segunda-feira, 30 de maio de 2011

resgate

Alice Ruiz, in: Rimagens
sou refém da lua cheia
ela entra pelo quarto
conhece-me os desejos
os beijos guardados
as sombras e crateras
do meu cativeiro

sou refém da meia lua
ela me sabe os pedaços
tristezas e segredos
invade-me à madrugada
assiste o amor arder
sem endereço

sou refém de mim
a lua é pre_texto.

Líria Porto, in: De Lua

domingo, 29 de maio de 2011

platônico

Amanda Cass
por te amar
tanto assim
revolvo céus
revolto mares
movo placas tectônicas

niña - louca -
reviro tudo
á tua volta
teu mundo vira
um haiti

aquele rumor
de tsunami
no havaí
(que não houve)

era você
nem aí.

Valéria Tarelho
Balthus
escrevo-te para dizer
morri daqui a um mês

foi morte natural
misto de saudade e tédio
não houve remédio

dorme sossegado
nada de missa
arranja outra namorada
mas atenção
tem muita mente insana
em corpo são

: muita canoa furada.

Líria Porto

Pragmatismo

eu te uso
tu me usas
não é abuso

é no máximo
o mínimo recurso
dos solitários.

Líria Porto

sábado, 28 de maio de 2011

"Deixe estar, – pensou ele um dia – fujo daqui e não volto mais."

do curta Uns Braços
Não foi; sentiu-se agarrado e acorrentado pelos braços de D. Severina. Nunca vira outros tão bonitos e frescos. A educação que tivera não lhe permitia encará-los logo abertamente, parece até que a princípio afastava os olhos, vexado. Encarou-os pouco a pouco, ao ver que eles não tinham outras mangas, e assim os foi descobrindo, mirando e amando. No fim de três semanas eram eles, moralmente falando, as suas tendas de repouso. Aguentava toda a trabalheira de fora, toda a melancolia da solidão e do silêncio, toda a grosseria do patrão, pela única paga de ver, três vezes por dia, o famoso par de braços.

Machado de Assis, in: do conto Uns Braços

sexta-feira, 27 de maio de 2011


Pedra sendo
Eu tenho gosto de jazer no chão.
Só privo com lagarto e borboletas.
Certas conchas se abrigam em mim [...]
Às vezes uma garça me ocupa de dia.
Fico louvoso [...]
E o sol me cumprimenta por primeiro.

Manoel de Barros

quinta-feira, 26 de maio de 2011

Escrever cartas é mais misterioso do que se pensa.

Ana Cristina Cesar, in: Crítica e Tradução. Ed. Ática

No centro do furacão - fragmento

Vórtice, voragem, vertigem: qualquer abismo nas estrelas de papel brilhante no teto.

Queria tanto poder usar a palavra voragem. Poder não, não quero poder nenhum, queria saber. Saber não, não quero saber nada, queria conseguir. Conseguir também não - sem esforço, é como eu queria. Queria sentir, tão dentro, tão fundo que quando ela, a palavra, viesse à tona, desviaria da razão e evitaria o intelecto para corromper o ar com seu som perverso. A-racional, abismal. Não me basta escrevê-la - que estou escrevendo agora e sou capaz de encher pilhas de papel repetindo voragem voragem voragem voragem voragem voragem voragem sete vezes ao infinito até perder o sentido e mais nada significar [...] Eu quero sê-la, voragem.

Caio Fernando Abreu, in: Pequenas Epifanias / O Estado de São Paulo, 4/2/1987 / Ed. Agir

quarta-feira, 25 de maio de 2011

O meu tempo

Andrés Sandoval
Não existe hora certa, existe o meu relógio,
lembrando sempre com seu tic-tac
que há a vida
para ser vivida,
que houve a vida
que não se viveu.
Não importa que o rádio renitente ruja
são tal hora e tal minuto,
hora oficial.
Afinal.
que há de oficial em minha vida?

Somente,
quebrando a paz exata deste espaço,
levando a mim a frente, sem retorno,
a tiquetaquear meu ser-serei,
existe o meu relógio, —
pulso falso,
sensato solilóquio, lento, certo,

que canta
o canto
do tempo
que é meu.

Ildásio Tavares

terça-feira, 24 de maio de 2011

24. A vida

Uma folha
é só uma parte da árvore
e não contempla todas as estações
(uma folha é só).

Uma gota de chuva nos vidros
não é mais chuva.
O vidro quando reflete
é espelho.

Eu não enxergo
a vida
tão cor-de-rosa assim.

Fabiana Borgia
da série Capitu

Capitu, apesar daqueles olhos que o diabo lhe deu... Você já reparou nos olhos dela? São assim de cigana oblíqua e dissimulada.

Machado de Assis, in: Dom Casmurro. Ed. Avenida Gráfica

segunda-feira, 23 de maio de 2011

Desmemorial

Esqueci. Meu Deus do céu, esqueci sem piedade o motivo do que senti. E era tão forte que me acordava em plena dormência de existir. Disso me lembro, da plenitude, da alma pendurada entre o abismo e o nada. Eu, em feliz fragilidade, vivendo com leveza, as alegrias, as dores, de todas as idades. E agora, que esqueci, o que hei de sentir? O que faço com esse vazio que pesa em mim? Olha, estou afundada na indiferença, morrida na espera. Não me lembro do seu rosto (procuro fotos pra aquietar a agudez do esquecimento), minha boca não sabe mais o seu gosto. Ô meu Deus, esqueci. A sua voz, o seu olhar, esqueci. Se não te sei, se nem te lembro, pelo quê vou esperar, com quem vou sonhar? Por qual milagre acenderei velas?

Claudia Camara

que troço esquisito
que começa com para sempre
atravessa até que a morte nos separe
e termina com preferia nunca ter te conhecido?

Estrela Ruiz Leminski

domingo, 22 de maio de 2011

por que amar . . .

O Fabuloso Destino de Amélie Poulain
Olho para você. Você me pergunta o que há, sempre um pouco vigilante, quando olho para você. Digo que não há nada, que olhava para você por prazer:
- Não sei se o amor é um sentimento. Às vezes acho que amar é ver. Ver você.

Marguerite Duras, in: Emily L. Ed. Nova Fronteira

sexta-feira, 20 de maio de 2011

A Culpa é de Voltaire
As árvores perderam as folhas no outono.

Coração de pedra, vento frio, amor eterno.

Toma-me tudo que se espalha pelo chão.

Deito-me de lado, pendo a cabeça,

aguardo

o toque dos seus lábios no branco lírio desse mármore.

Adriana Versiani, in: Explicação do Fato

quinta-feira, 19 de maio de 2011

Orgulho e Preconceito
repara
que solidão é mais
estado de alma
que de pele
é mais
estado de sentir
que de estar
e o ser?
em que estado fica
nesse caminho estreito
e não delimitado
da alma à flor
da pele.

Nydia Bonetti

VIII

Francesca Woodman
O poema não vem.
E quando vem é falho,
impreciso.
Este canto sem nome
é um apelo
aos homens à escuta
e às mulheres.

Há tempos que sua ausência
ronda os caminhos do sono
envolve-se igual à rede
no mistério de minha vida.

Boiavam antes os peixes
à tona do pensamento.

Havia estrelas do mar
no fundo dos castiçais.

Hilda Hilst, in: Baladas. Ed. Globo

terça-feira, 17 de maio de 2011

Dois menos um, às vezes, é igual a quase nada

Silêncio absoluto. Sem telefonemas, cartas ou mensagens no computador. Nada. Nem respostas. Tanto tempo. Misto de receio e dor crescendo no peito. Ameaçando o amor. Amor? Não é amor o que se sente. Mas é parente.

Márcia Maia

segunda-feira, 16 de maio de 2011

Teu nome em mim

teu nome em mim
ainda espera uma porta, uma

*

boca, ainda cresce
a tua fala na acústica

*

da flor caída.

*

vê como a casa
dobra de tempo no inverno:

*

há muito venta o teu nome
no pouco aberto desta janela.

Marceli Andresa Becker
só uma forma
de amor:
o incontido

só um sentido:
a forma de amar
o indefinido.

Carlos Barroso

domingo, 15 de maio de 2011

Notas Silenciosas

Nenhum barulho ensurdece
quando
você se fecha
dentro da própria cabeça.

A cadência da quietude,
a pressão dolorosa
do vácuo, espaçoso,
dentro de si.

Tenho uma gama
de embalos,
uma sucessão de deslizes
nas notas mais agudas.

O silêncio
ainda me cabe como uma luva.

Samantha Abreu

sexta-feira, 13 de maio de 2011

Não dizer nada, chorar
Até o pranto coalhar
Na retina.

Miguel Torga

terça-feira, 10 de maio de 2011

Maresia

Deviantart
És o dia e a tarde e o sol; o movimento das horas. O movimento involuntário do corpo que se perde no espaço. Barco à deriva. E as mãos que são âncoras desejando outras mãos. O olhar primeiro. E o corpo que se derrama por sobre o outro. E os olhos fechados. Desafiantes. E a boca que se abre em sorriso, beijo e: saudade. O mundo que é mundo quando você desabrocha diante dos meus olhos, como flor; fruta; homem. E eu só quero ir para voltar com você. E virar sobreposição de risos miúdos. E virar o céu que corta a copa das árvores e assusta pássaros exóticos; o céu que corta o infinito. E chega. Mesmo quando estou aqui, em silêncio, eu chego.

Daniela Lima

segunda-feira, 9 de maio de 2011

Da inutilidade da palavra

Voltou-se ainda uma vez. Mas ele já desaparecera na multidão. Aquela hora, a estação estava sempre superlotada. Gente apressada. Perdida entre as pequenas mazelas do dia-a-dia e os sonhos desfeitos. Retribuindo cuidado e carinho com ironia. Quando não com agressão.

Decidiu ser melhor emudecer. E nunca mais se ouviu a sua voz.

Márcia Maia

domingo, 8 de maio de 2011

Três dias seguidos de calor sem calma, tempestade latente no mal-estar da quietude de tudo, vieram trazer, porque a tempestade se escoasse para outro ponto, um leve frescor morno e grato à superfície lúcida das coisas. Assim às vezes, neste decurso da vida, a alma, que sofreu porque a vida lhe pensou, sente subitamente um alívio, sem que se desse nela o que o explicasse.

Concebo que sejamos climas, sobre que pairam ameaças de tormenta, noutro ponto realizadas.

A imensidade vazia das coisas, o grande esquecimento que há no céu e na terra...

Fernando Pessoa, in: O Livro do Desassossego. Ed. Companhia das Letras

sábado, 7 de maio de 2011


[...] Quem não conhece a tristeza não pode saber o que era esse esvaziamento do ser, essa ausência de si mesmo, esse quieto que não significa a paz, mas o sossego de regiões condenadas, e que apesar de tudo ainda não conhecem a morte.

Lúcio Cardoso, in: Crônica da Casa Assassinada. Ed. Civilização Brasileira

sexta-feira, 6 de maio de 2011

hoje eu quero a leveza das coisas...


Mesmo sem saber se jamais chegarei,
apetece-me rir e cantar em
honra da beleza das coisas.

Sophia de Mello Breyner Andresen

quinta-feira, 5 de maio de 2011

Estou precisando. Precisando mais do que a força humana ...

Graça Loureiro
[...] Sou inquieta e áspera e desesperançada. Embora amor dentro de mim eu tenha. Só que não sei usar amor. Às vezes me arranha como se fossem farpas. Se tanto amor dentro de mim recebi e no entanto continuo inquieta é porque preciso que o Deus venha. Venha antes que seja tarde demais. Corro perigo como toda pessoa que vive. E a única coisa que me espera é exatamente o inesperado. Mas sei que terei paz antes da morte e que experimentarei um dia o delicado da vida. Perceberei - assim como se come e se vive o gosto da comida. Minha voz cai no abismo do teu silêncio. Mas nesse ilimitado campo mudo desdobro as asas, livre para viver. Então aceito o pior e entro no âmago da morte e para isso estou viva.

Clarice Lispector, in: Água Viva. Ed. Círculo do Livro

quarta-feira, 4 de maio de 2011

Enfim o que fosse acontecer, aconteceria...

A Hora da Estrela
E por enquanto nada acontecia, os dois não sabiam inventar acontecimentos. Sentavam-se no que é de graça: banco de praça pública. E ali acomodados, nada os distinguia do resto do nada.
Ele: - Pois é.
Ela: - Pois é o quê?

Ele: - Eu só disse pois é!
Ela: - Mas "pois é" o quê?
Ele: - Melhor mudar de conversa porque você não me entende.
Ela: - Entender o quê?
Ele: - Santa Virgem, Macabéa, vamos mudar de assunto e já!
Ela: - Falar então de quê?
Ele: - Por exemplo, de você.
Ela: - Eu?!
Ele: - Por que esse espanto? Você não é gente? Gente fala de gente.
Ela: - Desculpe mas não acho que sou muito gente.
Ele: - Mas todo mundo é gente, Meu Deus!
Ela: - É que não me habituei.
Ele: - Não se habituou com quê?
Ela: - Ah, não sei explicar.
Ele: - E então?
Ela: - Então o quê?
Ele: - Olhe, eu vou embora porque você é impossível!
Ela: - É que só sei ser impossível, não sei mais nada. Que é que eu faço para conseguir ser possível?

Clarice Lispector, in: A Hora da Estrela. Ed. Rocco

terça-feira, 3 de maio de 2011

Tomás lembrava-se dela. O amor. Onde estaria?

Rui Soares
O amor era como a marca pálida deixada por um quadro removido após anos de vida sobre uma mesma parede. O amor produzira um vago intervalo em seu espírito, na transparência dos seus olhos, na pintura envelhecida da sua existência. Um dia, o amor gritara dentro dele, inflamara suas vísceras. Não mais. Mesmo a memória era incerta, fragmentada, pedaços do esqueleto de um monstro pré-histórico enterrados e conservados pelo acaso, impossível recompor um todo íntegro. Trinta anos depois. Duzentos milhões de anos depois [...].

Adriana Lisboa, in: Sinfonia em Branco. Ed. Rocco

"Chique é sobreviver" - entrevista: Caio Fernando Abreu por Paulo Mohylovski

Caio Fernando Abreu
Paulo Mohykovski - No final dos anos 1980, fiz esta entrevista com o escritor Caio Fernando Abreu — uma das poucas e raras que ele concedeu em sua (breve) carreira literária. Não era todo dia que tínhamos a oportunidade de ficar diante de um escritor, que era um ícone de toda uma geração. Juntamente com Marcelo Rubens Paiva, Caio agitou o panorama literário nacional com seu livro de contos Morangos Mofados, em 1982.

Naquela tarde, Caio recebeu-me em seu apartamento na região dos Jardins, em São Paulo. Estranhei que estivesse vestindo um roupão de banho. Ainda hoje, acho que essa imagem faz parte de um sonho. Eu ainda me questiono se vi mesmo Caio Fernando Abreu de roupão de banho. Mas enfim, sentamos no sofá e ele começou a responder às minhas perguntas de uma maneira calma e pausada.

A voz de Caio era grave e profunda. Ele demorava a replicar as perguntas. Tive a impressão de que a entrevista duraria horas. Outra impressão que ficou foi de uma pessoa tensa, quase deprimida. Ele pouco sorriu durante toda a entrevista e fumou o tempo inteiro. Por mais que eu me esforçasse para tornar o ambiente mais relaxado, havia um estranhamento no ar. Sensação que nunca mais senti com nenhum outro entrevistado.

Quando fomos fazer as fotos, encontrei Caio no jornal O Estado de S.Paulo, onde ele trabalhava como copidesque. Ele estava menos tenso e mais sorridente. Fomos para a cobertura do prédio, onde ventava muito. Caio ajeitava os poucos cabelos com dificuldade. Mesmo assim, fumou um cigarro, brincou com a fotógrafa, fazendo caretas, e estava mais sorridente do que nunca.

Caio morreu em 1996. Da mesma maneira que aconteceu com Raul Seixas, depois da sua morte, a cada dia aumenta a sua popularidade, principalmente, entre as gerações mais jovens.

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Entrevista


Paulo Mohykovski - Qual foi a sua formação literária?

Caio Fernando Abreu - Comecei a ler muito cedo e lia absolutamente tudo. Com 13 anos, descobri Lawrence e a literatura inglesa, minha grande paixão. Daí, fui indo por Joyce e Virginia Woolf. Com 19 anos, eu tinha lido muito a vanguarda literária. Eu queria romper. Sempre gostei de cinema. Tentei, através da palavra, trabalhar uma linguagem cinematográfica.


PM - Você considera a sua literatura como sendo de vanguarda?

CFA - Não sei mais o que quer dizer vanguarda. Um conceito que se dispersou. Não tenho mais a preocupação de romper com coisa alguma. Tenho a preocupação de ser o mais verdadeiro e o mais claro possível. Tenho a preocupação com a beleza do texto. Como gosto muito de música, trabalho os meus textos em voz alta. E no livro que estou escrevendo há três anos, trabalho com a técnica minimalista de repetição, de coisa avançando lentamente, como um pingo d'água batendo na pedra.


PM - A literatura tende a desaparecer?

CFA - Numa época, eu lia muito antipsiquiatria. Eu me lembro de uma frase, que não sei se é do Ronald David Laing ou do David G. Cooper, que dizia: "O pior já aconteceu". Pode parar de esperar pelo mais horrível, pelo mais grave, porque já aconteceu. A gente está se movendo no meio de escombros psicológicos. Ele dizia isso em relação à psicologia humana. Em literatura a explosão nuclear já aconteceu com Ulisses de James Joyce e com Waves de Virginia Woolf. E apesar disso, continua existindo.


PM - Paul Valéry dizia que o primeiro verso de um poema era dito pelos deuses e que o resto era mão-de-obra. Você concorda com isso?

CFA - Concordo plenamente. Eu crio muito em cima de frases, que eu não sei de onde vêm, que chamo de "frases-irmãs". Essas frases, aparentemente, não estão ligadas a nada. Sou muito místico e romântico. Acredito que tenha ondas no seu cérebro que se contatam com coisas misteriosas.


PM - Você entra em transe quando escreve?

CFA - Eu fico muito esquisito quando escrevo. Fico, realmente, numa outra faixa vibratória. Acontecem coisas muito loucas. Tenho taquicardia, insônia e meu ritmo muda completamente. Eu me lembro que estava escrevendo a novela Dodecaedro, quando chegou um momento que bloqueou o texto. Eu não conseguia achar a saída. Eu estava escrevendo sobre um personagem que seria o arquétipo do signo de Sagitário. Eu tentava e não vinha nada. Na época, eu tinha uma estante bem na minha frente, com meus livros de poesia. Peguei um ao acaso e abri. Era um poema do García Lorca chamado "Poema de La Saeta", que fala sobre a constelação de Sagitário. Incorporei esse poema ao texto e consegui a sequência final da novela.


PM - A situação que você descreveu no processo de criação da novela Dodecaedro, de não estar encontrando uma saída para o prosseguimento do enredo, é a mesma situação em que os personagens viviam, presos numa casa, cercada por cães raivosos. Acontece de você se transformar naquilo que escreve?

CFA - Acontece. Às vezes, é muito grave. Morangos Mofados, por exemplo, eu acho um livro pesado, amargo, depressivo, angustiado. E me aconteceu de receber personagens de contos que já tinha escrito. Tenho um conto chamado "Sobreviventes", que é um monólogo de uma moça que está bebendo muito. Eu recebia os "Sobreviventes" de vez em quando e era muito negativo.

PM - A sua literatura é autobiográfica?

CFA - Não. Essa questão não existe, porque o único ponto de vista que você conhece sobre o mundo é seu próprio. São seus olhos que vêem, seu nariz que cheira, suas mãos que tocam. A experiência pessoal é indissociável do texto. Érico Veríssimo dizia que a cabeça do escritor é como o laboratório do Doutor Frankenstein: um braço é de uma pessoa, a cabeça é de outra, formando um personagem que é a síntese de muita gente.


PM - Você trabalha muito com a linguagem poética. Como você consegue encontrar poesia numa cidade como São Paulo?

CFA - A poesia está solta por aí. É como o filme Sid e Nancy, que é horrivelmente poético. É a estética urbana do lixo. Tem uma cena muito bonita, que é um beijo dos dois no meio da rua, quando começa a cair uma chuva de lixo, em câmera lenta, sobre eles. Isso é medonho, mas é também muito bonito. Numa cidade como São Paulo, o belo está bastante misturado com o horrível. O medonho e o maravilhoso vêm interligados.


PM - O sofrimento e o suicídio estão ligados à obra literária?

CFA - Não sei. Eu me lembro de Clarice Lispector, que dizia: "As grandes sensibilidades não passam impunes". Quanto mais você percebe o mundo, quando você capta o que se passa com outras pessoas e na sociedade, mais você fica vulnerável e sofre. Ultimamente, eu ando muito feliz. Eu tenho me debatido com esta ideia de que para criar é preciso sofrer. Acho que você pode manter a razão sobre sua criação e descobrir formas de encontrar, de acordo com a sua realidade objetiva, sem que ela te fira tanto.


PM - Você nunca pensou em suicídio?

CFA - Já tentei três vezes. Mas eu era muito jovem e faz muito tempo. Não tentaria de novo. Adoro viver. Era uma atitude um pouco literária. Achava muito chique se suicidar aos 20 anos. Mas chique é sobreviver.


PM - Você trouxe para a literatura um tipo de conteúdo até então inédito, que trata de drogas e sexo. Quais foram as suas influências para esse tipo de conteúdo?

CFA - Da própria vida. Sempre fui muito atrevido e curioso. Fui me metendo nas barras mais pesadas que se possa imaginar, até acabar me marginalizando na Europa. Sou o meu próprio personagem. A tua vida é um romance, que você está escrevendo ou um filme, que você está dirigindo. Nada é muito sério. Tudo é artifício. Há momentos em que você pode ser bandido, mocinho, anjo ou burguês. Eu sempre tive uma grande atração pela marginalidade ou pela literatura feita por marginais. Sejam marginais eróticos, como Genet ou marginais psicológicos, como Artaud. Ou a marginalidade espiritual de Virginia Woolf, que sempre me encantou muito.


PM - Você conseguiu fazer a união entre vida e literatura?

CFA - Há dois tipos de escritores. Um seria, por exemplo, o Borges, que ficou trancado a vida inteira no escritório e morava com a mãe até a velhice. O outro tipo seria como Jack Kerouac, que vai para a rua, para a sarjeta, para a vida. Qualquer um dos tipos é maravilhoso, se o trabalho dele for bom. Eu me sinto mais próximo de Kerouac. Tenho muita vontade de viver. Tenho o espírito muito aventureiro.


PM - Você se utiliza muito do recurso da citação, seja no começo ou no meio do texto. Essa é uma forma de dialogar com outros escritores?

CFA - De certa forma, sim. Há pequenas homenagens no que escrevo. Mas vivendo em 1986, em cima de milhares de anos de História, onde tudo já foi dito e feito, aquilo que você escreve vai repetir o que já foi dito. A Grécia mitológica convive com os computadores. Há um excesso de cultura e de informação e isso transparece no meu texto.


PM - Você consegue ir além da palavra ou ela é um fardo que você carrega?

CFA - Às vezes, a palavra se torna uma escravidão. Com a palavra se supõe que você domestica a realidade. Se você estiver envolvido numa relação amorosa complicada e chamá-la de neurótica, você terá a impressão de que está compreendendo a relação. Mas o neurótico pode estar só na palavra. As emoções explodem além das palavras.


PM - Você tem algum nome para o tipo de trabalho que você faz?

CFA - Numa época, eu chamava de literatura sensorial. Porque eu queria impregnar o texto de cheiros, cores, formas. Que não é nada novo. Rimbaud queria isso também. Depois eu pensava que escrevia uma ecologia das emoções, que foi numa época em que meu trabalho era muito psicológico.


PM - No tempo em que morou no bairro de Moema, perto do Parque do Ibirapuera, você escreveu alguma coisa?

CFA - Eu escrevi alguns contos. Eu morava numa casinha tão boa, tinha uma roseira tão bonita. Foi onde comecei a trabalhar nesse livro que estou escrevendo há três anos. Foi uma época muito boa. Eu tinha uma bicicleta e passeava muito pelo Ibirapuera. Era uma delícia. E, finalmente, esse último livro virá impregnado do ar de Moema.

Paulo Mohylovski, entrevista com Caio Fernando Abreu, in: Germina Literatura

domingo, 1 de maio de 2011

Correspondência

por favor, não pare de me falar sobre você
nos ligamos — convites anelados
beijos são palavras abertas
eletricidade escapa, cabos se partem
em que parte te encontro?
não confie na memória
ela é um correio lotado de cartas brancas
não suspire
o tempo é corrosivo porque mora nos silêncios
de repente enferruja cartas cabos lábios
enferruja a gente
não é certo não é certo, suspiro
toques me despertam
mãos de prata como bandejas
e debaixo da mesa pernas encontram pernas
vamos arquitetar uma fuga com elas
arquitetar uma ponte e envelhecer sem segredos
temo que seja o fim da ligação
terrível enxaqueca
poupe os anúncios em branco
anúncios são convites malcriados
anoto na passagem: preciso de um mapa
nossa correspondência está aos pedaços
quem leu a última parte?
você sempre faz mapas quando está triste?
é o fim. Não confio na memória.

Juliana Bernardo