - Vento no Litoral

*


Marcelo Camelo - Saudade

*


Raul Seixas - Dia da Saudade

*


Cordel do Fogo Encantado - Quando o Sono não Chegar

*


Vinícius de Moraes - Além do Amor

*


Maria Bethânia - Se eu Morresse de Saudade

Canção dos romances perdidos

Katia Chausheva
Oh! o silêncio das salas de espera
Onde esses pobres guarda-chuvas lentamente
[escorrem...

O silêncio das salas de espera
E aquela última estrela...

Aquela última estrela
Que bale, bale, bale,
Perdida na enchente da luz...

Aquela última estrela
E, na parede, esses quadros lívidos,
De onde fugiram os retratos...

De onde fugiram todos os retratos...

E esta minha ternura,
Meu Deus,
Oh! toda esta minha ternura inútil,
[desaproveitada!...

Mario Quintana, in: Antologia Poética. Ed. Ediouro

domingo, 29 de janeiro de 2012

462-0614

Charles Bukowski
agora recebo muitas chamadas de telefone
todas iguais.
“é Charles Bukowski,
o escritor?”
“sim,” eu lhes respondo.
e eles dizem que entendem minha
escrita,
alguns deles são escritores
ou querem ser escritores
e estão em empregos estúpidos e
horríveis
e não conseguem nem encarar a sala
o apartamento
as paredes
essa noite...
querem alguém com quem possam
conversar,
não podem acreditar
que não posso ajudá-los
que não conheço palavras.
não podem acreditar
que agora mesmo
me dobro em meu quarto
segurando minhas entranhas
e dizendo
“Jesus, Jesus, Jesus,
de novo não!”
eles não podem acreditar
que as pessoas mal-amadas
as ruas
a solidão
as paredes
também são minhas.
e quando desligo o telefone
eles acham que escondi o
jogo.

não escrevo a partir da sabedoria.
quando o telefone toca
eu também gostaria de ouvir palavras
que pudessem aliviar um pouco alguma
dessas coisas.

é por isso que meu nome está na
lista.

Charles Bukowski, in: O Amor é Um Cão dos Diabos. Tradução de Pedro Gonzaga. Ed. L&PM

sábado, 28 de janeiro de 2012

(90.)

Como Esquecer
A gente fala é pra fundar memória, ou seja, pra esquecer o inesquecível, pra não lembrar das coisas muito importantes, muito belas, muito horrendas, não tecíveis, não nomeáveis, não nós, desnoveladas, somente nuas e elas próprias. A gente fala pra poder discutir se Deus existe ou não, pra se perguntar o que é a vida, pra falar do pai, da mãe, pra bendizer a filha, pra conversar e versar acerca das mãos roxas da avó morta, da solidão da criança diante disso. A gente fala pra oralizar o corpo, dizê-lo, torná-lo imaginariamente som e forma ecoando para sempre, para o ser humano, sempre curto, mas de um doloroso quase suportável, um pouquinho apenas mais do que farpa entre unha e carne. Sol entalado no coração - que coisa mais bela o indizível - empalavrado, permanecendo indizível.

Wesley Peres, in: Casa entre Vértebras. Ed. Record

pequenas anotações - ainda tem gente perdida? aqui ó:

Algumas pessoas me perguntaram se deletei o blog... Então, só não pude avisar a todos sobre a alteração do link (que ocorreu desde setembro) - são muitos blogs e um-curto-espaço-de-tempo.

Lembrete: Querid@s,

atualizem o novo endereço: http://consideracaodopoema.blogspot.com/
Assim vocês poderão receber as postagens atualizadas :)

O título permanece - a alteração se aplica apenas ao link.

Beijos,
Felicidade Clandestina

(24.)

The Edge of Love
Grafia. Houve tempo em que tentei transcrever-me; e tudo que pude foi falar do vento, num diário que logo virou objeto de gaveta, e passaram anos assim, até que, um dia, procurando uma foto que odiava, encontrei o pequeno caderno, e me reli, e tudo era outra coisa. Poderia dizer que aquilo foi um diálogo meu comigo, em dois tempos. Mas seria falso. O que descobri é o de sempre: sou um monólogo, ou, como já disse, esfera de espelhos: é disso sempre que falo, da refração entre dois espelhos, um de frente para o outro.

Wesley Peres, in: Casa entre Vértebras. Ed. Record

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

LAST BLUES

Não espalho,
mas ando triste pra caralho.

Mário Bortolotto, in: Os Cem Menores Contos Brasileiros do Século. Org. Marcelino Freire. Ed. Ateliê Editorial

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Tranquilidade na tarde

Barbara Cole
A Liene T. Eiten

Ah, derramar-me líquida sobre o mar
– ser onda indefinidamente –
esperar pela primeira estrela
e dela ser apenas
espelho.

Olga Savary

Quero apenas

The Edge of Love
Além de mim, quero apenas
essa tranqüilidade de campos de flores
e este gesto impreciso
recompondo a infância.

Além de mim
– e entre mim e meu deserto –
quero apenas silêncio,
cúmplice absoluto do meu verso,
tecendo a teia do vestígio
com cuidado de aranha.

Olga Savary

31 de julio - 1961

Sundari Carmody

La ausencia, el si amor, la certeza - su descubrimiento - de que sin amor me ahogo y siempre me ahogué. Pero la ausencia viva, el cuerpo de la ausencia, tocarla ahora, respirarla. Esfuerzo inédito esta espera sostenida por mí, hecha a mano, a alma.

Alejandra Pizarnik, in: Diarios. Ed. Lumen

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

"era Ana a minha fome... era Ana a minha loucura, era Ana a minha lâmina, ela meu arrepio, meu sopro, meu assédio..."

Lavoura Arcaica
(99.) Ana muda tanto os cabelos. Ana muda tanto de ideia. Ana tem um jeito oracular de me ouvir, um jeito físsil de me falar e de me ouvir. Ana, por existir, ensina-me a ser outros. Seja Ana quem for, ela, sempre a mesma e sempre outra. Amo mais em Ana um algo penumbroso, úmido, olho de peixe implantado em pássaro. Tudo o quanto falo, que não sobre Ana, é justamente pra fugir, pra não falar de Ana. Tudo o que falo sobre Ana não é menos que um não-falar sobre Ana. Pensar em Ana é minha casa. Estar com Ana é meu exílio. (Quando, em palavras, posso pensar e estar com Ana; imerso no campo animaginário, descoberto de palavras como um fio desencapado, e me queimo, e me enguio, e me restrinjo à primeira pessoa do plural, e isso me queima de um modo tal que tenho medo de não mais querer viver outra coisa.)

Wesley Peres, in: Casa entre Vértebras. Ed. Record

.

Blue Valentine
[...] Do lado de fora, encostado à mureta da varanda, olho penhasco abaixo e vejo o mar insone. As ondas cobrem os rochedos com mais vontade do que durante o dia, e é nessas águas escuras, mais pretas do que o céu, que de repente me volta a imagem de um barco se afastando na imensidão, como se seu destino não pudesse ser outro senão o fim, e penso que se fosse possível voltar atrás faria tudo diferente. Cada passo, cada palavra dita, cada gesto na sua direção – eu apagaria tudo, como se apaga um arquivo no computador, sem que reste qualquer vestígio, qualquer lembrança.

Quando uma história termina, ainda por cima de forma tão abrupta e inesperada, só há uma coisa a fazer: procurar uma explicação para o que aconteceu. Mas quando tudo acaba o tempo já não existe, o buraco é um só, e a pergunta sempre a mesma: existe alguma coisa depois do fim?

Tatiana Salem Levy, in: Dois Rios. Ed. Record

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

(82.)



- Falo para me visitar. O silêncio é quando estou em casa.

Wesley Peres, in: Casa entre Vértebras. Ed. Record

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Viagens

Quando os famas saem em viagem, seus costumes ao pernoitarem numa cidade são os seguintes: um fama vai ao hotel e indaga cautelosamente os preços, a qualidade dos lençóis e a cor dos tapetes. O segundo se dirige à delegacia e lavra uma ata declarando os móveis e imóveis dos três, assim como o inventário do conteúdo de suas malas. O terceiro fama vai ao hospital e copia as listas dos médicos de plantão e suas especializações.

Terminadas estas providências, os viajantes se reúnem na praça principal da cidade, comunicam-se suas observações e entram no café para beber um aperitivo. Mas antes eles se seguram pelas mãos e dançam em roda. Esta dança recebe o nome de Alegria dos famas.

Quando os cronópios saem em viagem, encontram hotéis cheios, os trens já partiram, chove a cântaros e os táxis não querem levá-los ou lhes cobram preços altíssimos. Os cronópios não desanimam porque acreditam piamente que essas coisas acontecem a todo mundo, e na hora de dormir dizem uns aos outros: “Que bela cidade, que belíssima cidade”. E sonham a noite toda que na cidade há grandes festas e que eles foram convidados. E no dia seguinte levantam contentíssimos, e é assim que os cronópios viajam.

As esperanças, sedentárias, deixam-se viajar pelas coisas e pelos homens e são como as estátuas que é preciso ir ver porque elas não vêm até nós.

Julio Cortázar, in: Histórias de Cronópios e de Famas. Tradução de Gloria Rodríguez. Ed. Civilização Brasileira

Cielo

mirando el cielo

me digo que es celeste desteñido (témpera
azul puro después de una ducha helada)

las nubes se mueven

pienso en tu rostro y en ti y en tus manos y
en el ruido de tu pluma y en ti
pero tu rostro no aparece en ninguna nube!
yo esperaba verlo adherido a ella como un
trozo de algodón enyodado dentro de tela adhesiva
sigo caminando

un cocktail mental embaldosa mi frente
no sé si pensar en el cielo o en ti
y si tirara una moneda? (cara tú seca cielo)
no! tu ser no se arriesga y
yo te deseo te de-se-o!
cielo trozo de cosmos cielo murciélago infinito
inmutable como los ojos de mi amor

pensemos en los dos

los dos tú + cielo = mis galopantes sensaciones
biformes bicoloreadas bitremendas bilejanas
lejanas lejanas

lejos

sí amor estás lejos como el mosquito
sí! ese que persigue a una mosquita junto
al farol amarillosucio que vigila bajo el
cielo negrolimpio esta noche angustiosa
llena de dualismos

Alejandra Pizarnik, in: Un Signo en tu Sombra / Poesía Completa. Ed. Lumen

domingo, 22 de janeiro de 2012

Progresso e retrocesso

Inventaram um vidro que deixava passar as moscas. A mosca chegava, empurrava um pouco com a cabeça e pop, já estava do outro lado. Enorme, a alegria da mosca.

Tudo foi estragado por um sábio húngaro, quando descobriu que a mosca podia entrar mas não podia sair, ou vice-versa, por causa de quem sabe lá que besteira na flexibilidade das fibras daquele vidro que era muito fibroso. Em seguida inventaram o caça-moscas com um torrão de açúcar dentro, e muitas moscas morriam desesperadas. Assim acabou toda confraternização possível com estes animais dignos de melhor sorte.

Julio Cortázar, in: Histórias de Cronópios e de Famas. Tradução de Gloria Rodríguez. Ed. Civilização Brasileira

postal


nenhum mar. um domingo. um tridente
dois cavalos.
meu coração segue cego e feliz
como carta
extraviada.

Cacaso, in: Mar de Mineiro: poemas e canções.

Fingimentos poéticos

Snjezana Josipovic
"finge tão completamente"

Faz-me falta a tristeza
para o verso:
falta feroz de amante,
ausência provocando dor maior.

Tristeza genuína, original,
a rebentar entranhas e navios
sem mar.
Tristeza redundando em mais
tristeza, desaguando em métrica
de cor.

Recorro-me a jornal, mas é
em vão. A livros russos (largos
e sombrios).
Em provocado rio de depressão,
nem zepellin: balão
a ervas rente.

Um arrastão sonhando-se
navio.

Só se for o que diz o que
deveras sente.
A sério: o Zepellin.
Mas coração:
combóio cuja corda
se partiu.

Ana Luisa Amaral, in: Minha Senhora de Quê, Quetzal Editores, Lisboa

sábado, 21 de janeiro de 2012

LXXII

Katia Chausheva
mas acontecia


de uma luz bater

no espelho


da tua ausência.


refletias-te,

vazio.

Marceli Andresa Becker, in: Do Meu Caderno de Experimentações

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

.

Barbara Cole
faço versos à beira do abismo
do abismo que sou
me atiro
ainda
que caminhe no raso
rio

Nydia Bonetti

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

. .

Norwegian Wood
[...] Sempre é possível perder o que não se tem, sempre é possível afastar-se mais ainda, a possibilidade ilimitada da falta. E eu intuía isso e muito mais, porque no fundo a gente sempre intui, apesar de que eu te diga que em meio ao movimento eu continuava ali deitada, não é verdade que eu continuava ali deitada mas havia a raiva extrema e o rancor e o desejo de que você fosse embora e, mesmo assim, o medo de que você fosse embora, que você enfim levantasse e fosse embora.

Carola Saavedra, in: Flores Azuis. Ed. Companhia das Letras

.


[...] Qualquer dia olho para ti e já não sei quem fomos - encontros, desencontros, iras, ressentimentos, tudo se transforma numa massa fosca, pesada, que abandono pouco a pouco.

Inês Pedrosa, Fazes-me Falta. Ed. Planeta

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

provaremos as ilhas e o mar

Egon Schiele
sei que em alguma noite
em algum quarto
logo
meus dedos abrirão
caminho
através
de cabelos limpos e
macios

canções como as que nenhuma rádio
toca

toda a tristeza, escarnecendo
em correnteza.

Charles Bukowski, in: O Amor é Um Cão dos Diabos. Tradução de Pedro Gonzaga. Ed. L&PM

"Les Amours Imaginaires"

A História de Adèle H.
As figuras imaginárias têm mais relevo e verdade que as reais.

O meu mundo imaginário foi sempre o único mundo verdadeiro para mim. Nunca tive amores tão reais, tão cheios de verve, de sangue e de vida como os que tive com figuras que eu próprio criei. Que loucura! Tenho saudades deles porque, como os outros, passam...

Fernando Pessoa, in: Livro do Desassossego. Ed. Companhia das Letras

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

Anoitecer

Edward Hopper
A Dolores

É a hora em que o sino toca,
mas aqui não há sinos;
há somente buzinas,
sirenes roucas, apitos
aflitos, pungentes, trágicos,
uivando escuro segredo;
desta hora tenho medo

É a hora em que o pássaro volta,
mas de há muito não há pássaros;
só multidões compactas
escorrendo exaustas
como espesso óleo
que impregna o lajedo;
desta hora tenho medo.

É a hora do descanso,
mas o descanso vem tarde,
o corpo não pede sono,
depois de tanto rodar;
pede paz - morte - mergulho
no poço mais ermo e quedo;
desta hora tenho medo.

Hora de delicadeza,
gasalho, sombra, silêncio.
Haverá disso no mundo?

É antes a hora dos corvos,
bicando em mim, meu passado,
meu futuro, meu degredo;
desta hora, sim, tenho medo.

Carlos Drummond de Andrade, in: A Rosa do Povo. Ed. Record

domingo, 15 de janeiro de 2012

41

Cada palavra uma folha
no lugar certo.

Uma flor de vez em quando
no ramo aberto.

Um pássaro parecia
pousado e perto.

Mas não: que ia e vinha o verso
pelo universo.

Cecília Meireles, in: Metal Rosicler / Antologia Poética. Ed. Nova Fronteira

Poeminha do contra

Betania Zacarias

Todos esses que aí estão
Atravancando o meu caminho,
Eles passarão...
Eu passarinho!

Mario Quintana, in: Antologia Poética. Ed. Ediouro

sábado, 14 de janeiro de 2012

mesmo sendo uma folha,
uma mísera parte
e duma infinitésima árvore,
a folha tomou coragem.

ba

la

çou

ca

iu

mas ninguém

viu

Estrela Ruiz Leminski

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Edward Hopper

Ela amava a solidão - era o seu domínio -, queria estar sozinha para sofrer melhor...

Lúcio Cardoso, in: A Luz no Subsolo. Ed. Expressão e Cultura

entorpeça seu rabo e seu cérebro e seu coração...

2046 - Segredos do Amor
eu estava saindo de um caso que havia terminado mal.
francamente, eu deslizava em direção ao fundo do poço
sentindo-me realmente desprezível e acabado
quanto tive sorte com essa dama em sua enorme cama
coberta por um dossel enfeitado de joias
mais
vinho, champanhe, cigarros, boletas e
tevê a cores.
ficamos na cama e
bebemos vinho, champanhe, fumamos, detonamos as
[boletas
às dúzias
enquanto eu (sentindo-me desprezível e acabado)
tentava superar o caso que havia terminado mal.
assistia à tevê tentando embotar meus sentidos,
mas a coisa que realmente ajudou
foi esse drama muito longo
(especialmente escrito para a televisão) sobre
espiões...
espiões americanos e espiões russos, e
todos eram tão espertos e
bacanas...
até mesmo seus filhos não sabiam
suas esposas não sabiam, e
de certo modo
eles mesmos quase não sabiam...
e logo vieram os contraespiões, os agentes duplos:
caras que trabalhavam para os dois lados, e
e então um deles passou de agente duplo
a agente triplo,
e tudo se tornou agradavelmente confuso...
acho que nem o cara que tinha escrito o roteiro
sabia o que estava acontecendo...
aquilo seguiu por horas!
hidroplanos se chocando contra icebergs,
um padre em Madison, Wisc. matou seu irmão,
um bloco de gelo foi despachado num cofre para o Peru
no lugar do maior diamante do mundo, e
loiras entravam e saíam de quartos comendo
nozes e doces recheados com creme;
o agente triplo passou a
agente quádruplo e todo mundo amava
todo mundo
e eu segui vendo aquilo
e as horas passaram e
e tudo finalmente desapareceu como um clipe de papel em
meio a uma cesta de lixo e eu
me aproximei do aparelho e o desliguei e
pela primeira vez em uma semana e meia
dormi bem.

Charles Bukowski, in: O Amor é Um Cão dos Diabos. Tradução de Pedro Gonzaga. Ed. L&PM

quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

.

O próprio escrever perdeu a doçura para mim. Banalizou-se tanto, não só o acto de dar expressão a emoções como o de requintar frases, que escrevo como quem come ou bebe, com mais ou menos atenção, mas meio alheio e desinteressado, meio atento, e sem entusiasmo nem fulgor.

Fernando Pessoa, in: Livro do Desassossego. Ed. Companhia das Letras

O silêncio é o mais cortante dos instrumentos cortantes,

Ingmar Bergman
Parece martelar a gente contra o chão. Leva-nos cada vez mais fundo de nossa própria culpa. Faz com que as vozes internas, na cabeça, nos acusem com mais perversidade do que qualquer voz externa o conseguiria.
Revejo na recordação todo o episódio, como se fosse um filme em preto e branco, de fotografia muito viva. Dirigido por Bergman, talvez. Fazíamos o papel de nós mesmos, na versão cinematográfica. Se ao menos pudéssemos escapar a isso de estarmos sempre fazendo o papel de nós mesmos!

Erica Jong, in: Medo de Voar. Ed. Nova Cultural

O apanhador de desperdícios

Martha Barros
Uso a palavra para compor meus silêncios.
Não gosto das palavras
fatigadas de informar.
Dou mais respeito
às que vivem de barriga no chão
tipo água pedra sapo.
Entendo bem o sotaque das águas.
dou respeito às coisas desimportantes
e aos seres desimportantes.
Prezo insetos mais que aviões.
Prezo a velocidade
das tartarugas mais que as dos mísseis.
Tenho em mim esse atraso de nascença.
Eu fui aparelhado
para gostar de passarinhos.
Tenho abundância de ser feliz por isso.
Meu quintal é maior do que o mundo.
Sou um apanhador de desperdícios:
Amo os restos
como as boas moscas.
Queria que a minha voz tivesse um formato de canto.
Porque eu não sou da informática:
eu sou da invencionática.
Só uso a palavra para compor os meus silêncios.

Manoel de Barros, in: Memórias Inventadas / As Infâncias de Manoel de Barros. Ed. Planeta

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

Da paginação

Rabiscos em fotos
Os livros de poemas devem ter margens largas e muitas páginas em branco e suficientes claros nas páginas impressas, para que as crianças possam enchê-los de desenhos - gatos, homens, aviões, casas, chaminés, árvores, luas, pontes, automóveis, cachorros, cavalos, bois, tranças, estrelas - que passarão também a fazer parte dos poemas...

Mario Quintana, in: Antologia Poética. Ed. Ediouro

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

Fraseador

Martha Barros
Hoje eu completei oitenta e cinco anos. O poeta nasceu de treze. Naquela ocasião escrevi uma carta aos meus pais, que moravam na fazenda, contando que eu já decidira o que queria ser no meu futuro. Que eu não queria ser doutor. Nem doutor de curar nem doutor de fazer casa nem doutor de medir terras. Que eu queria era ser fraseador. Meu pai ficou meio vago depois de ler a carta. Minha mãe inclinou a cabeça. Eu queria ser fraseador e não doutor. Então, o meu irmão mais velho perguntou: Mas esse tal de fraseador bota mantimento em casa? Eu não queria ser doutor, eu só queria ser fraseador. Meu irmão insistiu: Mas se fraseador não bota mantimento em casa, nós temos que botar uma enxada na mão desse menino pra ele deixar de variar. A mãe baixou a cabeça um pouco mais. O pai continuou meio vago. Mas não botou enxada.

Manoel de Barros, in: Memórias Inventadas / As Infâncias de Manoel de Barros. Ed. Planeta

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

Soneto aos sapatos quietos

Van Gogh
Os pés dos sapatos juntos.
Hei-de calçá-los, soltos
e imensos, e talvez rotos,
como dois velhos marujos.

Nunca terão o desgosto
que tive. Jamais o sujo
desconsolo: estando postos,
como eu, em chãos defuntos.

Em vãos de flor, sem o riacho
de um pé a outro, entre guizos.
Não há demência ou fome.

Sapatos nos pés não comem.
Só dormem. Porém, descalço
pela alma, o paraíso.

Carlos Nejar

Terapias

Rabiscos em fotos
Um cronópio se forma em Medicina e abre um consultório na rua Santiago del Estero. Logo chega um doente e conta como há coisas que doem e como de noite não dorme e de dia não come.

- Compre um buquê grande de rosas - diz o cronópio.

O doente se retira surpreso, mas compra o buquê e fica bom instantaneamente. Cheio de gratidão corre para o cronópio e além de pagar a consulta, lhe dá de presente, fino testemunho, um belo buquê de rosas. Apenas ele sai, o cronópio cai doente, sente dores por todos os lados, de noite não dorme e de dia não come.

Julio Cortázar, in: Histórias de Cronópios e de Famas. Tradução de Gloria Rodríguez. Ed. Civilização Brasileira

domingo, 8 de janeiro de 2012

quarto - III

Nan Goldin
há quatro noites que

minhahonestidade
perambula
pelas
ruas.

há quatro noites
que se embebeda
e fala coisas
sem sentido.

Aninha Fraco, in: Brechó. Ed. Fundação Casa de Jorge Amado

quarto - VI

Nan Goldin
no quarto VI
dormem

minhasolidão

minhansiedade

e

minhangústia.

Aninha Franco, in: Brechó. Ed. Fundação Casa de Jorge Amado

Pido el silencio

Francesca Woodman
... canta, lastimada mía.
Cervantes

aunque es tarde, es noche,
y tú no puedes.

Canta como si no pasara nada.

Nada pasa.

Alejandra Pizarnik, in: Los Trabajos Y Las Noches, 1965 / Poesía Completa. Ed. Lumen

sábado, 7 de janeiro de 2012

Explicação

Edward Hopper
Meu verso é minha consolação.
Meu verso é minha cachaça. Todo mundo tem sua cachaça.
Para beber, copo de cristal, canequinha de folha-de-flandres,
folha de taioba, pouco importa: tudo serve.

Para louvar a Deus como para aliviar o peito,
queixar o desprezo da morena, cantar minha vida e trabalhos
é que faço meu verso. E meu verso me agrada.

Meu verso me agrada sempre...
Ele às vezes tem o ar sem-vergonha de quem vai dar uma
[cambalhota,
mas não é para o público, é para mim mesmo essa cambalhota.
Eu bem me entendo.
Não sou alegre. Sou até muito triste.
A culpa é da sombra das bananeiras de meu país, esta sombra mole,
[preguiçosa.
Há dias em que ando na rua de olhos baixos
para que ninguém desconfie, ninguém perceba
que passei a noite inteira chorando.
Estou no cinema vendo fita de Hoot Gibson,
de repente ouço a voz de uma viola...
saio desanimado.
Ah, ser filho de fazendeiro!
À beira do São Francisco, do Paraíba ou de qualquer outro córrego
[vagabundo,
é sempre a mesma sen-si-bi-li-da-de.

E a gente viajando na pátria sente saudades da pátria.
Aquela casa de nove andares comerciais
é muito interessante.
A casa colonial da fazenda também era...
No elevador penso na roça,
na roça penso no elevador.

Quem me fez assim foi minha gente e minha terra
e eu gosto bem de ter nascido com essa tara.
Para mim, de todas as burrices, a maior é suspirar pela Europa
A Europa é uma cidade muito velha onde só fazem caso de dinheiro
e tem umas atrizes de pernas adjetivas que passam a perna na gente.
O francês, o italiano, o judeu falam uma língua de farrapos.
Aqui ao menos a gente sabe que tudo é uma canalha só,
lê o seu jornal, mete a língua no governo,
queixa-se da vida (a vida está tão cara)
e no fim dá certo.

Se meu verso não deu certo, foi seu ouvido que entortou.
Eu não disse ao senhor que não sou senão poeta?

Carlos Drummond de Andrade, in: Alguma Poesia. Ed. Record

. . .



Tu sabes que não existe no mundo nada tão instável, tão inquieto quanto o meu coração.

Johann Wolfgang Goethe, in: Os Sofrimentos do Jovem Werther. Tradução de Marcelo Backes. Ed. L&PM
vou escrever nas paredes

minhas janelas são alegres
e só ficam tristes
quando chove

as portas são sérias
não se abrem para qualquer um

Líria Porto