quarta-feira, 28 de setembro de 2011

ego

Delilah Woolf
eis-me aqui
diante do espelho:
um nonsense

face
&
disfarce

eis-me aqui
um contra-senso

reflexo
&
avesso

eis-me aqui
ante meus versos:
uma antítese

imagem
&
miragem

a bem da verdade
reconheço o que viso:

um oásis de vaidade
pregando no deserto

eis-me aqui:

narciso
&
eco.

Valéria Tarelho

terça-feira, 27 de setembro de 2011

sem Ana, blues

Nonnetta
Quando Ana me deixou - essa frase ficou na minha cabeça, de dois jeitos - e depois que Ana me deixou. Sei que não é exatamente uma frase, só um começo de frase, mas foi o que ficou na minha cabeça. Eu pensava assim: quando Ana me deixou - e essa não-continuação era a única espécie de continuação que vinha. Entre aquele quando e aquele depois, não havia nada mais na minha cabeça nem na minha vida além do espaço em branco deixado pela ausência de Ana, embora eu pudesse preenchê-lo - esse espaço branco sem Ana - de muitas formas, tantas quantas quisesse, com palavras ou ações. Ou não-palavras e não-ações, porque o silêncio e a imobilidade foram dois dos jeitos menos dolorosos que encontrei, naquele tempo, para ocupar meus dias, meu apartamento, minha cama, meus passeios, meus jantares, meus pensamentos, minhas trepadas e todas essas outras coisas que formam uma vida com ou sem alguém como Ana dentro dela [...].

Caio Fernando Abreu, in: Os Dragões Não Conhecem o Paraíso. Ed. Companhia das Letras

O Coração

Amanda Cass
Coração: Esta palavra vale para todo tipo de movimentos e desejos, mas o que é constante é que o coração se constitui em objeto de dom - quer ignorado, quer rejeitado.

1. O coração é o orgão do objeto (o coração, infla, fraqueja, etc., como o sexo), tal como é retido, encantado, no campo do Imaginário. O que o mundo, o que o outro vai fazer de meu desejo? Essa a inquietude em que se concentram todos os movimentos do coração, todos os "problemas" do coração.

2. Werther se queixa do príncipe de X: "Ele aprecia meu espírito e meus talentos mais do que este coração, que contudo é meu único orgulho [...] Ah, o que sei, qualquer outro pode saber - meu coração é meu e de ninguém mais."
Você me espera onde não quero ir: ama-me onde não estou. Ou ainda: o mundo e eu não nos interessamos pela mesma coisa; e, desgraçadamente para mim, esta coisa dividida sou eu; não me interesso (diz Werther) pelo meu espírito; você não se interessa por meu coração.

3. O coração é o que acredito dar. Cada vez que este dom me é devolvido, é então pouco dizer, como Werther, que o coração é o que resta de mim, uma vez extraído todo o espírito que me atribuem e que não quero: o coração é o que me resta, e este coração que me resta no coração é o coração pesado: pesado do refluxo que o encheu dele mesmo (apenas o amante e a criança têm o coração pesado).

(X... deve ausentar-se por semanas, talvez mais; quer, no último momento, comprar um relógio para a viagem; a vendedora graceja: "O senhor quer o meu? O senhor devia ser bem jovem, quando eles custavam esse preço, etc."; ela não sabe que eu estou com o coração pesado.)

Roland Barthes, in: Fragmentos de Um Discurso Amoroso. Ed. Martins Fontes

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Segredo

A poesia é incomunicável.
Fique torto no seu canto.
Não ame.

Ouço dizer que há tiroteio
ao alcance do nosso corpo.
E a revolução? o amor?
Não diga nada.

Tudo é possível, só eu impossível.
O mar transborda de peixes.
Há homens que andam no mar
como se andassem na rua.
Não conte.

Suponha que um anjo de fogo
varesse a face da terra
e os homens sacrificados
pedissem perdão.
Não peça.

Carlos Drummond de Andrade, in: Brejo das Almas. Ed. Record

Lição das coisas

Nathália Cavalhiere
Já vão florir as rosas de setembro, tu dirás,
e ainda não sei quem sou.
Terás nas mãos os ventos amainados,
os cabelos grisalhos, os olhos grisalhos –
mas não sabes quem és.
A alma é só um barco na vitrine.
Queres chorar, não choras.
Barcos só singram.

Antonio Brasileiro, in: Pequenos Assombros

domingo, 25 de setembro de 2011

sobre rodas

Sinto falta
da falta
que sentia de ti

Hoje
só um vazio
ausência
de saudade
silencia
meu caminho

Sobre quatro rodas
rodo a madrugada
na tristeza
muda
de não sentir mais
nada

Insisto
Brigo
Finjo
Não consigo
Parecer que não foi
comigo

Ficção
Poder que o tempo tem
de desaparecer
fazer esquecer
até convencer
que a memória
não passa de uma
estória
sem endereço

Hoje
na falta que sinto
da falta que sentia
de ti
sobra uma
imagem
mancha borrada
envelhecida
tela apagada

E porque agora me
silencio
embora pobre a rima
te ofereço meu
vazio
seco
inerte
sem dor
como o que restou do meu
amor
pois que além dele
só vivem na minha
alma
o temor
e a certeza fria
de que chegará o dia
em que sentirei
que nunca te vi
contemplando
tua fotografia.

Bianca Ramoneda, in: Só. Ed. Rocco

outra cama

Lauren Bentley
outra cama
outra mulher

mais cortinas
outro banheiro
outra cozinha

outros olhos
outro cabelo
outros
pés e dedos.

todos à procura
a busca eterna.

você fica na cama
ela se veste para o trabalho
e você se pergunta o que aconteceu
à última
e à outra antes dela...
é tudo tão confortável -
esse fazer amor
esse dormir juntos
a suave delicadeza...

após ela partir você se levanta e usa
o banheiro dela,
é tudo tão intimidante e estranho.

você retorna para a cama e
dorme mais uma hora.

quando você vai embora é com tristeza
mas você a verá novamente
quer funcione, quer não.

você dirige até a praia e fica sentado
em seu carro. é quase meio-dia.

- outra cama, outras orelhas, outros
brincos, outras bocas, outros chinelos, outros
vestidos
cores, portas, números de telefone.

você foi, certa vez, suficientemente forte para viver sozinho.
para um homem beirando os sessenta você deveria ser mais
sensato.

você dá a partida no carro e engata a primeira,
pensando, vou telefonar para Janie logo que chegar,
não a vejo desde sexta-feira.

Charles Bukowski, in: O Amor é Um Cão dos Diabos. Tradução de Pedro Gonzaga. Ed. L&PM

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Corpos

Dentro de mim as retas não se encontram.
Sou dois no deserto.
O que tem sede caminha para o outro.
O outro suicida-se num lago.
Ó maldito de mim que não se abate!

Antonio Brasileiro, in: Licornes no Quintal

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

a música suave

Margarida Delgado
vence o amor porque nela não há
feridas: pela manhã
a mulher liga o rádio, Brahms ou Ives
ou Stravinsky ou Mozart. ferve os
ovos contando em voz alta os segundos: 56,
57, 58... descasca os ovos, os traz
para mim na cama. depois do café da manhã é
a mesma cadeira e ouvir a música
clássica. A mulher está no seu primeiro copo de
scotch e no seu terceiro cigarro. digo-lhe
que preciso ir ao hipódromo. ela
está aqui há 2 noites e 2 dias. "quando
voltarei a vê-la?" pergunto. ela
sugere que fique a meu critério.
aceno com a cabeça e Mozart toca.

Charles Bukowski, in: O Amor é Um Cão dos Diabos. Tradução de Pedro Gonzaga. Ed. L&PM

III

Delilah Woolf
Gostaria de encontrar-te.

Falar de cousas
que já estão perdidas.

Tuas mãos trementes
se desmanchariam
na sonoridade
dos meus ditos.

Faria de teus olhos
luz,
de tua boca
um eco.

Nos teus ouvidos
eu falaria de amigos.

Quem sabe amarias escutar-me.

Hilda Hilst, in: Baladas. Ed. Globo

terça-feira, 20 de setembro de 2011

O amor:

Amanda Cass



esse tecido de aço fluido, imagens póstumas soldando ventos que me estruturam as águas. O amor, esse talvez que faz do tempo um continente prenhe do que não lhe pertence. A escrita - dentro do papel. Dentro, mas que se constrói e se encaminha cosendo a matéria mesma do que está pelos lados da folha. Fora mas dentro, dentro. Desnecessário abrir. Nada há para abrir - é uma questão de desdobrar o que está num ponto e de pontuar o que está aberto, supostamente insignificante.

Wesley Peres, in: Casa entre Vértebras. Ed. Record

Instruções para cantar

Delilah Woolf
Comece por quebrar os espelhos de sua casa, deixe cair os braços, olhe vagamente a parede, esqueça. Cante uma nota só, escute por dentro. Se ouvir (mas isto acontecerá muito depois) algo como uma paisagem afundada no medo, com fogueiras entre as pedras, com silhuetas seminuas de cócoras, acho que estará bem encaminhado, e do mesmo modo se ouvir um rio por onde descem barcos pintados de amarelo e preto, se ouvir um gosto de pão, um tato de dedos, uma sombra de cavalo.

Depois compre cadernos de solfejo e uma casaca, e por favor não cante pelo nariz e deixe Schumann em paz.

Julio Cortázar, in: Histórias de Cronópios e de Famas. Tradução de Gloria Rodríguez. Ed. Civilização Brasileira

Sandra

Eugenio Recuenco
é alta e magra
donzela do quarto
de brincos
coberta por um longo
vestido

está sempre alta
em sapatos de salto
espírito
boletas
trago

Sandra se inclina
em sua cadeira
inclina-se em direção a
Glendale

aguardo que sua cabeça
bata na maçaneta
do guarda-roupa
enquanto ela tenta
acender
um novo cigarro num
outro já quase
consumido

aos 32 ela gosta de
jovens limpos
imaculados
com rostos semelhantes ao fundo
de pires recém-comprados

depois de se vangloriar
a não mais poder
acabou me trazendo seus prêmios
para que eu desse olhada:
garotos nulos, loiros e silenciosos
que
a) sentam
b) levantam
c) falam
ao seu comando.

às vezes ela traz um
às vezes dois
às vezes três
para que eu os
veja

Sandra fica muito bem em
vestidos longos
Sandra pode partir provavelmente
o coração de um homem

espero que ela encontre
um.

Charles Bukowski, in: O Amor é Um Cão dos Diabos. Tradução de Pedro Gonzaga. Ed. L&PM

terça-feira, 13 de setembro de 2011

quase-cenário

calcinha sobre a mesa
roupas e sapatos espalhados pelo chão

nada a ver com noites de amor e orgia

só uma tola tentativa de trapacear a vida
de enganar a solidão.

Márcia Maia

domingo, 11 de setembro de 2011

Agosto - I

Margarida Delgado
respinguei no vidro
da palavra que

fechaste,

da janela que em
tão pouco,

tão perto,

se calou dentro de
ti.


agosto, ainda.
tanta chuva,

(mas nenhuma fresta
nos lábios,

um sopro, que
fosse,

nenhum silêncio
entreaberto

para que à noite meu
nome

adormeça no teu).

respinguei no vidro,

no para-

peito,


o coração logo atrás.

Marceli Andresa Becker, in: Do Meu Caderno de Experimentações

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

I

Minha primeira lágrima caiu dentro dos teus olhos.
Tive medo de a enxugar: para não saberes que havia caído.

No dia seguinte, estavas imóvel, na tua forma definitiva,
modelada pela noite, pelas estrelas, pelas minhas mãos.

Exalava-se de ti o mesmo frio do orvalho; a mesma claridade da lua.

Vi aquele dia levantar-se inutilmente para as tuas pálpebras,
e a voz dos pássaros e a das águas correr,
- sem que a recolhessem teus ouvidos inertes.

Onde ficou teu outro corpo? Na parede? Nos móveis? No teto?

Inclinei-me sobre o teu rosto, absoluta, como um espelho.
E tristemente te procurava.

Mas também isso foi inútil, como tudo mais.

Cecília Meireles, in: Elegia / Antologia Poética. Ed. Nova Fronteira

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

Depois das palavras de ontem, o silêncio de hoje;

penso no que me sucede. Não, nada se encerra, tudo se transforma, a essência é inalterável, permanece muda no fundo das coisas. Não sei se é melhor assim, mas a tantos golpes repetidos, sinto que me esvaio, que me torno outro, como uma figura nova que aos poucos vai saindo de um mármore lacerado pelo escultor.

Nunca me senti tão perdido, tão vazio, tão inutilizado. Adeus, planos heroicos de reforma. Eu apenas me adapto, covardemente, aos meus males. Mas até quando?

Lúcio Cardoso, in: Diário Completo. Ed. José Olympio

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

Instruções para dar corda no relógio

Lá no fundo está a morte, mas não tenha medo. Segure o relógio com uma mão, pegue com dois dedos o pino da corda, puxe-o suavemente. Agora se abre outro prazo, as árvores soltam suas folhas, os barcos correm regata, o tempo como um leque vai se enchendo de si mesmo e dele brotam o ar, as brisas da terra, a sombra de uma mulher, o perfume do pão.

Que mais quer, que mais quer? Amarre-o depressa a seu pulso, deixe-o bater em liberdade, imite-o anelante. O medo enferruja as âncoras, cada coisa que pode ser alcançada e foi esquecida começa a corroer as veias do relógio, gangrenando o frio sangue de seus pequenos rubis. E lá no fundo está a morte se não corremos, e chegamos antes e compreendemos que já não tem importância.

Julio Cortázar, in: Histórias de Cronópios e de Famas. Tradução de Gloria Rodríguez. Ed. Civilização Brasileira

terça-feira, 6 de setembro de 2011

Indicações

Talvez uma sensibilidade maior ao frio,
desejo de voltar mais cedo para casa.
Certa demora em abrir o pacote de livros
esperado, que trouxe o correio.
Indecisão: irei ao cinema?
Dos três empregos de tua noite escolherás: nenhum.
Talvez certo olhar, mais sério, não ardente,
que pousas nas coisas, e elas compreendem.

Ou pelo menos supões que sem. São fiéis, as coisas
do teu escritório. A caneta velha. Recusas-te a trocá-la
pela que encerra o último segredo químico, a tinta imortal.
Certas manchas na mesa, que não sabes se o tempo,
se a madeira, se o pó trouxeram consigo.
Bem a conheces, tua mesa. Cartas, artigos, poemas
saíram dela, de ti. Da dura substância,
do calmo, da floresta partida elas vieram,
as palavras que achaste e juntaste, distribuindo-as.

A mão passa
na aspereza. O verniz que se foi. Não. É a árvore
que regressa. A estrada voltando. Minas que espreita,
e espera, longamente espera tua volta sem som.
A mesa se torna leve, e nela viajas
em ares de paciência, acordo, resignação.
Olhai a mesa que foge, não a toqueis. É a mesa volante,
de suas gavetas saltam papeis escuros, enfim os libertados segredos
sobre a terra metálica se espalham, se amortalham e calam-se.

De novo aqui, miúdo território
civil, sem sonhos. Como pressentindo
que um dia se esvaziam os quartos, se limpam as paredes,
e para um caminhão e descem carregadores,
e no livro municipal se cancela um registro,
olhas fundamente o risco de cada
coisa, a cor
de cada face dos objetos familiares.
A família é pois uma arrumação de móveis, soma
de linhas, volumes, superfícies. E são portas,
chaves, pratos, camas, embrulhos esquecidos,
também um corredor, e o espaço
entre o armário e a parede
onde se deposita certa porção de silêncio, traças e poeira
que de longe em longe se remove... e insiste.

Certamente faltam muitas explicações, seria difícil
Compreender, mesmo ao cabo de longo tempo, porque um gesto
se abriu, outro se frustrou, tantos esboçados,
como seria impossível guardar todas as vozes
ouvidas ao almoço, ao jantar, na pausa da noite,
um ano, depois outro, e outros e outros,
todas as vozes ouvidas na casa durante quinze anos.
Entretanto, devem estar em alguma parte: acumularam-se,
embeberam degraus, invadiram canos
informaram velhos papeis, perderam a força, o calor,
existem hoje em subterrâneos, umas na memória, outras na argila
[do sono.

Como saber? A princípio parece deserto,
como se nada ficasse, e um rio corresse
por tua casa, tudo absorvendo.
Lençóis amarelecem, gravatas puem,
a barba cresce, cai, os dentes caem,
os braços caem,
caem partículas de comida de um garfo hesitante,
as coisas caem, caem, caem,
e o chão está limpo, é liso.
Pessoas deitam-se, são transportadas, desaparecem,
e tudo é liso, salvo teu rosto
sobre a mesa encurvado; e tudo imóvel.

Carlos Drummond de Andrade, in: A Rosa do Povo. Ed. Record

A impossibilidade de organizar de pronto a minha vida leva-me ao desespero de ontem;

sob um dia cinzento e chuvoso, passei horas e horas inteiramente inúteis, distanciado de qualquer sentimento calmo e sensato. A mesma ronda de bares, o mesmo desperdício de energias, o mesmo sono pesado e sem horizontes para acordar hoje com o coração transido de remorso e um grande sentimento de culpa.

Não, a vida assim não é possível. Há muito compreendi isto, e querer continuar esta ilusão de fuga, é nadar em vão num charco de águas lamacentas. O remédio é a paciência, mas de todas as qualidades que me faltam, esta é sem dúvida a de mais alto coeficiente. Tenho de aprender primeiro a saber o que é a paciência e depois empregá-la com resultados positivos - este é o único meio de levar a cabo o plano que tracei e do qual dependem as únicas coisas que para mim contam nesta vida.

Lúcio Cardoso, in: Diário Completo. Ed. José Olympio

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Vacilo da vocação

Ismael Nery
Precisaria trabalhar – afundar –
- como você – saudades loucas –
nesta arte – ininterrupta –
de pintar –
A poesia não – telegráfica – ocasional –
me deixa sola – solta
à merce do impossível –
- do real.

Ana Cristina Cesar, in: A Teus Pés. Ed. Brasiliense

a r t e

Isabel de Sá
[...] Obras de arte são de uma solidão infinita, e nada pode passar tão longe de alcançá-las quanto a crítica. Apenas o amor pode compreendê-las, conservá-las e ser justo em relação a elas. Dê razão sempre a si mesmo e a seu sentimento, diante de qualquer discussão, debate e introdução; se o senhor estiver errado, o crescimento natural de sua vida íntima o levará lentamente, com o tempo, a outros conhecimentos. Permita a suas avaliações seguir o desenvolvimento próprio, tranquilo e sem perturbação, algo que, como todo avanço, precisa vir de dentro e não pode ser forçado nem apressado por nada. Tudo está em deixar amadurecer e então dar à luz. Deixar cada impressão, cada semente de um sentimento germinar por completo dentro de si, na escuridão do indizível e do inconsciente, em um ponto inalcançável para o próprio entendimento, e esperar com profunda humildade e paciência a hora do nascimento de uma nova clareza: só isso se chama viver artisticamente, tanto na compreensão quanto na criação.

Não há nenhuma medida de tempo nesse caso, um ano de nada vale, e mesmo dez anos não são nada. Ser artista significa: não calcular nem contar; amadurecer como uma árvore que não apressa a sua seiva e permanece confiante durante as tempestades da primavera, sem o temor de que o verão não possa vir depois. Ele vem apesar de tudo. Mas só chega para os pacientes, para os que estão ali como se a eternidade se encontrasse diantes deles, com toda a amplidão e a serenidade, sem preocupação alguma. Aprendo isto diariamente, aprendo em meio a dores às quais sou grato: a paciência é tudo! [...]

Rainer Maria Rilke, in: Rilke: Cartas a um Jovem Poeta. Tradução de Pedro Sussekind. Ed. L&PM