sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Ano novo

Amanda Cass
Nesse fim de ano, Carlos, não vou lhe dedicar desejo algum, porque
tudo que te posso desejar é aquilo que me escapa à palavra.
Mas queria lhe dizer coisas à toa, pois de todo modo,
dizer é mais concreto.

Você já reparou, Carlos, que é a mesma noite que guarda os dois anos?
Pois se no meio dessa mesma noite não houver
sinos, fogos de artifício nem ninguém pra me avisar,
talvez eu não perceba que tudo mudou.

Fim de ano, Carlos, é igual a fim de hora, de dia, de mês...
E esse fim é só mais um dos muitos
que esse ano teve. Mas dessa vez, eu estarei de branco,
você de verde e estaremos prontos pra mais
esperança.

E quando o ano estiver por acabar, Carlos, vou achar que ele
passou tão rápido e vou lembrar do tanto que foi vivido...
(Parece até que faz mais ano que te conheci).
E depois, estarei mais velha, como estive ontem e anteontem.
(E esta ruga me surgiu desde abril).

Mas livre de qualquer coisa, meu amigo, lhe peço
que feche os olhos e sinta essa calma que lhe envio.
Eu também fecharei os meus e enquanto meu passo e meu pulso
estiverem marcando o compasso do tempo,
a ternura que me escorrer pelos cílios vai pingar uma estrela
nova em meio as muitas desse céu
sem fim...

Raiça Bomfim

Passagem do ano

O último dia do ano
não é o último dia do tempo.
Outros dias virão
e novas coxas e ventres te comunicarão o
[ calor da vida.
Beijarás bocas, rasgarás papéis,
farás viagens e tantas celebrações
de aniversário, formatura, promoção, glória,
[ doce morte com sinfonia e coral,
que o tempo ficará repleto e não ouvirás o
[ clamor,
os irreparáveis uivos
do lobo, na solidão.

O último dia do tempo
não é o último dia de tudo.
Fica sempre uma franja de vida
onde se sentam dois homens.
Um homem e seu contrário,
uma mulher e seu pé,
um corpo e sua memória,
um olho e seu brilho,
uma voz e seu eco,
e quem sabe até se Deus...

Recebe com simplicidade este presente do
[ acaso.
Mereceste viver mais um ano.
Desejarias viver sempre e esgotar a borra dos
[ séculos.
Teu pai morreu, teu avô também.
Em ti mesmo muita coisa já expirou, outras
[ espreitam a morte,
mas estás vivo. Ainda uma vez estás vivo,
e de copo na mão
esperas amanhecer.

O recurso de se embriagar.
O recurso da dança e do grito,
o recurso da bola colorida,
o recurso de Kant e da poesia,
todos eles... e nenhum resolve.

Surge a manhã de um novo ano.

As coisas estão limpas, ordenadas.
O corpo gasto renova-se em espuma.
Todos os sentidos alerta funcionam.
A boca está comendo vida.
A boca está entupida de vida.
A vida escorre da boca,
lambuza as mãos, a calçada.
A vida é gorda, oleosa, mortal, sub-reptícia.

Carlos Drummond de Andrade, in: A Rosa do Povo. Ed. Record

quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

- Pensei muito se viria aqui hoje. Me falaram que você estaria aqui. Até pensei em pegar o carro e dirigir até o Sul. Mas não... Ao invés, fui fazer compras. Eu comprei estas roupas. Fiquei lá fora no carro durante uma hora, pensando se deveria entrar ou não. Eu não sabia como me sentiria ou o que diria quando o visse.

Eu fui para o café... Quero que você saiba disso. Fui a um café... Pedi um suco e fiquei olhando as pessoas, escutando as conversas das mesas próximas, como fazíamos. No banheiro, chorei. Nunca tinha chorado em um lugar público. Um estranho me consolou. Eu sentia minhas pernas tão pesadas. Fiquei umas duas semanas de cama... Eu inventei uma gripe, isso se transformou em uma sinusite, e finalmente se tornou uma pneumonia...

Me lembro de um dia, um dia de merda, um dia de maio de merda. Eu pedi para minha mãe que ligasse para você. Eu não conseguia sair da cama, não parava de chorar. Falei muito séria com minha mãe: “Mamãe liga para ele”. Ela olhou para mim, só olhou-me e disse: “Não vamos ligar para ninguém”.

[...] Estaria mentindo se eu disser que não penso como minha vida teria sido. Como seria estar com você. Se teríamos filhos, se estaríamos juntos em uma tempestade de neve, ou se no verão viajaríamos para uma cidadezinha pequena. Ou coisas simples: comprar frutas, pagar as contas, comprar um presente.

Do filme: A Vida dos Peixes (La Vida de Los Peces)
Direção: Matias Bize, 2010

Sensibilidade

Deviantart
Ser sensível nesse mundo requer muita coragem. Muita. Todo dia. Esse jeito de ouvir além dos olhos, de ver além dos ouvidos, de sentir a textura do sentimento alheio tão clara no próprio coração e tantas vezes até doer ou sorrir junto com toda sinceridade. Essa sensação, de vez em quando, de ser estrangeiro e não saber falar o idioma local, de ser meio ET, uma espécie de sobrevivente de uma civilização extinta. Essa intensidade toda em tempo de ternura minguada. Esse amor tão vívido em terra em que a maioria parece se assustar mais com o afeto do que com a indelicadeza. Esse cuidado espontâneo com os outros.

Essa vontade tão pura de que ninguém sofra por nada. Esse melindre de ferir por saber, com nitidez, como dói se sentir ferido.

Ser sensível nesse mundo requer muita coragem. Muita. Todo dia. Essa saudade, que às vezes faz a alma marejar, de um lugar que não se sabe onde é, mas que existe, é claro que existe. Essa possibilidade de se experimentar a dor, quando a dor chega, com a mesma verdade com que se experimenta a alegria. Essa incapacidade de não se admirar com o encanto grandioso que também mora na sutileza. Essa vontade de espalhar buquês de sorrisos por aí, porque os sensíveis, por mais que chorem de vez em quando, não deixam adormecer a ideia de um mundo que possa acordar sorrindo. Pra toda gente. Pra todo ser. Pra toda vida.

Eu até já tentei ser diferente, por medo de doer, mas não tem jeito: só consigo ser igual a mim.

Ana Jácomo
- Mais uma vez a felicidade bateu em vão na minha porta.
- Por que você não respondeu?
- Eu estava surdo e agora estou doente.

Do filme: Pão e Tulipas (Pane e Tulipani)
Direção: Silvio Soldini
, 2010

Falar é mágico . . .

O mundo parece menos terrível porque você existe. Sinto que quero ficar com você pelo resto da minha vida. E isso tudo, as palpitações, os nervos, a dor, a felicidade e o medo.
Eu quero tocar você o tempo todo, quero cuidar de você [...]

Eu estou apaixonado.
Classicamente apaixonado!

Do filme: Minha Vida sem Mim (My Life Without Me)
Direção: Isabel Coixet, 2003

quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

é...

- Pensar que não viria fez meu corpo doer.
- Eu não vinha.
- Que bom que você veio.

Do filme: Minha Vida sem mim (My Life Without Me)
Direção: Isabel Coixet, 2003

.

Já notou que eu te amo ou você pensa que toda vez que eu ligo é por engano?

 Alice Ruiz
Só Dez Por Cento é Mentira
Que hei de fazer se de repente a manhã voltar?
Que hei de fazer?
— Dormir, talvez chorar.

Manoel de Barros

terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Ensolarada

Deviantart
Às vezes acho que meu coração me ocupa
tanto que faz meu olho brilhar. Mas quando
minhas pequenices vêm me tomar, passo
achar que é purpurina: brilho bonito, mas
forjado; serve só pra disfarçar.
Na dúvida, tô construindo um mega-foguete...
Vou pedir ao Sol que me deixe ser seu rastro.
Mas como minha engenharia é pouca e meu opaco
é persistente, não sei onde isso vai dar.

Por enquanto, vou me rasgando pra deixar meu
coração se bronzear...

Raiça Bomfim
Deviantart
[...] Não conseguia compreender como conseguira penetrar naquilo sem ter consciência e sem o menor policiamento: eu, que confiava nos meus processos, e que dizia sempre saber de tudo quanto fazia ou dizia. A vida era lenta e eu podia comandá-la. Essa crença fácil tinha me alimentado até o momento em que, deitado ali, no meio da manhã sem sol, olhos fixos no teto claro, suportava um cigarro na mão direita e uma ausência na mão esquerda. Seria sem sentido chorar, então chorei enquanto a chuva caía porque estava tão sozinho que o melhor a ser feito era qualquer coisa sem sentido. Durante algum tempo fiz coisas antigas como chorar e sentir saudade da maneira mais humana possível: fiz coisas antigas e humanas como se elas me solucionassem. Não solucionaram. Então fui penetrando de leve numa região esverdeada em direção a qualquer coisa como uma lembrança depois da qual não haveria depois. Era talvez uma coisa tão antiga e tão humana quanto qualquer outra, mas não tentei defini-la. Deixei que o verde se espalhasse e os olhos quase fechados e os ouvidos separassem do som os pingos da chuva batendo sobre os telhados de zinco uma voz que crescia numa história contada devagar como se eu ainda fosse menino e ainda houvesse tias solteironas pelos corredores contando histórias em dias de chuva e sonhos fritos em açucar e canela e manteiga.

Caio Fernando Abreu, in: O Ovo Apunhalado. Ed. Agir

segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

[...] eu estava era escuro por dentro, não conseguia sair da carne dos meus sentimentos.

Raduan Nassar, in: Lavoura Arcaica. Ed. Companhia das Letras

O diagnóstico e a terapêutica

O amor é uma das doenças mais bravas e contagiosas. Qualquer um reconhece os doentes dessa doença. Fundas olheiras delatam que jamais dormimos, despertos noite após noite pelos abraços, ou pela ausência de abraços, e padecemos febres devastadoras e sentimos uma irresistível necessidade de dizer estupidez. O amor pode ser provocado deixando cair um punhadinho de pó de me ame, como por descuido, no café ou na sopa ou na bebida. Pode ser provocado, mas não pode impedir. Não o impede nem a água benta, nem o pó de hóstia; tampouco o dente de alho, que nesse caso não serve para nada. O amor e surdo frente ao Verbo divino e ao esconjuro das bruxas. Não há decreto de governo que possa com ele, nem poção capaz de evitá-lo, embora as vivandeiras apregoem, nos mercados, infalíveis beberagens com garantia e tudo.

Eduardo Galeano, in: O Livro dos Abraços. Tradução de Eric Nepomuceno. Ed. L&PM

mini-conto

Nonnetta
Ele.
Ela.
Já.
Mas nem
estão
sabendo.

André Gonçalves, in: Coisas de Amor Largadas na Noite. Ed. Ideias Inc.

domingo, 26 de dezembro de 2010

New

Amanda Cass
Rasga as bordas da saia, e anda. A vida, por vezes, dança, tão nua, entre filós. E muda. Dos passos: caminha de costas pro tempo, escasso. Ramo de trigo entre os seios pra lembrar do que farta. Faz promessas em dia de lua, cheia. Faz colar de lentilhas. Borda de azul a saia branca, esse desejo de ter oceano nas ancas. Flores do campo nas mãos, passos firmes e lentos. Trovões rasgam o véu do tempo. Presentes passado e futuro. Relógio de sol. Im-pulsos. Risca em vermelhos e laranjas a parede branca descascada. Põe fogo-artifício sobre lençóis. Depois improvisa com bambus uma cruz. Acentua sobre as cinzas, as flores. Traça o sinal-da-cruz na fronte. Quarta-feira, cinzas. E lembra que sempre é possível re-começar. Nas mãos: nada, desejos: alguns de alma, e ela escreve areia ao redor das ruínas. Ergue um templo de palavras, sacras. Faz preces. Tece apreços. Lembra sem pudor até inflamar os olhos. Vibra a alma em sol sustenido com sétima. Não traça caminhos, só ascende às estrelas. E espera. O ano rebenta o tempo para deixar sua marca. E ela demarca em seus braços um tempo que não há de passar. Jamais.

Cecília Braga

dos sentires do tempo VI

Eva Armisen
aquela dor antiga
já nem dói tanto
e toda urgência
agora é calmaria
o tempo nos molda
e hoje
faz tempo bom
faz tempo
faz
de mim teu espelho.

Nydia Bonetti

Janelas

Em todas as janelas me debruço,
em todos os abismos
estendo uma corda
e caminho sobre o nada.
Também ando sobre as águas,
subo em nuvens,
galgo intermináveis escadas.
Abro todas as portas
e cavernas com um sopro
ou três palavras mágicas.
Mergulho em torvelinhos,
danço no meio do vento,
pulo dentro da tempestade.
Em cada encruzilhada me sento
e tento arrumar o destino,
estranho castelo de areia.

Roseana Murray, in: Recados do Corpo e da Alma

Caixinha mágica

Fabrico uma caixa mágica
para guardar o que não cabe
em nenhum lugar:
a minha sombra
em dias de muito sol,
o amarelo que sobra
do girassol,
um suspiro de beija-flor,
invisíveis lágrimas de amor.

Fabrico a caixa com vento,
palavras e desequilíbrio,
e para fechá-la
com tudo o que leva dentro,
basta uma gota de tempo.

O que é que você quer
esconder na minha caixa?

Roseana Murray

sábado, 25 de dezembro de 2010

Vânia Medeiros
Nem especialmente alegre ou triste se precisa estar. Ocorre como os chamados movimentos autônomos do corpo. Sem aviso me apanho cantando: "... Atestam-te os meus olhos rasos d'água a dor que a tua ausência me causou..." São preciosos registros, farelos de ouro, retalho de pano bom. Me levanto para guardar, botar no cofre, certamente em vão, têm natureza de nuvem, passam. Você olha, acha bonito, mas segurar não pode. Sofro por causa do meu espírito de colecionador-arqueólogo. Quero pôr o bonito numa caixa com chave para abrir de vez em quando e olhar. [...]

Adélia Prado, in: Manuscritos de Felipa. Ed. Record

[...] Ouvir dizer que certas pessoas vivem de acordo com um plano, sabem tudo o que vai acontecer com elas durante os dias, os meses, os anos. [...]

Rubem Fonseca, in: Os Prisioneiros/ 64 Contos de Rubem Fonseca. Ed. Companhia das Letras

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Poema de natal

Para isso fomos feitos:
Para lembrar e ser lembrados
Para chorar e fazer chorar
Para enterrar os nossos mortos —
Por isso temos braços longos para os adeuses
Mãos para colher o que foi dado
Dedos para cavar a terra.
Assim será nossa vida:
Uma tarde sempre a esquecer
Uma estrela a se apagar na treva
Um caminho entre dois túmulos —
Por isso precisamos velar
Falar baixo, pisar leve, ver
A noite dormir em silêncio.
Não há muito o que dizer:
Uma canção sobre um berço
Um verso, talvez de amor
Uma prece por quem se vai —
Mas que essa hora não esqueça
E por ela os nossos corações
Se deixem, graves e simples.
Pois para isso fomos feitos:
Para a esperança no milagre
Para a participação da poesia
Para ver a face da morte —
De repente nunca mais esperaremos...
Hoje a noite é jovem; da morte, apenas
Nascemos, imensamente.

Vinícius de Moraes, in: Antologia Poética. Ed. Companhia das Letras

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010


A alegria lhe subiu ao peito, encheu seu corpo de um frescor leve, algo como um banho de chuva num dia quente de verão.

Tatiana Salem Levy, in: A Chave da Casa. Ed. Record

Presente

Elena Odriozola
A vida é tão amorosamente surpreendente que, às vezes, no auge da nossa tristeza, ela aparece com um presente que faz diminuir o tamanhão todo da nossa dor.

Ele não cura, mas a gente lembra que a oportunidade de viver é algo bem maior, bem mais precioso, bem mais bonito, enquanto o desembrulha.

Ana Jácomo
Magritte
A outra pessoa é um enigma. E seus olhos são de estátua: cegos.

Clarice Lispector

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Ontem

Até hoje perplexo
ante o que murchou
e não eram pétalas.

De como este banco
não reteve forma,
cor ou lembrança.

Nem esta árvore
balança o galho
que balançava.

Tudo foi breve
e definitivo.
Eis está gravado

não no ar, em mim,
que por minha vez
escrevo, dissipo.

Carlos Drummond de Andrade, in: A Rosa do Povo. Ed. Record

Nosso tempo

II

Este é tempo de divisas,
tempo de gente cortada.
De mãos viajando sem braços,
obscenos gestos avulsos.
[...]

Carlos Drummond de Andrade, in: A Rosa do Povo. Ed. Record

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Poemeto

Amanda Cass
Não há o que temer
nem aplaudir.

O que somos é só
este fremir.

Parte de mim é bela.
Parte é aquela

vontade de fugir.

Antonio Brasileiro, in: Antologia Poética

domingo, 19 de dezembro de 2010

Miragem

o amor me veio um dia
como a estrela que caía
no meu céu de solidão

riscou-me de luz o peito
e depois perdeu-se
na infinita distância

só eu vi sua passagem
e conservo em silêncio
um pedido e a miragem.

Raiça Bomfim

ácido

uns ganham presentes
outros ausências.

Líria Porto

em lugar de carta

Vânia Medeiros
choro meus dedos, que cheiram os teus.
de saber tuas unhas de cor, salteadas.
fecho os olhos de insônia, ânsia, escuro.

que passar as noites ao teu lado,
saiba, foi perene verdade.

Nina Rizzi

sábado, 18 de dezembro de 2010

Deviantart
O que quero dizer é justamente o que estou dizendo. Não estou com pena de mim. Tá tudo bem. Tenho tomado banho, cortado as unhas, escovado os dentes, bebido leite. Meu coração continua batendo - taquicárdico, como sempre. Dá licença, Bob Dylan: it’s all right man, I’m just bleeding. Tá limpo. Sem ironias. Sem engano. Amanhã, depois, acontece de novo, não fecho nada, não fechamos nada, continuamos vivos e atrás da felicidade, a próxima vez vai ser ainda quem sabe mais celestial que desta, mais infernal também, pode ser, deixa pintar. Se tiver aprendido lições (amor é pedagógico?), até aproveito e não faço tanta besteira. Mas acho que amor não é cursinho pré-vestibular. Ninguém encontra seu nome no listão dos aprovados. A gente só fica assim. Parado olhando a medida do Bonfim no pulso esquerdo, lado do coração e pensando, pois é, vejam só, não me valeu.

Caio Fernando Abreu, in: Para sempre teu, Caio F., Org. Paula Dip / Revista Around, por volta de 1985. Ed. Record

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Pousa a mão na minha testa

Lilya Corneli
Não te doas do meu silêncio:
Estou cansado de todas as palavras.
Não sabes que te amo?
Pousa a mão na minha testa:
Captarás numa palpitação inefável
O sentido da única palavra essencial
- Amor.

Manuel Bandeira, in: Poesias Reunidas

Travessia

Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças
Vejo aquele tempo com as faces contrárias:
uma hora parece que é agora
e noutra está tudo muito longe.
O que sei é que eu havia aos borbotões.
Aquele tempo é a minha barra.
Passado aquilo, a lugar nenhum
se podia voltar ou chegar.
É uma agonia acalmada atravessar com isso.
O Amor... Nunca me ensinaram. Mas eu soube:
o Amor faz o oposto que Deus no princípio:
ele desfaz os céus e a terra, mistura tudo, confunde.
Até a Deus ele mistura: com O que queima.
Crava tudo em nosso corpo.
O Amor inventa o eterno. E põe na gente as margens.

Raiça Bomfim

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

um por um

É grande. É de uma grandeza imensa é de uma imensidão gravíssima é de uma grandeza definitiva algo irreversível. É grande como continentes como áfricas inteiras como as cores maiores nos mapas como o oriente extremo fica longe é de uma distância crua e canônica.

É grande quase impensável aqui.

É também gelado. É também daquele frio desconsolo que vem colado à amplitude murcha das solidões à concretude aguda das solidões. É frio de paisagem onde os brancos imorredouros vencem onde se estremece no espanto de cada passo (movimento) onde o abandono é tamanho que se fica que se prefere ficar imóvel mesmo imóvel completamente com medo dos gestos significarem um demais (cena de No?) pois sejam mesmo os menores parecem perigosíssimos os gestos adquirem dimensões imprevisíveis sobre este pano de fundo. E pode parecer sacrifício pode parecer mortificação flagelo engano imolação. Aqui. É frio de pólo é frio de cume nevado é frio que ameaça as extremidades do seu corpo põe em perigo cartilagens líquidos medulares sigilos gomos e toma até o caroço.

É frio máximo aqui.

E é também quente da quentura das febres de graus elevadíssimos de assustadores suores é inferno com o fogo dessagrado infinito lambendo oscilando e mesmo se divertindo (cínico?). É calor de atacamas são saaras são chamas num balé desguarnecido de senso que avançam deixando cinzas é incontrolável. É calor de sede implacável é a crônica completa do objeto se deformando ao sol do meio-dia eterno perpétuo desbotamento em definitivo a se desmanchar em capítulos longuíssimos em detalhes intermináveis e ainda adendos.

É calor de um desespero aqui.

Aqui os meus olhos escorrem meus olhos choram-se a si porque é escuro de adaga e triste. É também um silêncio conforme conformado é ausência de sons expressivos aquilo que faz ouvidos escutarem uma melodia flébil e cambaleante uma melodia fosca e toda desprotegida nua mesmo tosca e risível. Nenhum respirar se ouve aqui. Só o barulho da calha o barulho remoto de um cachorro longe só a água nos canos só o relógio da cozinha.

Aqui é a minha miséria. É o meu palco e o monólogo que decoro e desaprendo. É a minha cara no vidro. É a minha roupa suja.

Aqui é a solidão do cavalo na confusão da batalha sem seu cavaleiro, o destino da rolha daquela garrafa vazia dois dias depois da festa, a aflição do rato ao sair da toca e neva por todo o mundo e ele vê a neve implacável por tudo e não sabe o que terá para comer. A solidão as fotos de quem nunca mais existe e de quem ninguém mais lembra o nome e lá está naquela foto do álbum capa aveludada o rosto sorrindo eterno na pose destinada a um sempre. O pianista tocando no teatro de aluguel caríssimo onde só três cabeças a assistir o scherzo e a perfeição do staccato.

Aqui é a minha cama.

A minha cama é grande é desertíssima é minguante. Tem a grandeza que eu disse tem o frio que eu disse tem exatamente aquele (este) calor que eu quis dizer. Aqui é a minha história do corpo - páginas onde o meu prazer oco e insípido feito só com as mãos. Aqui a minha história do espírito páginas rasas (serão amassadas) registro de gritos invisíveis que não inauguram discurso nem próximos parágrafos e nem sequer um travessão. O despropósito dos espinhos. Aqui é a minha cama. É um espaço que desafia as leis da geometria é a equação complicadíssima que acaba dando sempre apenas um. Onde toda noite a mesma noite. A geografia recomeça o canto a capela se repete o relógio insiste e evidencia a eternidade dos segundos. Arena onde se depõe as armas os desejos de emergência inútil.

E eu cumpro a instância do iniciado que encontra segredos na excrescência aqui eu cumpro a prática de uma ressurreição: a cada noite eu trago um punhado de esmeraldas dálias ramos e orvalho, saldo melhor do dia, pra morrer de uma lenta morte morrida - bem aqui.

Luci Collin
quando achei que tinham acabado
todas as minhas ilusões
doeu demais
doeu rasgado

me disseram
não ligue não
o tempo há de curar
o teu passado

o tempo passou
e a dor
não

só aí
que eu
vi
que só faltava perder
essa daí.

Estrela Ruiz Leminski

.

não vai dar tempo
de viver outra vida
posso perder o trem
pegar a viagem errada
ficar parada
não muda nada
também
pode nunca chegar
a passagem de volta
e meia vamos dar.

 Alice Ruiz, in: Dois em um. Ed. Iluminuras

Coisas íntimas

Deviantart
Trouxe-te flores
e não estavas.

Que há de se fazer
com ternuras?

Antonio Brasileiro, in: Antologia Poética
A Vida dos Peixes
Há uma covardia em relação ao amor.

Vinícius de Moraes

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

O Fabuloso Destino de Amélie Poulain
[...] Quando a gente está maluco por alguém, nunca se sabe pra onde as falas vão. Tinha a impressão de ouvir muitos sentidos no que ela dizia. Sentidos que iam ao encontro dos meus sentimentos, mas não sabia muito bem...

Não sabia muito bem o que estava acontecendo, mas para mim era claríssimo que se tratava de um troço frágil. Muito frágil. Qualquer movimento brusco a coisa pode rachar e cair em pedacinhos no chão. Não sabia o que era, mas não queria perder, não queria quebrar.

Fernando Bonassi, in: O Amor é Uma Dor Feliz. Ed. Moderna

capítulo 40


- Liguei porque tava com saudade.
- Eu também tô. Queria que você estivesse aqui.
- Eu também.
- Ainda não dá.
- Tudo bem...
- Você tá chateado?
- Eu não.




***

- Vou contar até três.
- Tá certo.
- Um, dois, três.
- ...
- Você ainda tá aí.
- Tô.
- Era pra desligar.
- Vamos de novo...

***

- Eu tenho medo.
- Medo do quê, ora?
- Medo da gente.
- Mas eu não vou te fazer nada.
- Não sei...

***

- Ainda bem que tem dias que eu volto pra casa com o seu cheirinho.
- Eu não lavo as mãos.
- Você é louco.
- Você é gostosa.

***

- Passa aqui pra mim...
- Aqui?
- Isso, obrigada.
- E aqui?
- Aí eu alcanço.
- Mas é bom!
- Então passa... Ui!

***

- Comprei isso pra você.
- É lindo!
- Quando você estiver longe, ou quando a gente estiver perto, no meio das outras pessoas, isso quer dizer “a gente”.
- Ficou bom?
- Ficou minha.

***

- Isso não vai durar...
- O quê?
- Isso tudo, a gente...
- Vai, vai sim, porra!
- Não vai, não.

***

- Que é que você tá pensando?
- Eu?! Nada.
- Me ensina?
- O quê?
- Pensar nada...

***

- Desce mais... Agora sobe, mais, mais...
- Aqui?
- Isso, isso, isso!

***

- Eu tenho tanto medo!
- Pára com isso.

Fernando Bonassi, in: O Amor é Uma Dor Feliz. Ed. Moderna
Deviantart
Solidão? O que acontece é que a gente procura os outros para se livrar de si mesma. A intolerável companhia que eu me faço. Preciso dos outros para não chegar àquele ponto altamente intolerável do encontro comigo. Eu sou exatamente: zero. E tanto se me dá.
Conselho: fique de vez em quando sozinho, senão você será submergido. Até o amor excessivo dos outros pode submergir uma pessoa.

Clarice Lispector, in: Clarice Lispector: Esboço para Um Possível Retrato, de Olga Borelli. Ed. Nova Fronteira

Tudo que somos

Tudo que somos,
pouco sabemos.

Um poço imenso
cheio de sonos.

Quando choramos,
não nos perdemos.

Viver é um sonho,
não esqueçamos.

Viver é a sombra,
o assombro, o apenas.

/ Tão fragéis somos!
Fragéis e imensos.

Antonio Brasileiro, in: Antologia Poética