domingo, 31 de outubro de 2010

Cuidado


O cuidado é um modo de expressão espontâneo, irresistível, inevitável, do amor.
Tentar reter sua fluidez é como tentar amordaçar um raio de sol num dia de céu azul macio.

Ana Jácomo

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Nosso tempo

Salvador Dali
I

Este é tempo de partido,
tempo de homens partidos.

Em vão percorremos volumes,
viajamos e nos colorimos.
A hora pressentida esmigalha-se em pó na rua.
Os homens pedem carne. Fogo. Sapatos.
As leis não bastam. Os lírios não nascem
da lei. Meu nome é tumulto, e escreve-se
na pedra

Visito os fatos, não te encontro.
Onde te ocultas, precária síntese,
penhor de meu sono, luz
dormindo acesa na varanda?
Miúdas certezas de empréstimos, nenhum beijo
sobe ao ombro para contar-me
a cidade dos homens completos.

Calo-me, espero, decrifo.
As coisas talvez melhorem.
São tão fortes as coisas!

Mas eu não sou as coisas e me revolto.
Tenho palavras em mim buscando canal,
são roucas e duras,
irritadas, enérgicas,
comprimidas há tanto tempo,
perderam o sentido, apenas querem explodir.

Carlos Drummond de Andrade, in: A Rosa do Povo. Ed. Record

não fim

parto do princípio
que partir é o principio
e chegar é recomeço
[... não fim

Nydia Bonetti

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Manual de Amores e Equívocos Assemelhados

Tem sido assim desde o princípio: a história dos meus dias, a história da minha vida, cada história que posso contar em si outra história, inenarrável. Um tormento, porque tenho a esperança de que façam sentido as palavras e sentenças que vou justapondo - preto no branco, a trama visível - mesmo que a mim mesmo escape o nexo da história que conto e o sentido daquela que não posso contar. Como a vida, os fatos são fragmentários, a coerência, suspeita. As palavras e as sentenças, desta forma, no máximo podem flutuar acima do que quero - ou do que pretendia - dizer.
"Eu queria contar uma história de amor".

Cíntia Moscovich, in: Duas Iguais. Ed. Record

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

definitivo

foi triste
quando partiste
levaste a estrada.

Líria Porto

A comunicação muda

Encontros e Desencontros

O que nos salva da solidão é a solidão de cada um dos outros. Às vezes, quando duas pessoas estão juntas, apesar de falarem, o que elas comunicam silenciosamente uma à outra é o sentimento de solidão.

Clarice Lispector, in: A Descoberta do Mundo / Crônica de 10/02/1970. Ed. Rocco

terça-feira, 26 de outubro de 2010

dos sentires do tempo V

às vezes penso que tudo já foi dito
[... me calo
sempre tão breve meu silêncio
o tempo exato de um espanto
ou de um espasmo
o tempo de qualquer existir
ou extinguir
o tempo aflito do estalo da língua
no céu da boca
o tempo de sentir
[... o tempo.

Nydia Bonetti

Over

Eu andava com os íntimos
expostos, o tanque transbordando
de água limpa e de água suja.
Eu nunca era de um tamanho
comportado.
Muita alegre ou muito triste,
a vida sempre me excedia.

Raiça Bomfim

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

- Quero contar-te uma história
Vamos passear naquelas ilhas decotadas?
Faz de conta que há luar.

[...]

Raul Bopp, in: Os Cem Melhores Poemas Brasileiros do Século. Org. Italo Moriconi. Ed. Objetiva

Em 1963,

Elena Odriozola
“Sobre catequéses, eu garanto(!) que, mesmo que não duremos, vou te dar coisas que farão parte de você até o fim. Retribua-me na mesma paga, por favor; não espero menos de você”.

Daniela Lima

sábado, 23 de outubro de 2010

Fotografia

Sentada aqui, desde não sei quando, olho à esquerda, olho em frente, em cima, olho quase tonta de não encontrar, olham também da mesa ao lado, já perguntei as horas duas vezes, não, três, o cara respondeu direito da primeira vez, da segunda me olhou oblíquo, na terceira comentou qualquer coisa com a mulher, deve ter dito coitada, levou o bolo, me dá nojo, não exatamente nojo, que é uma coisa de estômago que se derrama viscosa pelos outros, atingindo tudo em torno, esverdeada, não, nem ódio, que é grande demais, não cabe dentro de mim, da minha arquitetura frágil de mulher magra, as pernas finas suportando não sei como os ombros e o tamanho dos olhos, o ódio seria demais, eu tropeçaria toda atrapalhada com meu próprio peso, a raiva é mais mansa e eu me sinto capaz de suportá-la, a raiva cabe em mim porque não permanece, e as coisas só adentram em mim quando podem escapar em seguida, eu sufoco, sei bem, sufoco e quase esmago as coisas, as gentes também, apenas ultrapassam numa, rapidez de quem não olha para trás e vai seguindo em frente, fraca demais para ser barreira, transparente, porosa feito cortina de fumaça, não, não exatamente, a fumaça ao menos faz os olhos ficarem vermelhos, provoca tosse, eu não consigo abalar ninguém, um plástico, material sintético, teve pena certa, eu não quero que tenham pena de mim, dói mais que tudo os outros olhando de cima, constatando a fraqueza nossa, a nossa inferioridade, quero que me olhem do mesmo plano, se ele quer comentar alguma coisa com sua companheira que diga lembra? uma vez que eu também esperei por você assim, você não vinha, não vinha nunca, eu fumava, eu bebia, eu esperava e você não vinha, mas acabou vindo e está aqui, agora, vendo uma moça que espera como eu esperei você naquele dia, parece que daqui a pouco ele vai me dizer as horas sem eu perguntar, não como se estivesse se dobrando num jeito de amigo, mas como se me agredisse lançando a espera inútil no meu rosto, esqueci completamente as horas, não sei se estou aqui desde ontem, desde sempre, parece que já choveu, já fez vento e garoa, que o amarelo das folhas sobre a calçada é do outono passado, não deste, parece que já é inverno gelando agente por dentro, que o verão pesa nas pálpebras tornando lentos os gestos, dessa preguiça no andar como se a cada instante agente morresse, mas esse salto por dentro é primavera impulsionando para um verde renascido, garoa morna, fina, quieta nesse jeito de colocar os olhos longe, um longe despido de barreiras, ah essa toalha azul axadrezada de branco, o círculo úmido do copo onde uma mosca se debate, a minha bolsa, o maço quase vazio de cigarros, duas garrafas vazias de coca-cola, o cinzeiro cheio de pontas, essa música indefinida machucando por dentro, como se estivesse desde sempre aqui, escorregando devagar, as notas feito pingos de chuva na vidraça abaixada, vontade de dizer um palavrão, esses dois me olhando, assim, gozando, rindo da minha espera, mesmo o garçom de paletó branco, um dente de ouro na frente, vai escurecendo, trinta e duas tábuas no teto, gente saindo, passando, tivesse ao menos um jornal para disfarçar, não adianta, que horas serão, meu Deus, não quero perguntar outra vez, vai ficar muito evidente, já mudei mil vezes de posição na cadeira, não encontro o jeito, seria necessário um jeito específico de esperar, é medo o que eu tenho? não sei, de repente me encolho toda; um movimento interior de defesa eriçado por um sentimento que desconheço, da mesa ao lado eles levantam, vão saindo, indo embora lentos, o garçom desaparece ao lado do balcão, começa a anoitecer, todos os relógios estão parados, não sei se é ontem, se hoje ou amanhã, se é sempre, se nunca mais, estou solta aqui, completamente só, não há relógios, não há relógios e o tempo avança liberto, sem fronteiras nem limitações, uma bola de arame farpado, o sentimento vai se adensando em mim, transborda dos olhos, das mãos, sai pela boca em forma de fumaça, sinto meus lábios ressequidos, machucados, o gosto amargo, a bola cresce estendendo tentáculos, no meio dela eu me encolho cada vez mais, presa num círculo que cresce até explodir na vontade contida de gritar bem alto, bem fundo, rouca, exausta, correndo, esmagando as folhas de um outro outono, de um outro tempo, ainda este, o tempo, o outono, a tarde, o mundo, a esfera, a espera em que estou para sempre presa.

Caio Fernando Abreu, in: O Inventário do Ir-remediável. Ed. Sulina

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Chora no meu coração, como chove sobre a cidade.

Paul Verlaine

Canção da voz em mim

O poema abre suas câmaras de sombra:
é o tempo secreto.
Vai brotar agora mesmo a palavra exata,
a chave da minha ideia,
a moldura de minha alma desencontrada.
Não sei a forma das palavras
nem o ritmo dos sons, mas o que tenho a dizer
quer nascer de mim e se retorce.

Sento-me diante do silêncio
como junto de meus mais belos sonhos:
meus pés, minhas mãos, os meus cabelos
estão enredados nessa teia.
Quero sair, repousar e esquecer.

Mas o poema insiste
com a estranha sedução da minha infância.

Lya Luft, in: Secreta Mirada. Ed. Mandarim

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Lágrima:

1. saudade na forma líquida; 2. mistura de água do mar com alma moída; 3. secreção aquosa expelida através dos canais lacrimais quando se espreme o coração; 4. felicidade que escorre pela face; 5. estrela cadente que despenca do céu dos olhos de quem ama; 6. motivo da existência de lenços brancos; 7. resultado da fusão de sentimentos contraditórios quando submetidos a altas temperaturas; 8. nome comumente dado ao fim de um romance; 9. momento que antecede o adeus; 10. pedaço de ontem; 11. antônimo de desprezo; 12. matéria-prima das jujubas; 13. grande inspiração dos poetas; 14. fado de Amália Rodrigues; 15. na Europa, folha que cai da árvore quando chega o outono; 16. na infância, associada ao berro, alarme de fome; 17. na velhice, fome de colo; 18. névoa úmida que cobre o mundo quando chove dentro da gente. (Ex.: "Não, isso não é lágrima, não. É que a felicidade virou mar dentro de mim e a maré acabou de subir".)

André Gonçalves, in: Coisas de Amor Largadas na Noite. Ed. Ideias Inc.

Singularidade

Poderia ser descrita por Balzac. Palavra-por-palavra: expressão. Os dias passam em espiral e ela se fecha em ciclos. A vida sempre foi esse espelho côncavo diante do qual o ser se esgota em busca da melhor posição subjetiva. O ser inteiro reduzido a ponto-e-vírgula só para depois refazer-se. Tão mais xamânico. Ela escreve como se jogasse runas. Cada caractere sussura segredos. Escrita-oráculo: escreve para responder. Nas noites, sincronicidade tem astúcia de vagalume. Amanhecer pode ser aleatório. Ou quando um homem vislumbra um texto na poeira cósmica. Docemente incompreensível. Como usar braille para orvalhos. Ou costurar nebulosas em esqueletos de corais. Dia um: o homem encontrou no seu peito reverberação de concha.
Toda interrogação cede a ponto de anzol. Silêncio. A palavra, isca.

Cecília Braga

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Renúncia

Guermante
Era tudo tão difícil, tão difícil, que, exausta, eu desisti.

Isso não quer dizer que eu deixei de amar. Isso quer dizer que eu desisti de sofrer. E, quem sabe, também, de causar sofrimento.

Ana Jácomo

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Saudação da saudade

Amanda Cass
minha saudade
saúda tua ida
mesmo sabendo
que uma vinda
só é possível
noutra vida

aqui, no reino
do escuro
e do silêncio
minha saudade
absurda e muda
procura às cegas
te trazer à luz

ali, onde
nem mesmo você
sabe mais
talvez, enfim
nos espere
o esquecimento

aí, ainda assim
minha saudade
te saúda
e se despede
de mim.

Alice Ruiz

Cantar

Deviantart
Cantar de beira de rio:
água que bate na pedra,
pedra que não dá resposta.

Noite que vem por acaso,
trazendo nos lábios negros
o sonho de que se gosta.

Pensamento do caminho
pensando o rosto da flor
que pode vir, mas não vem.

Passam luas - muito longe,
estrelas - muito impossíveis,
nuvens sem nada, também.

Cantar de beira de rio:
o mundo coube nos olhos,
todo cheio, mas vazio.

A água subiu pelo campo,
mas o campo era tão triste...
Ai!
Cantar de beira de rio.

Cecília Meireles, in: Viagem / Antologia Poética. Ed. Nova Fronteira

domingo, 17 de outubro de 2010

. . .

Lilya Corneli
inventei teus olhos
e mergulhei

agora me afogo

não encontro a saída
não encontro

dos olhos que inventei.

Nydia Bonetti

E amanhã é domingo

Bom domingo para vocês. Segunda-feira é um dia mais difícil porque é sempre a tentativa do começo de vida nova. Façamos cada domingo de noite um réveillon modesto, pois se meia-noite de domingo não é começo de Ano Novo é começo de semana nova, o que significa fazer planos e fabricar sonhos. Meus planos se resumem, para esta semana nova, em arrumar finalmente meus papéis, já que a governanta eu não vou ter mesmo. Quanto aos sonhos, desculpem, guardo-os para mim, como vocês guardam, com o olhar pensativo, de quem tem direito, os próprios.


Clarice Lispector, in: A Descoberta do Mundo / Crônica de 08/06/1968. Ed. Rocco

por decreto

Guermante
tão mais inúteis quanto mais se sucedem
ensolaradas e mudas são as manhãs
de domingo
eu finjo que não te espero
finges tu não nos saber

e a vida segue
a olhos vistos se adelgaça perde o viço
empalidece
sem que haja em toda a medicina uma única
maneira — poção ventosa ou vacina —
que a possa socorrer

exceto talvez abolir — por decreto — de uma
vez por todas todas elas
as mudas e claras e azuis e inúteis
manhãs de domingo.

Márcia Maia

sábado, 16 de outubro de 2010

a hora antiga

era como um amanhecer
e anoitecia
canteiros de estrelas e tulipas
amarelas meio ao cheiro novo dos jasmins

parecia primavera e era inverno

— era a felicidade —

e eu pensava que era só o seu início.

Márcia Maia

Fidelidade

Park Catia Chien
Quanto a mim, continuo a ler Monteiro Lobato. Ele deu iluminação de alegria a muita infância infeliz. Nos momentos difícies de agora, sinto um desamparo infantil, e Monteiro Lobato me traz luz.

Clarice Lispector, in: A Descoberta do Mundo / Crônica de 12/10/1968. Ed. Rocco

Estas areias pesadas são linguagem

O último presente que você me deu foi um livro da Ana Cristina César. Comprou dois. Um pra mim e um pra ter. E fizemos como sempre fazíamos. Abrimos lá o livro num café e lemos um poema. Agora eu fico lembrando tudo isso e me sentindo meio estúpida.
De não ter percebido que eram sempre a primeira e última vez aqueles momentos todos.
Fico me sentindo insensível por ter me distraído por uns instantes. Achando que tudo estava ainda por acontecer. E que nossa vida — a grande vida — estava só por começar. Vou à estante. Pego o livro. Não sei mais qual foi o poema. Perdi-o. Perdi a entonação, talvez apressada (tentando acertar), que usei para ler o poema. Enquanto você fumava um Marlboro vermelho. Orquestrando com o olhar firme as palavras que se diluíam na fumaça do seu sopro. Tentando sacar, talvez, por que essa moça Ana Cristina César foi essa poeta Ana Cristina César. O cheiro do café sempre dizia Manuel Bandeira. Àquele momento, nós ali, lendo "antigos e soltos". Lembrar é mais triste que escrever um poema que será esquecido.

Assionara Souza

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

.

Esses poemas, mais que quaisquer outros, estão cheios de noites e madrugadas adentro. Cheios de uma dor tão elevada que é capaz de nos fazer rir, apesar de tudo. Cheios de dias na vida de uma luz. São poemas de vitalidade, apesar do adeus...

 Alice Ruiz

imensidão

no azul a liberdade
de voar como se queira
mudar de forma lugar
recortar bordas e beiras
trovejar soltar faísca
permitir-se o arco-íris
o sol as nuvens as pipas
os aviões pára-quedas
as asas deltas
delícias.

Líria Porto

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Em busca do outro

Deviantart
Não é à toa que entendo os que buscam caminho. Como busquei arduamente o meu! E como hoje busco com sofreguidão e aspereza o meu melhor modo de ser, o meu atalho, já que não ouso mais falar em caminho. Eu que tinha querido. O Caminho, com letra maiúscula, hoje me agarro ferozmente à procura de um modo de andar, de um passo certo. Mas o atalho com sombras refrescantes e reflexo de luz entre as árvores, o atalho onde eu seja finalmente eu, isso não encontrei. Mas sei de uma coisa: meu caminho não sou eu, é outro, é os outros. Quando eu puder sentir plenamente o outro, estarei salva e pensarei: eis o meu porto de chegada.

Clarice Lispector, in: A Descoberta do Mundo / Crônica de 20/07/196. Ed. Rocco

Medo do desconhecido

Então isso era a felicidade. E por assim dizer sem motivo. De início se sentiu vazia. Depois os olhos ficaram úmidos: era felicidade, mas como sou mortal, como o amor pelo mundo me transcende. O amor pela vida mortal a assassinava docemente, aos poucos. E o que é que eu faço? Que faço da felicidade? Que faço dessa paz estranha e aguda, que já está começando a me doer como uma angústia, como um grande silêncio? A quem dou minha felicidade, que já está começando a me rasgar um pouco e me assusta? Não, não quero ser feliz. Prefiro a mediocridade. Ah, milhares de pessoas não têm coragem de pelo menos prolongar-se um pouco mais nessa coisa desconhecida que é sentir-se feliz, e preferem a mediocridade.

Clarice Lispector, in: A Descoberta do Mundo / Crônica de 7/10/1976. Ed. Rocco

terça-feira, 12 de outubro de 2010

A Nair Abreu

Sampa, 11.8.78

Querida mãe, tô sem tempo pruma carta. Mas tá tudo bem. Comecei hoje a fazer psicodrama, tô contente. Olhe, por favor, não se preocupe com o $. Mesmo. Tá tudo bem. Tô feliz com os 30: acho que fiz tudo do jeito melhor, meio torto, talvez, mas tenho tentado da maneira mais bonita que sei. Até uma carta, vai outro poema daquela mineira, a Adélia Prado, que eu já tinha mandado um pra senhora.
Pense nele quando a senhora tiver muitos problemas. E se poupe.

ENSINAMENTO
Minha mãe achava estudo
a coisa mais fina do mundo.
Não é.
A coisa mais fina do mundo é o sentimento.
Aquele dia de noite, o pai fazendo serão,
ela falou comigo:
“Coitado, até essa hora no serviço pesado”
Arrumou pão e café, deixou tacho no fogo com água quente.
Não me falou em amor.
Essa palavra de luxo.

Terminei a peça teatral que eu vinha escrevendo há dois anos. Chama- se Zona contaminada. Voltei a escrever! Não vou parar nunca, por mais inútil que seja (e talvez não seja). Beijos pra todos. Seu filho e amigo

Caio

PS — Mudou o número do telefone daqui: 64-76-54

Caio Fernando Abreu, in: O Essencial da Década de 70. Ed. Agir

...

Vazia. Vazia de palavras. Uma imensidão vazia de palavras. Silêncio de palavras. Não, silêncio não. Silêncio não era feito de palavras, não continha palavras, não reconhecia palavras. Era vazia de tudo. Menos do pensamento de estar vazia.

Mas não só isso. Era mais. Era vazia do tamanho do mundo de palavras. Um mundo feito de palavras vazias de palavras. Seca de palavras. Seca.
E a solidão ruminando cheias.

Ana Peluso

versos de circunstância

Deviantart
há dias em que sou frágil
como um castelo de cartas

noutros mar me liquefaço
e espuma despedaço-me aos pés
do rochedo que fui
e já não sou

há dias em que sou frágil
como um castelo de cartas

de amor.

Márcia Maia

intuition

Nonnetta
Sempre que eu começava a gostar de alguém, alguma coisa me dizia pra deixar os esforços de lado.

O tal amor não vale a pena. Não vá às penas, babe - dizia minha intuição aguçada.

Todas as possibilidades de felicidade ficaram em algum canto empoeirado do passado. Desde então, tornei-me viajante do tempo e as palavras não me alcançam mais. Sei, antes de qualquer indício, quando algo vai dar errado. Aprendi a enxergar o que existe por trás das aparências, além do que se mostra.

Não me diga o que fazer, não tente me convencer. Tenho o sexto sentido de almas mudas.

Por isso, meu bem, não diga nada.

Aprenda a se fazer satisfeito com o que pode sentir.

Samantha Abreu
Nada como o primeiro segundo amor
Mãos dadas espremidas
Caras de cansados

Nada como tentar amar daquele jeito
Procurando os restos
dos corações mastigados

Nada como viver tudo de novo
Histórias meio esquecidas
Quase ciúme de tudo passado

Nada como acreditar que agora sim
sem tanta ilusão, sem tanta sede
sem tanto medo, sem tanta fé

Nada como deixar tudo ser
e o amor ter o tempo
que só o tempo quer.

Estrela Ruiz Leminski

Os sensíveis são simultaneamente mais infelizes e felizes que os outros.

Clarice Lispector, in: do Conto Gertrudes pede um Conselho / A Bela e a Fera. Ed. Rocco

Solilóquio

que falta me faz
um ocaso
com pano de fundo
ouro e púrpura
um esvair raso
em cenário
espelho e prata
faltam adereços
branco-espuma
e um denso manto
envolvendo o palco
onde, à toa, atuo

no fundo
falta alga no contexto
alguma água salgada
refletindo um doce texto

e nessa peça vaga
falta a sensação
[insana]
de mergulhar em brasa

falta
a tua ação
em cena.

Valéria Tarelho

não há palavra que cante
imagem que explique
lágrima que traduza

viola que chore
filósofo que entenda

não há flor que aflore
droga que expanda

perfume que seduza
beijo que amorne

não há sono que repare
água que permeie
sôpro que perdure

meu sonho
seu medo

meu desejo
seu destino

meu amor
seu silêncio.

Zoe de Camaris
Brilho de Uma Paixão
Que homem és tu, assim oculto pela noite, que surpreendes de tal modo meus segredos?

William Shakespeare, in: Romeu e Julieta. Ed. L&PM

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

De fato, nos últimos tempos [...] não passava nada bem. Ora sentia uma inquietação sem nome, ora uma calma exagerada e repentina. Tinha frequentemente vontade de chorar, o que em geral se reduzia à vontade apenas, como se a crise se completasse no desejo. Uns dias, cheia de tédio, enevada e triste. Outros, lânguida como uma gata, embriagando-se com os menores acontecimentos. Uma folha caindo, um grito de criança, e pensava: mais um momento e não suportarei tanta felicidade. E realmente não a suportava, embora não soubesse propriamente em que consistia essa felicidade. Caía num choro abafado, aliviando-se, com a impressão confusa de que se entregava, a não sei quem e não sei de que forma.

Clarice Lispector, in: do Conto Gertrudes pede um Conselho / A Bela e a Fera. Ed. Rocco

Mini-conto

Amanda Cass
Quando finalmente
conseguiram arrombar a
porta do quarto, tudo que
encontraram foi uma
pequena poça de água
salgada ao pé da cama e
um bilhete amassado:
- Desculpe. Vai ser melhor para nós.

André Gonçalves, in: Coisas de Amor Largadas na Noite. Ed. Ideias Inc.

véspera

Alaya Gadeh
espero
ainda
ver
da tua
mão
brotar
a flor.

Nydia Bonetti
[...] Escrevo por não ter nada a fazer no mundo: sobrei e não há lugar para mim na terra dos homens. Escrevo porque sou um desesperado e estou cansado, não suporto mais a rotina de me ser e se não fosse a sempre novidade que é escrever, eu me morreria simbolicamente todos os dias. Mas preparado estou para sair discretamente pela saída da porta dos fundos. Experimentei quase tudo, inclusive a paixão e o seu desespero. E agora só quereria ter o que eu tivesse sido e não fui.

Clarice Lispector, in: A Hora da Estrela. Ed. Rocco

domingo, 10 de outubro de 2010

Estações

Brilho de Uma Paixão
Do corpo de meu amor
exala um cheiro bem forte.

Será a primavera nascendo?

Cacaso, in: Beijo na Boca. Ed. 7 Letras

Bizarre love triangle

Amanda Cass
É sempre sobre o exercício da aceitação: deixe-os ir, deixe-se esvaziar. Somos ocos afinal. Passamos a vida procurando algo que nos preencha, mas este preenchimento é sempre sazonal. Não adianta negar a própria natureza: somos como as árvores que perdem as folhas ou os rios que secam. É impossível lutar contra o poder de mobilidade do mundo – e dos sentimentos. “tudo aceitar, o que vem e o que foge”; o que vive e o que morre.

E estamos sempre morrendo.

Mas é que estou exausta, meu amor. Sinto vontade de trancar portas e janelas; de construir barragens, nem que seja para ter a falsa sensação de que posso controlar a (nossa) natureza. Quero esticar os braços e colecionar estrelas como se fossem conchas. Quero realizar os meus sonhos. Quero despertar. Quero me deixar preencher pelas mesmas coisas e pessoas. De novo,

de novo
e
de novo.

Daniela Lima
Ontem fiquei pensando nisso, no amor, nessa insistência no amor, como se o amor pudesse nos salvar de tudo, ou ao menos de alguma coisa, como se o amor pudesse nos salvar do ódio, da loucura e até do desejo. Quem será que inventou isso? Se nem mesmo do amor o amor nos salvaria.

Carola Saavedra, in: Flores Azuis. Ed. Companhia das Letras

Tenho fome de me tornar em tudo que não sou tenho fome de fiction ficciones fictionários tenho fome das fricções de ser contra ser tudo que não sou ser de encontro a outro ser tenho fome do abraço de me tornar o outro em tudo que não sou me tornar o outro em tudo me tornar o outro a outra doutro doutra em tudo em tudo que não sou me tornar o outro [...]

Waly Salomão, in: Mel do Melhor. Ed. Rocco

as coisas mais incríveis acontecem lá no fundo.

abriu as janelas e as portas também.
deixou a luz entrar
e lavar tudo aquilo que andava frio demais.
é que agora,
ela não queria mais guardar.

Renata Carneiro
Se houver um tempo de retorno,
eu volto.
Subirei, empurrando a alma
com meu sangue
por labirintos e paradoxos
- até inundar novamente o coração.

(Terei, quem sabe, o mesmo ardor
de antigamente).

Lya Luft, in: Mulher no Palco. Ed. Salamandra

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Florescimento

Encontros preciosos não são necessariamente os que nos trazem jardins já floridos.

São, um bocado de vezes, aqueles que nos ofertam mudas.

Ana Jácomo

sábado, 2 de outubro de 2010

Miudezas

Tinha um jeito singular de fechar os olhos quando experimentava emoção bonita, coisa de segundos e coisa imensa. Era como se os olhos quisessem segurar a lindeza do instante um bocadinho, o suficiente para levá-lo até o lugar onde o seu sabor nunca mais poderia ser perdido.

Eu via, olhos do coração abertos, e nunca mais perdi de vista o sabor desse detalhe. Porque quem ama vê miudezas com olhar suficiente pra nunca mais se perderem.

Ana Jácomo