segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

"A cada milágrimas sai um milagre . . . "


- Mas vamos, enxugue estas lágrimas; que lhe adiantam elas? As lágrimas não têm grande cotação neste mundo; e depois, uma pessoa da sua força não deve chorar nunca.

Lúcio Cardoso, in: Crônica da Casa Assassinada. Ed. Ediouro

No silêncio, a janela aberta voltou a bater; depois a serenidade envolveu todas as coisas.

Lúcio Cardoso, in: A Luz no Subsolo. Ed. Expressão e Cultura

domingo, 27 de fevereiro de 2011

A primeira vista...

Vânia Medeiros
- Clarice?
- Não me chame de Clarice. Nunca mais.
- Não entendo.
- Se já não me ama, não me volte a chamar pelo nome.
Que lhe interessava ter um nome se ele amava outra pessoa?

O nome é uma luz que um coração acende. E Clarice queria ficar no escuro, desluada, para não enxergar a sua própria existência.
E ele, hesitante, cada palavra tacteando o silêncio:
- Desculpe, Clarice, chamo-lhe como, então?
- Chame-me de "meu ex-amor".
O homem gaguejou: não podia, não sabia, não queria. Sacudiu a cabeça, cabisbaixo, vencido.
- Como não consegue?
- Simplesmente, não sou capaz.
- É simples, são duas palavras, quase uma. Repita comigo: ex-amor.

Clarice sabia: amar é verbo sem passado. Uma vez tendo amado nunca mais se deixa de amar. Com inesperada segurança ela repetiu: que não existe o ter amado, nem o ter vivido. Amar e viver são verbos sem pretérito.
- Amar, João, é sempre um infinitivo. Por isso, João, você ainda me ama.

João Rosa não acreditava no que escutava. Menos ainda no que enxergava: os olhos dela não espelham tristeza nem saudade.
[...]
- Talvez você não saiba, João. Mas você ainda me ama.

Amava mesmo sem nenhum amor. Amar, amar sempre. Mesmo depois de já haver peito, o coração prossegue mesmo depois de se extinguir a última lembrança.

Mia Couto, in: do conto: Olhos nus Olhos / Essa História está Diferente: dez contos para canções de Chico Buarque. Ed. Companhia das Letras

mel & girassoís (ao som de Nara Leão)

Assim foram pelos dias, que não eram muitos mais. Quatro, cinco, nem uma semana. Caminhavam descalços na areia, à noite, à beira-mar - juro. Devagar, as mãos se tocavam: a tua é tão longa, a tua tão quadrada. Ele não queria entrar noutra história, porque doía. Ela não queria entrar noutra história, porque doía. Ela tinha assumido seu destino de Mulher Totalmente Liberada Porém Profundamente Incompreendida E Aceitava A Solidão Inevitável. Ele estava absolutamente seguro de sua escolha de Homem Independente Que Não Necessita Mais Dessas Bobagens De Amor. Caminhavam assim, lembrando juntos de bossa-nova. Ela imitava Nara Leão: se-alguém-perguntar-por-mim. Ele, Dick Farney: pelas-manhãs-tu-és-a-vida-a-cantar. Nada sabiam de punks, darks, neons, cults, noirs. Eram tão antigos caminhando de mãos dadas naquela areia luminosa, macia de pisar quando os pés afundam nela lentamente. Carne de lagosta, creme, neve. Tão bom encontrar você, um cantinho, um violão.

Caio Fernando Abreu, in: Os Dragões Não Conhecem o Paraíso. Ed. Companhia das Letras

sábado, 26 de fevereiro de 2011

[...] e como saber quando o amor acaba?

Haverá um instante, uma linha divisória, uma revelação, um despertador interno que toca, e pronto, acordamos e dizemos, ainda sonolentos, acordamos e dizemos, pronto, acabou. Levantamos, nos vestimos, pegamos a bolsa ou a mala, e saímos. Lá fora, a luz da manhã de um dia qualquer, as pessoas nos ônibus indo trabalhar, as crianças de uniforme, o café com leite das padarias, tudo tão cotidiano, tão normal. Como é possível tudo tão cotidiano, enquanto lá dentro, num apartamento, num quarto, numa cama, lá dentro o amor que acaba de acabar. Ou vai o amor acabando desde o início, desde o primeiro beijo, o primeiro olhar, a intuição de que algo se desgasta, se desfaz. E, por mais beijos e olhares e todas as palavras felizes e tolas que possamos inventar, sempre algo à espreita que nos inquieta. Algo que, no exato instante em que começa, dá início também ao inevitável processo de extinção.

Carola Saavedra, in: Flores Azuis. Ed. Companhia das Letras

A Fanny Abramovich

Rio, 20.10.83

Fanny, muito querida,

Estive hoje lá na editora e encontrei a tua cartinha. Aproveitei e roubei este papel (as editoras têm papéis ótimos) especialmente para te escrever. Grato pelo que você me diz sobre o Triângulo. Me fez um bem enorme. Foi difícil escrever tudo aquilo, e eu não tinha/não tenho a menor ideia de como poderia bater nas pessoas. Fiquei muito tempo mergulhado naquelas histórias – eram noturnas, eu tinha que escrever à noite e dormir de dia. Meu último ano em São Paulo não foi em São Paulo: foi dentro das histórias.

Estou aqui desde maio, no Hotel Santa Teresa – um lugar maluco, em cima do morro, com muito horizonte, passarinho, borboleta. Fico bastante só, não gosto do Rio, não gosto de São Paulo, tenho dificuldades com a maioria das pessoas. Mas acho que estou bem. Nado muito, respiro, voltei a fazer ioga – estudo (faz tempo) astrologia, e faço meus trânsitos diários num daqueles caderninhos quadriculados que você me deu. Em janeiro está saindo um livro novo – surpresa: é para crianças, chama-se As frangas. O primeiro que sair do forno mando, quentinho para você.

Gosto imensamente de você, embora a gente não se conheça. Um pouco pelo que conversamos, por telefone, muito pelo que li de você, outro pouco por amigo em comum, ex-Ventoforte, o Paulo César.

Você está bem? Os tempos estão tão negros, Fanny. Eu fico me movimentando no meio do cotidiano, procurando fazer/sentir coisas muito simples. Cada vez mais. Vezenquando não sei bem o que estou fazendo no Rio. Muito é porque aqui tem horizontes: preciso demais ver horizontes e coisas verdes em volta.

Quando/se você quiser/puder, me escreva. Eu gostaria muito. Estou procurando uma casinha (adoro casinhas) para mudar daqui, e acho que encontrei. Mas as cartas não se perdem. Te quero muito, muito bem. Que você esteja em paz, cheia de amor, vendo bonito. Um beijo grande do

Caio.

Caio Fernando Abreu, in: Caio 3D - O Essencial da Década de 1980. Ed. Agir

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

XII

O teu gesto de alegria
nunca será para mim.

O teu conflito noturno
este sim
pousará na minha face.

Hilda Hilst, in: Baladas. Ed. Globo
Me afasto
por um tempo.
Existe algo de profundamente
destrutivo
na nossa relação
e resolvi me defender.

Como não tenho a intenção
de ler carta
ou responder ao telefone,
é melhor você deixar
as coisas assim mesmo.

Silviano Santiago, in: Cheiro Forte. Ed. Rocco

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

"Sabe Madalena, que nunca mais nos veremos? De nada adianta tudo o que sentimos agora. Dentro de um ano... dois anos, tudo estará morto, não seremos mais do que duas desconhecidas". A face molhada de lágrimas desaparecia vagarosamente. Madalena sentia-se assaltada por uma atroz melancolia. Percebia que ela, como todo mundo, não era formada senão pela marca que deixam as pessoas passando em nossa vida. Na sua, todos tinham sido arrastados pela voragem do tempo; ficara a memória a viver a sua existência de farrapos, encarcerando-a para sempre ao sentimento de que nada vale senão pela experiência que fica. Tudo o mais é tolice, é vento que passa, sem deixar mais do que um rastro fugidio [...].

Lúcio Cardoso, in: A Luz no Subsolo. Ed. Expressão e Cultura

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011


... a dificuldade de amar consiste, então, na expectativa criada em torno do ser amado, que nem sempre pode corresponder aos anseios das nossas fantasias...

Edla van Steen, do conto: Os Mortos não têm Desejos - em O Conto da Mulher Brasileira. Org. Edla van Steen. Ed. Global

[...] Como é possível que eu tenha vivido toda uma existência acreditando que só no amor eu encontraria a felicidade?...

Edla van Steen, do conto: Os Mortos não têm Desejos - em O Conto da Mulher Brasileira. Org. Edla van Steen. Ed. Global

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

[...] porque o amor deveria ser isso,

Szara Reneta
você pensava, o amor só poderia ser isso, um arrebatamento, um enlevo, e um corpo dentro de outro corpo, desfazendo-se numa impossível simetria, você pensava, o amor só poderia ser isso, essa conquista, essa captura, pois agora tudo meu era teu, a minha espera, o meu receio, e toda alegria e todo assombro, e até as palavras que eu não disse eram tuas, e você pensando que isso deveria ser o amor, quando se perde o medo, e nada mais te fere, e nada mais te escapa, agora que você era capaz de tudo, agora que minha desordem te envolvia e te enlaçava. Porque, finalmente, a nossa força e a nossa fraqueza e o vai-e-vem insistente e a distância, essa linha que nos unia, como se você estendesse entre nós um atalho, uma ponte, e repetisse, vezes sem fim, que era teu o que você quisesse, pois o amor era isso, quando, finalmente, se perde o medo, o medo que nos paralisa, o medo que nos detém, e se é capaz das coisas mais belas e espantosas, como amar e construir uma ponte para o outro corpo, a tua mão, e você pensava que aquilo deveria ser o amor, depois da guerra e da derrota e do medo, o amor, esse vínculo que nos une e nos destrói, e você pensava, o amor deve ser isso, estender uma ponte e atravessá-la e destruí-la para do outro lado, em outro corpo, a descoberta de algo que somente a dor poderia aplacar.

Carola Saavedra, in: Flores Azuis. Ed. Companhia das Letras

Simples


- Então é disso que você gosta? De amor impossível, de conflito, de bagunça?
- Exatamente. Com duas gotinhas de adoçante.

Daiana Geremias

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011


[...] e ademais não fiquei por aqui, apenas voltei depois das pendengas pelo mundo afora, misturando amores e livros no caldeirão da vida.

Marcelo Backes, in: Três Traidores e Uns Outros. Ed. Record

Não existe melhor nem pior...

Nessa vida tudo é sempre mais ou menos, e o mundo só tem jeito se conseguirmos rir da cara dele. Como não, se a chantagem dos outros ousa matar o que é mais genuíno dentro da gente? Se até quando mais amamos somos traídos? Se inclusive nos momentos de maior tormento, em que choramos de verdade, o mundo não titubeia em passar seu trator por cima de nós?
Com o tempo a gente aprende e endurece até por dentro, depois de constatar que uma casca dura, somente, não basta, depois de ver como dói amolecer aqui e ali.
Questão de sobrevivência.
[...]

Marcelo Backes, in: Três Traidores e Uns Outros. Ed. Record

dique

o teu jeito de dizer as coisas
esconde um rio de lamentações

e não sobra pedra
sobre pedra.

Líria Porto

domingo, 20 de fevereiro de 2011

Não é teu corpo.
É a possibilidade da sombra.

Ana Cristina Cesar, in: Antologia 100 Anos de Poesia. Ed. O Verso Edições
E pede o coração que eu me desarme
de tudo o que afinal guardei comigo.

José Chagas
Agora que me vou é que me deixo
ficar perdidamente nesta estrada.

Gilberto Mendonça Teles

sábado, 19 de fevereiro de 2011

Classificado

Alone Gut
Vendo alma seminova, em bom estado. Algumas manchas na altura do peito, mas nada que três boas manhãs de sol e uma ida ao circo não atenuem. Adaptável a praticamente todos os tamanhos de invólucros corporais. Bom perfume, mesmo não tendo cheiro de talco. Único dono, apesar de algumas investidas de especuladores infernais. Dou preferência a quem tenha os estranhos hábitos de sorrir quando olha o céu e de sonhar sem fechar os olhos. Exigência: o interessado deve se comprometer a alimentá-la pelo menos duas vezes por dia com Quintanas sabor tradicional ou cambalhotas sabor framboesa. Tratar com o proprietário.

André Gonçalves, in: Coisas de Amor Largadas na Noite. Ed. Ideias Inc.

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Brilho de Uma Paixão
Sou apenas o cúmplice da tua solidão.

Rainer Maria Rilke. Recorte do livro de Lya Luft: Secreta Mirada. Ed. Mandarim
Essas antiquíssimas dores
não serão finalmente fecundas em nós?
Será tempo de nos libertarmos,
amando,
da coisa amada...
docemente como quem se desabitua
dos peitos maternos.

Rainer Maria Rilke. Recorte do livro de Lya Luft: Secreta Mirada. Ed. Mandarim
Mas agora que tanta coisa está mudando, não será nossa vez de nos transformarmos também?

Rainer Maria Rilke. Recorte do livro de Lya Luft: Secreta Mirada. Ed. Mandarim

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Viver bem consiste em ser feliz na medida certa: no ponto em que tudo está em paz, mas a alegria não escapa por entre os dedos, doendo no peito e brilhando nos olhos. Felicidade demais dói. Felicidade indolor tem que ser como a água: incolor, do tipo que ninguém nota. Felicidade demais nos tira o sono, nos tira a fome, nos tira a paz. Felicidade demais é insalubre. Quero, para mim, uma felicidade do tamanho M, por favor!

Tereza Zambrini

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Pálpebras de Neblina

Texto tristíssimo, para ser lido ao som de Giulietta Masina, de Caetano Veloso.

Fim de tarde. Dia banal, terça, quarta-feira. Eu estava me sentindo muito triste. Você pode dizer que isso tem sido frequente demais, ou até um pouco (ou muito) chato. Mas, que se há de fazer, se eu estava mesmo muito triste? Tristeza-garoa, fininha, cortante, persistente, com alguns relâmpagos de catástrofe futura. Projeções: e amanhã, e depois? e trabalho, amor, moradia? o que vai acontecer? Típico pensamento-nada-a-ver: sossega, o que vai acontecer acontecerá. Relaxa, baby, e flui: barquinho na correnteza, Deus dará. Essas coisas meio piegas, meio burras, eu vinha pensando naquele dia. Resolvi andar.

Andar e olhar. Sem pensar, só olhar: caras, fachadas, vitrinas, automóveis, nuvens, anjos bandidos, fadas piradas, descargas de monóxido de carbono. Da praça Roosevelt, fui subindo pela Augusta, enquanto lembrava uns versos de Cecília Meireles, dos Cânticos: "Não digas: 'Eu sofro'. Que é que dentro de ti és tu? / Que foi que te ensinaram/que era sofrer?" Mas não conseguia parar. Surdo a qualquer zen-budismo, o coração doía sintonizado com o espinho. Melodrama: nem amor, nem trabalho, nem família, quem sabe nem moradia - coração achando feio o não-ter. Abandono de fera ferida, bolero radical. Última das criaturas, surto de lucidez impiedosa da Big Loira de Dorothy Parker. Disfarçado, comecei a chorar. Troquei os óculos de lentes claras pelos negros ray-ban - filme. Resplandecente de infelicidade, eu subia a Rua Augusta no fim de tarde do dia tão idiota que parecia não acabar nunca. Ah! como eu precisava tanto de alguém que me salvasse do pecado de querer abrir o gás. Foi então que a vi.

Estava encostada na porta de um bar. Um bar brega - aqueles da Augusta-cidade, não Augusta-Jardins. Uma prostituta, isso era o mais visível nela. Cabelo malpintado, cara muito maquiada, minissaia, decote fundo. Explícita, nada sutil, puro lugar comum patético. Em pé, de costas para o bar, encostada na porta, ela olhava a rua. Na mão direita tinha um cigarro, na esquerda um copo de cerveja. E chorava, ela chorava. Sem escândalo, sem gemidos nem soluços, a prostituta na frente do bar chorava devagar, de verdade. A tinta da cara escorria com as lágrimas. Meio palhaça, chorava olhando a rua. Vez em quando, dava uma tragada no cigarro, um gole na cerveja. E continuava a chorar - exposta, imoral, escandalosa - sem se importar que a vissem sofrendo.

Eu vi. Ela não me viu. Não via ninguém, acho. Tão voltada para a própria dor que estava, também, meio cega. Via pra dentro: charco, arame farpado, grades. Ninguém parou. Eu, também, não. Não era um espetáculo imperdível, não era uma dor reluzente de néon, não estava enquadrada ou decupada. Era uma dor sujinha como lençol usado por um mês, sem lavar, pobrinha como buraco na sola do sapato. Furo na meia, dente cariado. Dor sem glamour, de gente habitando aquela camada casca-grossa da vida. Sem o recurso dessas benditas levezas de cada dia - uma dúzia de rosas, uma música de Caetano, uma caixa de figos.

Comecei a emergir. Comparada à dor dela, que ridícula a minha, dor de brasileiro-médio-privilegiado. Fui caminhando, mais leve. Mas só quando cheguei à Paulista compreendi um pouco mais. Aquela prostituta chorando, além de eu mesmo, era também o Brasil. Brasil 87: explorado, humilhado, pobre, escroto, vulgar, maltratado, abandonado, sem um tostão, cheio de dívidas, solidão, doença e medo. Cerveja e cigarro na porta do boteco vagabundo: carnaval, futebol. E lágrimas. Quem consola aquela prostituta? Quem me consola? Quem consola você, que me lê agora e talvez sinta coisas semelhantes? Quem consola este país tristíssimo?

Vim pra casa humilde. Depois, um amigo me chamou para ajudá-lo a cuidar da dor dele. Guardei a minha no bolso. E fui. Não por nobreza: cuidar dele faria com que eu me esquecesse de mim. E fez. Quando gemeu "dói tanto", contei da moça vadia chorando, bebendo e fumando (como num bolero). E quando ele perguntou "por quê?", compreendi ainda mais. Falei: "Porque é daí que nascem as canções". E senti um amor imenso. Por tudo, sem pedir nada de volta. Não-ter pode ser bonito, descobri. Mas pergunto inseguro, assustado: a que será que se destina?

Caio Fernando Abreu, in: Pequenas Epifanias / O Estado de S. Paulo, 18/11/1987 / Ed. Agir

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

tear

não que seja a madrugada
preâmbulo do dia

tampouco réquiem ou epitáfio
de amor inacabado

mas um tempo que se arrasta
como se caminhassem
os ponteiros
ao avesso

não que sejas a razão da
minha insônia
ou que palpite o coração
ensandecido
à qualquer tênue recordação
de ti

(tenho-as tantas)

apenas fazes-me falta

e entornas essa tua ausência
imensamente calma

entre a cama e a janela
sobre o poema

onde desfio fio a fio a madrugada.

Márcia Maia
Alina Lebedeva

você
anda
em bando
eu ando
abandonada.

Jane Sprenger Bodnar, in: Antologia Dedo de Moça. Ed. Terracota
Prefiro quando a vida me vem
de surpresa
e me agarra pelas pernas
Quando me vem saborosa
e se derrete em minha boca
me fazendo querer mais
Quando a vida vem
em calmaria plena
de silêncios absolutos
Ou chega musical e sonora
cantarolando em voz alta
Quando a vida vem assim:
imagem e cena
sequenciada em fotografia

Quando a vida me vem
(não importa como)
Abraço!

Aprecio viver.

Juliana Regina Marques

domingo, 13 de fevereiro de 2011

"Ô chuva vem me dizer/ Se posso ir lá em cima prá derramar você."

Quando eu morava em Salvador e o céu ficava nublado, impedindo a ida à praia, dizíamos que o tempo estava feio. Agora, morando no sertão, onde temos chuvas em apenas um ou dois meses do ano, quando o céu está nublado e carregado de nuvens, dizemos que o tempo está "bonito". A chuva ganha significados diferentes nestes dois contextos. É bem vinda, onde é escassa...

Tâmara Rossene
Ser feliz consigo mesmo
em sua própria companhia
na mais pura solidão
é razão de alegria
ou não?

Tereza Zambrini

Espelho

Tenho bobagens repentinas, carências urgentes, ausência de respostas, ansiedade concentrada, angústia que talha a carne, ciúme que dilacera o orgulho. Tenho saudade, receio e sorriso. Sentimentos vagos, carinhos inexplicáveis, paixões fulminantes e tesão noturno nas terças-feiras. Mania de escrever, de me desculpar e de errar sempre os mesmos erros. Você consegue se definir? Ou sempre falta alguma coisa?

Juliana Regina Marques

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011


Abismo é o vão que fica entre as costas de duas pessoas que se viram, cada uma para um lado, logo depois de terem transado.

Bianca Ramoneda, in: Só. Ed. Rocco

coisas do sentir


o que os olhos não veem
o coração não sente
(
o problema é o cheiro...
)

Márcia Maia
Dia de limpar armários, revirar gavetas, separar o pouco que é meu do tanto que já se perdeu. Processo doloroso, é certo, mas cada vez menos: amadurecer tem suas vantagens. Cortar os laços deixa de ser tragédia sofocliana, olhos furados e um longo caminho de dor. Não: a graça está é no novo, e quem me dera viver só de começos. Trocar o amor que já se empoeirou pelas paixões sublimes, toques e lábios e o "eu te amo" pronunciado com tanto fervor e certeza. Fênix, quem me dera.

Carina de Luca

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

olha a garoa

Elena Odriozola
amanheceu chuva fina
acabou-se a aguaceira

agora nossa senhora
coa nuvem na peneira

a minha serra cheirosa
vestiu manto de neblina

com roupa tão vaporosa
parece moça menina

mantém os olhos abertos
sem cortina sem vidraça

a vida é boa é bela - não a vês?
a vida passa.

Líria Porto, in: Do meu doce presente. Obrigada Líria Querida!

a felicidade não tem alfabeto

Vânia Medeiros
Na verdade, de que serve a poesia se não é preciso inventar amores? Não será o verso feito de nostalgia daquilo que fica por fazer? No momento, o amor estava ali, à mão de se fazer. Há quanto tempo o coração não lhe pulsava nas mãos e na fronte, há quanto tempo ele não se debruçava sobre a vertigem de confirmar no seu um outro corpo? [...]

Mia Couto, in: do conto: Olhos nus Olhos / Essa História está Diferente: dez contos para canções de Chico Buarque. Ed. Companhia das Letras

"o tempo e suas águas inflamáveis".

Como dói o indeciso tempo do "talvez".

Mia Couto, in: do conto: Olhos nus Olhos / Essa História está Diferente: dez contos para canções de Chico Buarque. Ed. Companhia das Letras

.

A Via Láctea
O que me fascina em si não são só os seus olhos negros, esse olhar de confiança absoluta. O que mais me encanta são as suas palavras lindas.

Mia Couto, in: do conto: Olhos nus Olhos / Essa História está Diferente: dez contos para canções de Chico Buarque. Ed. Companhia das Letras

"e tantas águas rolaram..."

A paixão é um fio de chuva em vidro de janela.

Mia Couto, in: do conto: Olhos nus Olhos / Essa História está Diferente: dez contos para canções de Chico Buarque. Ed. Companhia das Letras

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

para minhas primaveras - hoje.


Viver é bom demais, dear Deep. E veloz, meio gincana, às vezes. Pegue tudo a que você tem direito, e nós temos direito a absolutamente tudo de bom.

Caio Fernando Abreu, in: Para sempre teu, Caio F., Org. Paula Dip. Ed. Record

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

O dia que júpiter encontrou saturno (nova história colorida) - fragmentos

- Você gosta de estrelas?
- Gosto. Você também?
- Também. Você está olhando a lua?
- Quase cheia. Em Virgem.
- Amanhã faz conjunção com Júpiter.
- Com Saturno também.
- Isso é bom?
- Eu não sei. Deve ser.
- É sim. Bom encontrar você.
- Também acho.
[...]

- Você tem um cigarro?
- Estou tentando parar de fumar.
- Eu também. Mas queria uma coisa nas mãos agora.
- Você tem uma coisa nas mãos agora.
- Eu?
- Eu.
[...]

- Você é de Virgem?
- Sou. E você, de Capricórnio?
- Sou. Eu sabia.
- Eu sabia também.
- Combinamos: terra.
- Sim, combinamos.
[...]

- Quando a noite chegar cedo e a neve cobrir as ruas, ficarei o dia inteiro na cama pensando em dormir com você.
- Quando estiver muito quente, me dará uma moleza de balançar devagarinho na rede pensando em dormir com você.
- Vou te escrever carta e não mandar.
- Vou tentar recompor teu rosto sem conseguir.
- Vou ver Júpiter e me lembrar de você.
- Vou ver Saturno e me lembrar de você.
- Daqui a vinte anos voltarão a se encontrar.
- O tempo não existe.
- O tempo existe, sim, e devora.
- Vou procurar teu cheiro no corpo de outra mulher. Sem encontrar, porque terei esquecido. Alfazema?
- Alecrim. Quando eu olhar a noite enorme do Equador, pensarei se tudo isso foi um encontro ou uma despedida.
- E que uma palavra ou um gesto, seu ou meu, seria suficiente para modificar nossos roteiros.
[...]

- Mas não seria natural.
- Natural é as pessoas se encontrarem e se perderem.
- Natural é encontrar. Natural é perder.
- Linhas paralelas se encontram no infinito.
- O infinito não acaba. O infinito é nunca.
- Ou sempre.


- Tudo isso é muito abstrato. Está tocando Kiss, kiss, kiss. Por que você não me convida para dormirmos juntos.
- Você quer dormir comigo?
- Não.
- Porque não é preciso?
- Porque não é preciso.
- Me beija.
- Te beijo.

Caio Fernando Abreu, in: Morangos Mofados. Ed. Companhia das Letras

domingo, 6 de fevereiro de 2011

ausência

Gustav Klimt
Amou tanto, daquele amor danado e romântico, que pensou morrer quando ele se fez névoa de passado, daquelas densas, tal a perfeição de sua partida. Quase arte de feitiçaria, que parecia ele não querer lhe deixar nem a lembrança do rosto, nem o cheiro amadeirado, nem o toque macio do lábio. Ela de quase nada se lembrava, nada quase, apenas sensações lhe indicavam que existira alguém. Nos armários nada havia que indicasse sua passagem. Tivera o cuidado de levar consigo tudo que comprovasse a dor que lhe causara. Nunca recebera um mimo, sequer uma frágil flor apanhada nas margens da estrada. Estranhara até. Banalidades, dissera a si, em silêncio magoado. Nunca a encontrara a luz do dia, alegava falta de tempo, compromissos. Não conhecera a verdadeira cor da sua pele. O acordar fora sempre solitário. Quando abria os olhos, via o vazio ao seu lado, em todo o quarto. Começou a odiar a luz que o distanciava, e ansiava pela noite. Ela, que sempre odiara o passar das horas, e se lamentava com o passar dos dias, esperava a morte desses, vendo com prazer o sol se desfazendo entre as nuvens. Conhecia todos os mistérios que a lua poderia oferecer. Ninguém o conhecia. Quando queria apresentá-lo a alguém, olhava ao seu lado e ele já não estava. Voltava depois dizendo que fora comprar algo, com as mãos limpas. Nunca atentara para o absurdo da mesma desculpa. Um dia se despediu como de hábito, e nunca mais voltou. Ao mesmo tempo em que ela sentia sua ausência, procurava pistas de sua existência, pois começava a duvidar de suas lembranças. Elas não lhe permitiam visualizar seu rosto. Saía todas as noites, o que a fazia sentir-se mais próxima, como a afagar uma velha camisa. Acariciava os lugares onde haviam estado, o espaço vazio onde seu corpo repousara, conseguia visualizar algo. Às vezes um choro sentido escapava de seus olhos, tremia-lhe ligeiramente os lábios. Levantou-se um dia e forçou-se a olhar pela janela. O sol da primavera que chegava. O inverno havia passado. Não perdera tanto sol. Colheu uma rosa molhada de orvalho que crescia junto à janela e acariciou os olhos inchados. Convencia-se de que tudo fora apenas sonho. Pensara morrer, mas seu instinto de sobrevivência era maior que tudo. Desligou-se completamente daquelas sensações naquela primavera. Decidiu deixar o fantasma onde fantasmas gostam de estar. E mergulhou no dia, até que encontrou alguém visível como ela, palpável e que lhe enchia de lembranças, antes mesmo de se perder na fumaça do tempo, etérea, assim como os sentimentos, a dor, o amor e a morte.

Simone Santana

Escrever, prolongar o tempo

Não posso escrever enquanto estou ansiosa ou espero soluções porque em tais períodos faço tudo para que as horas passem; e escrever é prolongar o tempo, é dividi-lo em partículas de segundos, dando a cada uma delas uma vida insubstituível.

Clarice Lispector, in: Para Não Esquecer. Ed. Círculo do Livro
Solidão é passar a noite ouvindo uma fita virgem.

Bianca Ramoneda, in: Só. Ed. Rocco

sábado, 5 de fevereiro de 2011

nem todo mundo

Penso, Daniela, eu, esse maior dos idiotas — um confesso, contudo —, que existem só dois tipos de pessoas, a despeito de tudo mais: as que, no amor, precisam antes ser amadas e as que precisam amar.

Acordava no meio da noite com a sensação de que estava faltando alguma coisa, levantava, andava pelo apartamento, conferia as portas, o gás e sentava no sofá ao lado do telefone. Queria ligar para alguém; queria ter para quem ligar, mas: ninguém. Verificava se ainda havia alguma luz acesa nos prédios vizinhos e, quando havia, imaginava por quê. "Estou morrendo de tempo", ele disse. "Estamos", respondi. A última conversa não me saía da cabeça. Sempre ficava com a sensação de não ter dito tudo e de ter dito tudo errado e de ter escondido o que não deveria. Queria ter dito: "Não estou feliz". Foram meses planejando, idealizando e viabilizando uma vida nova, unicamente para entender que essa vida nova não era a minha vida; que essa felicidade não era a minha felicidade. E que essa paz, esse silêncio, essa pessoa no espelho…! "Um café e a conta, por favor", "Aliás, esqueça o café, me traga um desfibrilador, que o meu coração ainda pode ter jeito". E eu achando que poderia viver sem coração; que amores assim poderiam ser mortos com meia dúzia de palavras enterradas no peito. Burra.

"Alô… Oi, te acordei?".

Daniela Lima
Encontros e Desencontros
[...] Dei-lhe a face que procurava, e ele amou-me até que, de um momento para outro, sem mesmo compreender bem por que, tudo espatifei. Quando Carlinhos partiu, pensei que não fosse me sentir tão só, sabia não amá-lo, mas desesperei-me, era insuportável tanta solidão.

Cristina de Queiroz, do conto: O Piano - em O Conto da Mulher Brasileira. Org. Edla van Steen. Ed. Global

SENTIR FALTA –

verbo intransitivo, invariável, singular. Sinônimo de falta de ar. Espectro, perseguição, obsessão. Mente perturbada pela presença constante de uma imagem, figura ou sensação. O mesmo que calafrio, sede, fome, transpiração. Falta da inspiração. Talvez um sim e um não, uma indecisão. Vontade de saber onde está, fazendo o quê e com quem. Ciúme, traição, dependência, necessidade, insônia, tesão. Conjuga bem com agonia, companhia, fantasia. Na primeira pessoa do plural não admite separação, rompimento. Risco de progressão, perigo, contaminação. Algo fatal, indenominável, fixação. Oxigênio, sem respiração. Pressão. Desespero. Início de paixão. Tempo que não passa. Pessoa que não aparece. Solidão.

Bianca Ramoneda, in: Só. Ed. Rocco

(Trecho de carta, sem data, esquecida entre as folhas de um relatório:

Nonnetta
[...] você é amável, educado, mas sempre distante, sempre na defensiva contra qualquer espécie de relacionamento que possa ou pareça implicar algum compromisso. E, entretanto, eu te amo da maneira mais desinteressada possível: jamais quis ou esperei receber qualquer coisa. Sua posição não me deslumbra, seu prestigio nada significa para mim. Gosto de você, apenas.

O que não consigo entender é a rapidez com que murcha e se deteriora uma emoção que parecia profunda. O que não consigo entender é o súbito e imprevisível fim de um entusiasmo que se mostrava imenso. Recuso-me a aceitá-lo como um farsante. Bem sei que tudo apodrece com o decorrer do tempo. Mas, frequentemente, a corrosão é gradativa, a não ser que outros fatores apressem o fim; o que não foi o caso, nem tempo houve para tanto. É inexplicável para mim...)

Ela jamais conseguiria entender. Inútil qualquer explicação, nem tentaria. Se para si próprio não conseguiria explicar, como iria fazê-lo para outra pessoa? Às vezes, em noites de insônia, procurava chegar às origens desse fastio, desse desencanto brusco e prematuro. Fazia mil conjecturas [...]

Anna Maria Martins, do conto: HD41 - em O Conto da Mulher Brasileira. Org. Edla van Steen. Ed. Global

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011



Toda fotografia aparenta mais felicidade do que o momento real em que foi tirada.

Bianca Ramoneda, in: Só. Ed. Rocco
Só Dez por Cento é Mentira
Há muitas maneiras sérias de não dizer nada, mas só a poesia é verdadeira.

Manoel de Barros