sábado, 31 de dezembro de 2011

Meus querid@s,

Feliz ano novo pesso@s! Infinitas coisas boas e que o próximo ano seja de mil alegrias =}
* Amores, doçuras, leituras, canções, conquistas, realizações, cores, filmes, travessuras, sorrisos, metas, amigos, leveza, poesia...

Para vocês: uma doce canção.


Um beijo grande e um abraço carinhoso,
Felicidade Clandestina

sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

quarto - II

Katia Chausheva
ainda há pouco
minhaternura
levantou-se do
seu
sono
diurno

essa
mulher
franzina
e tímida
perfuma-

se e acaricia
a toalha
que a enxuga.

Aninha Franco, in: Brechó. Ed. Fundação Casa de Jorge Amado

quarto - IV

Nan Goldin
Minhasaudade
tem
olheiras

e fuma

milhares
de cigarros
sem filtro.

É uma
belíssima jovem
existencialista.

Aninha Franco, in: Brechó. Ed. Fundação Casa de Jorge Amado

quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

A poesia dói dentro de mim

Eva Armisen
A poesia dói dentro de mim
como quando meu pai podava a parreira
eu ia vendo caírem
as folhas
eu ia vendo caírem
as folhas
e ninguém sabia
como os ramos derramavam os sons
dolorosos

Vera Lúcia de Oliveira, in: A Porta Range no Fim do Corredor

Escova

Martha Barros
Eu tinha vontade de fazer como os dois homens que vi sentados na terra escovando osso. No começo achei que aqueles homens não batiam bem. Porque ficavam sentados na terra o dia inteiro escovando osso. Depois aprendi que aqueles homens eram arqueólogos. E que eles faziam o serviço de escovar osso por amor. E que eles queriam encontrar nos ossos vestígios de antigas civilizações que estariam enterrados por séculos naquele chão. Logo pensei de escovar palavras. Porque eu havia lido em algum lugar que as palavras eram conchas de clamores antigos. Eu queria ir atrás dos clamores antigos que estariam guardados dentro das palavras. Eu já sabia também que as palavras possuem no corpo muitas oralidades remontadas e muitas significâncias remontadas. Eu queria então escovar as palavras para escutar o primeiro esgar de cada uma. Para escutar os primeiros sons, mesmo que ainda bígrafos. Comecei a fazer isso sentado em minha escrivaninha. Passava horas inteiras, dias inteiros fechado no quarto, trancado, a escovar palavras. Logo a turma perguntou: o que eu fazia o dia inteiro trancado naquele quarto? Eu respondi a eles, meio entresonhado, que eu estava escovando palavras. Eles acharam que eu não batia bem. Então eu joguei a escova fora.

Manoel de Barros, in: Memórias Inventadas / As Infâncias de Manoel de Barros. Ed. Planeta

quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Uma Mulher sob Influência
os dias
que parecem intermináveis
são apenas pedaços
começo
de outros intermináveis
dias

Nydia Bonetti

.



ah, como deseja mergulhar no vazio
que seja céu ou mar
desde que seja azul
e fundo

Nydia Bonetti

terça-feira, 27 de dezembro de 2011

O muro

Alicia Varela
O menino contou que o muro da casa dele era
da altura de duas andorinhas.
(Havia um pomar do outro lado do muro.)
Mas o que intrigava mais a nossa atenção
principal
Era a altura do muro
Que seria de duas andorinhas.
Depois o garoto explicou:
Se o muro tivesse dois metros de altura
qualquer ladrão pulava
Mas a altura de duas andorinhas nenhum ladrão
pulava.
Isso era.

Manoel de Barros, in: Poemas Rupestres. Ed. Record

segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

quanto silêncio é preciso para fazer um poema?

A Artur Gomes

o silêncio da solidão e das portas
da imaginação, do mundo
do vento, das águas e dos gatos

o silêncio do branco

muito barulho para nada

silêncio, silêncio, o silêncio
e algumas palavras

Cristiane Grando

sábado, 24 de dezembro de 2011

quarto - V

Nan Goldin
meuamor
amanhece
quase sempre
nostálgico

bronzeado
e forte
anoitece
belo

pensa.

Aninha Franco, in: Brechó. Ed. Fundação Casa de Jorge Amado

noite de Natal, sozinho

Barfly
noite de Natal, sozinho,
num quarto de motel
junto à costa
perto do Pacífico -
ouviu?

eles tentaram fazer desse lugar algo
espanhol, há
tapeçarias e lâmpadas, e
o banheiro é limpo, há
minibarras de sabonete
rosa.

não nos encontrarão por
aqui:
as piranhas ou as damas ou
os adoradores
de ídolos.

lá na cidade
eles estão bêbados e em pânico
furando sinais vermelhos
arrebentando suas cabeças
em homenagem ao aniversário de
Cristo. isso é uma beleza.

em breve terei terminado esta garrafa de
rum porto-riquenho.
pela manhã vomitarei e tomarei
banho, voltarei para
casa, comerei um sanduíche à uma da tarde,
estarei no meu quarto por volta das
duas,
estirado na cama,
esperando o telefone tocar,
sem responder,
meu feriado é uma
evasão, minha razão
não é.

Charles Bukowski, in: O Amor é Um Cão dos Diabos. Tradução de Pedro Gonzaga. Ed. L&PM
Vânia Medeiros
este amor me fez triste me fez jovem
me fez piegas
antes dele era tudo enxuto a minha volta
e os dias passavam um atrás do outro
tranquilos.

Aninha Franco, in: Brechó. Ed. Fundação Casa de Jorge Amado

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Pneumotórax

Van Gogh
Febre, hemoptise, dispnéia e suores noturnos.
A vida inteira que podia ter sido e que não foi.
Tosse, tosse, tosse.

Mandou chamar o médico:

- Diga trinta e três.
- Trinta e três... trinta e três... trinta e três...
- Respire.

.................................................................

- O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o pulmão direito infiltrado.
- Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax?
- Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.

Manuel Bandeira, in: Os Cem Melhores Poemas Brasileiros do Século. Org. Italo Moriconi. Ed. Objetiva

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Misantropo

Francesca Woodman
Teu olhar tem encantos como essa pedra ou o cheiro de ervas fervendo.
Encantos de chá ou de sangue derramado no altar do sacrifício, teu olhar.
Entrei no local sagrado onde, sob a pedra, crepitavam brasas rastejando no lastro do teu olhar.

Desde muitos séculos há leveza no lenço pendurado no varal. O vento sopra por trás e eu sou o vento através do teu olhar.

Escravizado pela alma que habita esse espelho fui, um dia, a alma distorcida desse espelho.
Alma do espelho, porta do teu olhar.

Abismo que a qualquer matéria dissipa, grito sufocado pela sombra dos teus cílios, tétrica caverna onde me desloco cristalino com ira de navalha,
Torto, torpe, arranco da órbita

esse teu olhar.

Adriana Versiani

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

"de perto, fomos quase nada..."

Vânia Medeiros
você me entesa
me lasca e pesa
me tolhe e lesa
à toa

você me tara
me dá na cara
me bate e sara
à toa

você me atira
me mata e mira
me pisa e pira
à toda

você me escora
me queima e cora
me dá o fora
à toa

você me atura
me denta e cura
com a mordedura
à toa

você me utera
você desintera
se faz de fera
á toa

você me arrasa
me dói me abrasa
e vai pra casa
numa boa

Aninha Franco, in: Brechó. Ed. Fundação Casa de Jorge Amado

Ycatu*

Vânia Medeiros
E assim vou
com a fremente mão do mar em minhas coxas.
Minha paixão? Uma armadilha de água,
rápida como peixes,
lenta como medusas,
muda como ostras.

*Do tupi: água boa

Olga Savary, in: Os Cem Melhoras Poemas Brasileiros do Século. Org. Italo Moriconi. Ed. Objetiva

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

poderia ser

Nan Goldin
puta
professora
padeira
padre
pagã
pai-de-santo
paleontóloga
palerma
palhaça
pan-americana
pancada
pantera
panfletária
pão-duro

paqueradora
paquistanesa
PARADIGMA
parapsicóloga
para-quedista
passarinheira
PATIFA
patroa
pau-de-arara
PECUARISTA
presidente
PECULATÁRIA
pegureira
peregrina
PESCADORA
pessoa
picareta
piloto
POLÍTICA
PONTÍFICE
pancada
porra-louca

Aninha Franco, in: Brechó. Ed. Fundação Casa de Jorge Amado

d e v a n e i o s . . .

As Horas
[...] A paz baixava sobre ela, e a calma, o contentamento, enquanto a agulha, atraindo suavemente a seda ao seu leve compasso, juntava-lhe as pregas verdes e as sujeitava, facilmente, à cintura. Assim, num dia de verão, as ondas se juntam, balançam e tombam; e o mundo inteiro parece dizer: "Isso é tudo", cada vez mais forte, até que o coração, no corpo estendido sob o sol da praia, também diz: "Isso é tudo". "Não mais temas", diz o coração, confiando a sua carga a algum mar que suspira coletivamente por todas as dores, e recomeça, ergue-se, tomba. E o corpo sozinho ouve a abelha que passa; a onda que se quebra; o cão, lá ao longe, ladrando, ladrando . . .

Virginia Woolf, in: Mrs. Dalloway. Tradução de Mario Quintana. Ed. Nova Fronteira

sábado, 17 de dezembro de 2011

como ser um grande escritor

2046 - Segredos do Amor
você tem que trepar com um grande número de mulheres
belas mulheres
e escrever uns poucos e decentes poemas de amor.

e não se preocupe com a idade
e/ou com os talentos frescos e recém-chegados.

apenas beba mais cerveja
mais e mais cerveja

e vá às corridas pelo menos uma vez por
semana

e vença
se possível.

aprender a vencer é difícil -
qualquer frouxo pode ser um bom perdedor.

e não se esqueça do Brahms
e do Bach e também da sua
cerveja.

não exagere no exercício.

durma até o meio-dia.

evite cartões de crédito
ou pagar qualquer conta
no prazo.

lembre-se que nenhum rabo no mundo
vale mais do que 50 pratas.
(em 1977).

e se você tem a capacidade de amar
ame primeiro a si mesmo
mas esteja sempre alerta para a possibilidade de uma
derrota total
mesmo que a razão para essa derrota
pareça certa ou errada -

um gosto precoce de morte não é necessariamente
uma coisa má.

fique longe de igrejas e bares e museus,
e como a aranha seja
paciente -
o tempo é a cruz de todos,
mais o
exílio
a derrota
a traição

todo este esgoto.

fique com a cerveja.

a cerveja é o sangue contínuo.

uma amante contínua.

arranje uma grande máquina de escrever
e assim como os passos que sobem e descem
do lado de fora de sua janela

bata na máquina
bata forte

faça disso um combate de pesos pesados

faça como o touro no momento do primeiro ataque

e lembre dos velhos cães
que brigavam tão bem:
Hemingway, Céline, Dostoiévski, Hamsun.

se você pensa que eles não ficaram loucos
em quartos apertados
assim como este em que agora você está

sem mulheres
sem comida
sem esperança

então você não está pronto.

beba mais cerveja.
há tempo.
e se não há
está tudo certo
também.

Charles Bukowski, in: O Amor é Um Cão dos Diabos. Tradução de Pedro Gonzaga. Ed. L&PM

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

bonito e doído - como tem que ser.

Eu sei que existem imensas extensões profundas, quartzo em lingotes, lodo, águas azuis para uma batalha, muito silêncio, alguns veios do minério da deserção e cânfora, coisas degradadas, medalhas, ternuras, pára-quedas, beijos.

Pablo Neruda, in: Melancolia nas Famílias / Recorte do livro de Erica Jong: Pára-quedas & beijos. Ed. Círculo do Livro

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

sozinho com todo mundo

Factotum - Sem Destino
a carne cobre os ossos
e colocam uma mente
ali dentro e
algumas vezes uma alma,
e as mulheres quebram
vasos contra as paredes
e os homens bebem
demais
e ninguém encontra o
par ideal
mas seguem na
procura
rastejando para dentro e para fora
dos leitos.
a carne cobre
os ossos e a
carne busca
muito mais do que mera
carne.

de fato, não há qualquer
chance:
estamos todos presos
a um destino
singular.

ninguém nunca encontra
o par ideal.

as lixeiras da cidade se completam
os ferros-velhos se completam
os hospícios se completam
as sepulturas se completam

nada mais
se completa.

Charles Bukowski, in: O Amor é Um Cão dos Diabos. Tradução de Pedro Gonzaga. Ed. L&PM

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

temporal

Eva Armisen


fazia tempo
que eu não me sentia
tão sentimental

Paulo Leminski, in: Distraídos Venceremos. Ed. Brasiliense
Amy Borrell

hoje à noite
lua alta
faltei
e ninguém sentiu
a minha falta

Paulo Leminski, in: Distraídos Venceremos. Ed. Brasiliense

Jardim

Deviantart
Alguém diz:
“Aqui antigamente houve roseiras” –
Então as horas
Afastam-se estrangeiras
Como se o tempo fosse feito de demoras.

Sophia de Mello Breyner Andresen, in: Poesia I, 1944. / Poemas Escolhidos. Seleção Vilma Arêas. Ed. Companhia das Letras

domingo, 11 de dezembro de 2011

pela noite

[...] A gente tem tantas memórias. Eu fico pensando se o mais difícil no tempo que passa não será exatamente isso. O acúmulo de memórias, a montanha de lembranças que você vai juntando por dentro. De repente o presente, qualquer coisa presente. Uma rua, por exemplo. Há pouco, quando você passou perto de Pinheiros eu olhei e pensei, eu já morei ali com o Beto. E a rua não é mais a mesma, demoliram o edifício. As ruas vão mudando, os edifícios vão sendo destruídos. Mas continuam inteiros dentro de você.

Caio Fernando Abreu, in: Triângulo das Águas. Ed. Agir

sábado, 10 de dezembro de 2011

13

Lugar em que há decadência.
Em que as casas começam a morrer e são habitadas por
morcegos.
Em que os capins lhes entram, aos homens, casas portas
a dentro.
Em que os capins lhes subam pernas acima, seres a
dentro.
Luares encontrarão só pedras mendigos cachorros.
Terrenos sitiados pelo abandono, apropriados à indigência.
Onde os homens terão a força da indigência.
E as ruínas darão frutos

Manoel de Barros, in: O Guardador de Águas. Ed. Record

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

Tia em dificuldades

Evelina Oliveira
Por que havemos de ter uma tia com tanto medo de cair de costas? Há anos que a família luta para curá-la da obsessão, mas chegou a hora de confessar nosso fracasso. Por mais que nos esforcemos, a tia tem medo de cair de costas; e sua inocente mania nos afeta a todos, a começar por meu pai, que a acompanha fraternalmente a toda parte e vai olhando o chão para que a tia possa andar despreocupada, enquanto minha mãe se esmera em varrer o pátio várias vezes por dia, minhas irmãs apanham as bolas de tênis com que se divertem inocentemente no terraço, e meus primos apagam todo rasto atribuído aos cachorros, gatos, tartarugas e galinhas que proliferam lá em casa. Mas de nada adianta, a tia só resolve atravessar os aposentos depois de prolongada vacilação, intermináveis observações oculares e palavras desaforadas a qualquer menino que passa. Depois se põe a caminho, apoiando primeiro um pé e movendo-o como um boxeador no ringue, depois o outro, transladando o corpo num deslocamento que na infância achávamos majestoso, e demorando vários minutos para ir de uma porta a oura. É algo horrível.

Várias vezes a família tentou que minha tia explicasse com alguma coerência o seu temor a cair de costas. Em certa ocasião ela foi recebida com um silêncio que se teria podido cortar com uma foice; mas uma noite, depois de beber seu copinho com aspirina, a tia insinuou que se caísse de costas não poderia tornar a levantar-se. Á observação elementar de que trinta e dois membros da família estavam dispostos a acudir em seu socorro, respondeu com um olhar lânguido e duas palavras: “Tanto faz”. Dias depois meu irmão mais velho me chamou à noite até a cozinha e me mostrou uma barata caída de costas embaixo da pia. Sem uma palavra assistimos à sua inútil e longa luta por erguer-se, enquanto outras baratas, vencendo a intimidação da luz, circulavam pelo chão e passavam rente à que jazia em posição de decúbito dorsal. Fomos para a cama com uma profunda melancolia, e por esta ou aquela razão ninguém tornou a interrogar a tia, limitamo-nos a aliviar na medida do possível seu medo, acompanha-la em seus passos, dar-lhe o braço e comprar-lhe uma quantidade de sapatos de solas antiescorregantes e outros dispositivos estabilizadores. A vida continuou assim, e não era pior do que outras vidas.

Julio Cortázar, in: Histórias de Cronópios e de Famas. Tradução de Gloria Rodríguez. Ed. Civilização Brasileira

A noite estrelada

Edward Hopper
Isso não impede que eu tenha uma terrível necessidade de
- pronunciar a palavra? - religião.
Assim saio à noite a pintar as estrelas.

Vicent Van Gogh, numa carta a seu irmão.


A cidade não existe
exceto onde uma árvore de negra cabeleira escorre pra cima
como uma mulher afogada no céu quente.
A cidade está silenciosa. A noite ferve com onze estrelas.
Ó noite estrelada! Assim é como
desejo morrer.

As estrelas se movem. Estão todas vivas.
Inclusive a lua avoluma-se em seus ferros alaranjados
para escorraçar crianças, como um deus, de seu olho.
A velha serpente invisível engole as estrelas.
Ó noite estrelada! Assim é como
desejo morrer:

dentro dessa impetuosa besta noturna,
sugada por aquele grande dragão,
da minha vida sem bandeira,
sem ventre,
sem choro.

Anne Sexton / Tradução de Priscila Manhães

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Música

Edward Hopper
A Pedro Nava

Uma coisa triste no fundo da sala.
Me disseram que era Chopin.
A mulher de braços redondos que nem coxas
martelava na dentadura dura
sob o lustre complacente.
Eu considerei as contas que era preciso pagar,
os passos que era preciso dar,
as dificuldades...
Enquandrei o Chopin na minha tristeza
e na dentadura amarela e preta
meus cuidados voaram como borboletas.

Carlos Drummond de Andrade, in: Alguma Poesia. Ed. Record

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

sonhos (fictícios)

A Estrela do Mar
escrever uma autobiografia me daria grande prazer, pois seria tão fácil quanto anotar sonhos.

franz kafka, diário,

17 de dezembro de 1911


eis o e-mail que enviei há pouco a ad*, ex-aluna e amiga capixaba, que


confessou estar reescrevendo seus sonhos a fim de compor volume:

(quarta-feira, 4 de maio de 2005, 17:03)

ad,* querida

fiquei encantado com a ideia de você estar transcrevendo seus sonhos, para transformar alguns deles em livro. seria bom se os reescrevesse efetivamente, sem medo de torná-los "literários". para mim, a literatura é que é o sonho (a quadratura do círculo). está é a única definição que tenho para a palavra, hoje tão em desuso - dizem até que vai ser banida das escolas. escrever literariamente é sonhar, de olhos bem abertos. textos literários, se há, são sonhos diurnos. alguém que transcreve e reescreve seus sonhos é de fato candidato a escritor, ou como prefiro a reescritor, pois está atravessando e copiando a senha da própria vida, que é sempre outra quando relida. se escolher alguns de "meus" sonhos, pode citar o nome da protagonista (mas haverá alguém mais senão você mesma?) sem problemas. confio em seu gosto. pode-se ser altamente confidente sem perder o segredo da coisa. em literatura, o segredo mal contado, disfarçado sob mil véus, é o que conta.
boa sorte nesse projeto maravilhoso. sorte mesmo é ter uma memória assim!
beijos, com toda a afeição

e*

Evando Nascimento, in: Retrato Desnatural / diário: 2004 a 2007. Ed. Record

Correio


Por anos depois da morte de nossa mãe, o correio continuou entregando as cartas endereçadas a ela. O correio não tomou conhecimento de sua morte.

Thomas Bernhard, in: O Imitador de Vozes. Tradução de Sergio Tellaroli. Ed. Companhia das Letras

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Game Over

Alone Gut
Então fica tudo assim
o dito pelo não dito
o feito pelo não feito
o sonho pelo não sonho
o jeito pelo sem jeito

então, tudo resolvido
as contas pagas, pagas
as contas não pagas, dane-se
nas dúvidas, mais
nas certezas, dá-se um jeito

então, deixa tudo como está
as fotos a gente rasga
os bilhetes a gente estraga
as cores a gente apaga
a gente,
a gente engasga

então,
passar bem
fica feliz
é isso aí
e tudo bem.

André Gonçalves, in: Coisas de Amor Largadas na Noite. Ed. Ideias Inc.
PoliCardo
A vida é, assim, feita a golpes de pequenas solidões.

Roland Barthes, in: A Câmara Clara. Ed. Nova Fronteira

domingo, 4 de dezembro de 2011

encurralado

Nan Goldin
não dispa o meu amor
você pode encontrar um manequim;
não dispa um manequim
você pode encontrar
o meu amor.

ela há muito tempo
me esqueceu.

ela experimenta um novo
chapéu
e parece mais
coquete
do que nunca.

ela é uma
criança
e um manequim
e
é a morte.

não tenho como odiar
isso.

ela não faz
nada fora do
comum.

queria apenas que ela
fizesse.

Charles Bukowski, in: O Amor é Um Cão dos Diabos. Tradução de Pedro Gonzaga. Ed. L&PM

da leveza.

Kristiana Pärn
Eu queria crescer pra passarinho...

Manoel de Barros, in: Livro sobre Nada. Ed. Record

sábado, 3 de dezembro de 2011

Perdoe-me:

não ferimos aqueles que nos são indiferentes, mas exatamente os que, por um motivo ou outro, sacodem as fibras mais íntimas do nosso coração.

Lúcio Cardoso, in: Crônica da Casa Assassinada. Ed. Civilização Brasileira

porque as cartas não se perdem...

Clarice, eu estava mesmo precisando receber uma carta sua, Clarice. Me perdoe... Infelizmente a carta que eu queria escrever a você não posso escrever. Escrevi outras, várias, guardei algumas [...] Muita coisa aconteceu depois do dia 3 de setembro do ano passado, quando você se foi. Atualmente leio menos. [...] Acho que o tempo se conta é em dias mesmo. Como você já deve ter sabido, ou não deve, estou já há alguns meses morando sozinho, e aqui vai meu novo endereço.

Clarice Lispector e Fernando Sabino, in: Cartas Perto do Coração. Ed. Record

... as cartas não se perdem nunca.

Esta chuva que está caindo é uma maravilha e tem também um pouco de sol: chuva e sol, casamento da raposa com o rouxinol. Estou cheia de problemas e a cada dia um deles entra em estado de crise, sem socorro. Interrompi mesmo o trabalho, minha impressão é de que é para sempre. [...] Tenho outros problemas também, Fernando, e por carta não saberia falar.

Clarice Lispector e Fernando Sabino, in: Cartas Perto do Coração. Ed. Record

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Amantes

Lilya Corneli
una flor

no lejos de la noche
mi cuerpo mudo
se abre
a la delicada urgencia del rocío.

Alejandra Pizarnik, in: Los Trabajos Y Las Noches,1965 / Poesía Completa. Ed. Lumen

Canto

Lilya Corneli
el tiempo tiene miedo
el miedo tiene tiempo
el miedo

pasea por mi sangre
arranca mis mejores frutos
devasta mi lastimosa muralla

destrucción de destrucciones
sólo destrucción

y miedo
mucho miedo
miedo.

Alejandra Pizarnik, in: La Última Inocencia, 1956 / Poesía Completa. Ed. Lumen

Estrambote melancólico

Van Gogh
Tenho saudade de mim mesmo,
saudade sob a aparência de remorso,
de tanto que não fui, a sós, a esmo,
e de minha alta ausência em meu redor.
Tenho horror, tenho pena de mim mesmo
e tenho muitos outros sentimentos
violentos. Mas se esquivam no inventário,
e meu amor é triste como é vário,
e sendo vário é um só. Tenho carinho
por toda perda minha na corrente
que de mortos a vivos me carreia
e a mortos restitui o que era deles
mas em mim se guardava. A estrela-d'alva
penetra longamente seu espinho

(e cinco espinhos são) na minha mão.

Carlos Drummond de Andrade, in: Antologia Poética. Ed. Record

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Verano, 1956

Desenho de Alejandra Pizarnik
tanto miedo Alejandra
tanto miedo
la nada te espera
la nada
¿por qué temer?
¿por qué?

por más imaginación que tenga
no puedo esbozar la muerte
¿he de tener esperanzas?
¿he de ser eterna?
¿qué es entonces este vacío que me recorre?
¿qué es entonces la nada que camina por mi ser?
Sólo sé que no puedo más

siento envidia del lector aún no nacido
que leerá mis poemas
yo ya no estaré.

Alejandra Pizarnik, in: Diarios. Ed. Lumen