segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Apesar de


Não é raro, tropeço e caio. Às vezes, tombo feio de ralar o coração todinho.
Claro que dói, mas tem uma coisa: a minha fé continua em pé.

Ana Jácomo

domingo, 30 de janeiro de 2011

Minhas noites...

Vânia Medeiros
A noite/1

Não consigo dormir. Tenho uma mulher atravessada entre minhas pálpebras. Se pudesse, diria a ela que fosse embora; mas tenho uma mulher atravessada em minha garganta.

A noite/2

― Arranque-me, senhora, as roupas e as dúvidas. Dispa-me, dispa-me.

A noite/3

Eu adormeço as margens de uma mulher: eu adormeço as margens de um abismo.

A noite /4

Solto-me do abraço, saio as ruas. No céu, já clareando, desenha-se, finita, a lua. A lua tem duas noites de idade. Eu, uma.

Eduardo Galeano, in: O Livro dos Abraços. Tradução de Eric Nepomuceno. Ed. L&PM
Amores Imaginários
Por que se calam os amantes?, pergunto, e não são apenas o casal amoroso, mas quaisquer pessoas ligadas (ou supostamente ligadas) por afeto. Calam-se por não saberem o que e quando falar.

Falamos quando devíamos ter silenciado, e calamos quando a palavra teria sido essencial: mas a gente não sabia. Nisso reside um dos maiores dramas nas relações interpessoais. Pois alguém irá cobrar, talvez anos depois: “Aquela vez, naquele lugar, você me disse isso, e até hoje me dói”. A gente pensa, repensa, mas não lembra: “O que foi, quando foi? Eu jamais teria dito isso, sobretudo se ia te ferir.”

Mas o outro insiste na sua dor.

Lya Luft, in: Múltipla Escolha. Ed. Record

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Jazz

Vânia Medeiros
Ela tira os óculos e guarda uma mecha de cabelo atrás da orelha. Faz frio no estúdio. Pensa vagamente no sonho que teve à noite enquanto canta my toes just touched the water.
A melodia desliza pela sala e ele tem plena consciência de que perdeu o controle do tempo. A música de Norah Jones vai terminar, a noite vai terminar, na hora de dormir ele vai apagar o lustre e conseqüentemente seu reflexo no espelho vai morrer também.

O pai dela escuta música na sala (Norah Jones de novo, meu deus) e parece que não quer conversa. Ela pega uma bala na gaveta e volta para o quarto. Ao passar pelo corredor vê, no teto, uma lagartixa.

Suas pequeninas patas esverdeadas, quase translúcidas, grudam-se ao teto enquanto ela espreita um mosquito. Mas o inseto é mais rápido e sai voando pela janela aberta.

Lá fora, sob suas asas, a noite é translúcida, esverdeada, fria e doce. Parece uma melodia de jazz.

Adriana Lisboa, in: Caligrafias. Ed. Rocco

nós

O apartamento que montei para os nossos encontros era assim: nas paredes, cópias de bom gosto, um Branque, um Rouault, dois Picasso, um Miró e um Modigliani. O chão todo forrado, em grafite, aparelhos de som, discos (eruditos modernos, popular francês, folclórico espanhol, cantochão). Uma estante com livros (poemas, Sade, alguns eróticos, livros de arte). Uma geladeira. Todas as bebidas existentes. Um gravador, tão sensível que podia até captar a batida dos nossos corações apaixonados e onde, enquanto um esperava a chegada do outro, gravávamos a saudade que sentíamos, a angústia da espera, o desejo que nos consumia; e onde ainda registrávamos o som que fazíamos e as palavras que dizíamos enquanto amávamos na cama e no chão e na banheira, com água quente, sendo continuamente renovada, estimulando e acalmando ao mesmo tempo. Ficávamos horas, na banheira, beijando um o corpo molhado do outro, o gosto da água nas bocas, inventando posições de retempero e deleite.

Rubem Fonseca, in: A Coleira do Cão / 64 Contos de Rubem Fonseca. Ed. Companhia das Letras

domingo, 23 de janeiro de 2011

Partida

Partias gravemente;
meus olhos te seguiam.

Bem sei que se voltasses
não mais te quereria.

Entanto, ao partires,
meu peito arfava um pouco.

Talvez houvesse um cisco
no canto do meu olho.

Antonio Brasileiro, in: Antologia Poética


E o amor, afinal de contas , é o grilhão mais forte. O que aperta mais, e dura mais tempo.

Erica Jong, in: Medo de Voar. Ed. Nova Cultural

sábado, 22 de janeiro de 2011

[...] eu a conhecia de algum lugar. Ou devia...

Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças
Me sentia íntimo dela sem sequer saber seu nome. Não sabia se ela estava me vendo, se o meu olhar estava abrindo um buraco dentro dela como a sua presença abria em mim. Estava acontecendo algo maravilhoso, mas o incrível é que eu não me sentia exatamente feliz. Não entendia. As paredes giravam. Olhei pra fora. O sol despencava sobre as vidraças mas eu sentia frio. A vida tinha ficado um troço frágil de repente. Eu tremia. Vesti minha jaqueta. Não era um frio na pele. Estava com medo. Tive muito medo porque era uma forma de desespero. Totalmente novo. E violento. [...]

Fernando Bonassi, in: O Amor é Uma Dor Feliz. Ed. Moderna

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Faço quase nada. Comecei a procurar trabalho e começo de novo a me torturar, até que resolvo não fazer programas; então a liberdade resulta em nada e eu faço de novo programas e me revolto contra eles. Tenho lido o que me cai nas mãos. Caiu-me plenamente nas mãos Madame Bovary, que eu reli. Aproveitei a cena da morte para chorar todas as dores que eu tive e as que eu não tive. - Eu nunca tive propriamente o que se chama "ambiente" mas sempre tive alguns amigos.

Clarice Lispector, in: Clarice, de Benjamin Moser / Fragmento da carta para Lúcio Cardoso. Ed. Cosac Naify

O mistério Clariceano...

Clarice Lispector
Há uma grande curiosidade em torno de Clarice-gente. Ela circula muito pouco na área literária, foge aos programas de televisão e às tardes de autógrafo, e são pouquíssimas as pessoas que tiveram oportunidade de conversar com ela. "Clarice não existe" - dizem. "É pseudônimo de alguém que mora na Europa." "É uma mulher linda" - afirmam outros. "Não conheço, não" - diz um terceiro. "Mas acho que é homem. Ouvir falar que era um diplomata."

Clarice Lispector, in: Clarice, de Benjamin Moser. Ed. Cosac Naify

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Sylvia - Paixão além das Palavras

- Queria saber: depois que se é feliz o que acontece? O que vem depois? [...]
- Que ideia! Acho que não sei o que você quer dizer, que ideia! Faça a mesma pergunta com outras palavras...
- Ser feliz é para se conseguir o quê?

Clarice Lispector, in: Perto do Coração Selvagem. Ed. Rocco

paciência

cada dia
é mais um dia
e nada é
:
para sempre
mesmo que continue.

Líria Porto

Conversa sobre uma guerra antiga - trecho 9

Uma coisa eu acho que há:
tem gente que gosta de vida,
tem gente que não.
Mas uma pessoa que não gosta
uma hora pode pegar de gostar,
e o contrário também.
O mais comum é que o gostar
ou não gostar predomine ao largo
e se contrarie em pequenas horas.
Eu sou uma que gosta.
Que gasta mais tempo gostando.
Essa é que é minha sorte.

Raiça Bomfim

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011


É um momento de inquietação. Ela mantêm a cabeça baixa para que ele se aproxime mais. Mas ele não é capaz por falta de coragem. Ela se volta. E se afasta.

Do filme: Amor à Flor da Pele (Fa Yeung Nin Wa)
Direção: Wong Kar-Wai, 2000
Todos os relacionamentos são apenas riscos nas superfícies.

Do filme: A Última Festa (Mrs. Dalloway)
Direção: Marleen Gorris, 1997
Martha Barros
Quero a palavra que sirva na boca dos passarinhos.

Manoel de Barros
Nonnetta

[...] não sabia, não sabia que doeria tanto, que era tanto, que era muito mais do que se pode saber, ninguém pode saber um amor, entender um amor [...]

Martha Medeiros, in: Fora de Mim. Ed. Objetiva

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

O haver

Margarida Delgado
[...]
Resta esse constante esforço para caminhar dentro do labirinto
Esse eterno levantar-se depois de cada queda
Essa busca de equilíbrio no fio da navalha
Essa terrível coragem diante do grande medo, e esse medo
Infantil de ter pequenas coragens.

Vinícius de Moraes

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primavera
até a cadeira
olha pela janela.

 Alice Ruiz, in: Boa companhia: haicai. Ed. Companhia das Letras

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Lavoura Arcaica
O tempo, o tempo é versátil, o tempo faz diabruras, o tempo brincava comigo, o tempo se espreguiçava provocadoramente, era um tempo só de esperas, me guardando na casa velha por dias inteiros; era um tempo também de sobressaltos, me embaralhando ruídos, confundindo minhas antenas, me levando a ouvir claramente acenos imaginários, me despertando com a gravidade de um julgamento mais áspero, eu estou louco! E que saliva mais corrosiva a desse verbo, me lambendo de fantasias desesperadas, compondo máscaras terríveis na minha cara [...]

Raduan Nassar, in: Lavoura Arcaica. Ed. Companhia das Letras

sábado, 1 de janeiro de 2011

Pra dizer, um bilhete sobre a mesa . . .

Queridos,

Por motivos de saúde estou me ausentando do Reino. Me desculpem por começar o ano assim - com uma ausência.
Fiquem em paz. Um beijo em todos!

Jenifer,
Felicidade Clandestina.