quarta-feira, 30 de junho de 2010

Presente

Não sei muita coisa sobre mim porque raríssimas coisas que me dizem respeito permanecem inalteradas. Quando acho que sei, eu congelo, e me torno rígida, e resisto à fluidez, e atrapalho o fluxo do mar da vida, e quase morro pelo esforço inútil de tentar amarrar as ondas. É quando menos sei que mais evaporo, e me transformo em nuvens de ricas possibilidades que viram a chuva capaz de fertilizar sementes de mudança nas terras áridas da minha ilusória estagnação.

Quando acho que sei, já mudei, mas ainda não sei. Quando acho que sei, já mudei, mas demoro a perceber. Fico lá, agarrada ao que já não é, chorando ou me encantando a partir de emoções que só fazem sentido para o que na maioria das vezes já deixei de ser. É quando menos sei que eu sinto mais. É quando menos sei que eu sei mais. É quando menos sei que eu sou com mais liberdade.

Não sei muita coisa sobre mim e já nem faço tanta questão assim de saber. O que realmente quero é criar espaço para viver a percepção nítida e inédita da beleza disponível de cada instante. Isso, sim, até onde eu pouco sei, é presente. E, quando estou alinhada com o tempo do meu coração, eu sei que é apenas isso, e tudo isso, o que há para ser desembrulhado. Para ser plenamente vivido. Nada mais.

Ana Jácomo

terça-feira, 29 de junho de 2010

Porque paz é fraqueza...

Lilya Corneli
A minha alegria está nos impulsos,
feito aqueles das ondas às rochas.

Mas não há impulsos na paz.
O espírito se aquieta e distrai.

Enquanto a alma pede a morte desse cômodo estado,
meu corpo insiste em aninhar-se,
onde as ondas não chegam
e estou protegida das rochas.

Samantha Abreu

sábado, 26 de junho de 2010

Com licença...

Não se mate...

Fatima, sossegue, isto é o amor.
Hoje escanteio
amanhã beijo roubado
sábado e domingo é solidão
e segunda feira dia de ir pro trabalho.

Nunca resisti ao amor
e nem tampouco ao suicidio.
Mas não vou me matar, oh não vou!
Reservo-me para mim mesma
e renuncio às bodas
sejam elas quais forem.

O amor, Fatima, o que é o amor?

A noite me invadiu e a manhã
me pegou sentada, desamparada
inventando uma oração
sublimando a ressaca
sem vitrolas e anúncios
rezando pra São Carlos
que me dê inspiração
nem sei pra quê
...
Entretanto aqui estou eu
sentinela e renitente.
Sem ser palmeira, sigo orquidea.
Sempre preferi as flores às arvores de folhas bobas.
Não sou grito, minha timidez não deixa.
O amor no escuro ou no claro
é o que quero
E se ele for triste não me importo
já me acostumei com este embaraço.

Fatima Reis

sexta-feira, 25 de junho de 2010

Achava belo, a essa época, ouvir um poeta dizer que escrevia pela mesma razão por que uma árvore dá frutos. Só bem mais tarde viera a descobrir ser um embuste aquela afetação: que o homem, por força, distinguia-se das árvores, e tinha de saber a razão de seus frutos, cabendo-lhe escolher os que haveria de dar, além de investigar a quem se destinavam, nem sempre oferecendo-o maduros, e sim podres, e até envenenados.

Osmar Lins, in: Guerra sem Testemunhas / Recorte do livro de Caio Fernando Abreu: Morangos Mofados. Ed. Companhia das Letras

quinta-feira, 24 de junho de 2010

[...] Mas olhe para todos ao seu redor e veja o que temos feito de nós e a isso considerado vitória nossa de cada dia. Não temos amado, acima de todas as coisas. Não temos aceito o que não se entende porque não queremos passar por tolos. Temos amontoado coisas e seguranças por não nos termos um ao outro. Não temos nenhuma alegria que já não tenha sido catalogada. Temos construído catedrais, e ficado do lado de fora pois as catedrais que nós mesmos construímos, tememos que sejam armadilhas. Não nos temos entregue a nós mesmos, pois isso seria o começo de uma vida larga e nós a tememos. Temos evitado cair de joelhos diante do primeiro de nós que por amor diga: tens medo. Temos organizado associações e clubes sorridentes onde se serve com ou sem soda. Temos procurado nos salvar mas sem usar a palavra salvação para não nos envergonharmos de ser inocentes. Não temos usado a palavra amor para não termos de reconhecer sua contextura de ódio, de amor, de ciúme e de tantos outros contraditórios. Temos mantido em segredo a nossa morte para tornar nossa vida possível. Muitos de nós fazem arte por não saber como é a outra coisa. Temos disfarçado com falso amor a nossa indiferença, sabendo que nossa indiferença é angústia disfarçada. Temos disfarçado com o pequeno medo o grande medo maior e por isso nunca falamos no que realmente importa. Falar no que realmente importa é considerado uma gafe. Não temos adorado por termos a sensata mesquinhez de nos lembrarmos a tempo dos falsos deuses. Não temos sido puros e ingênuos para não rirmos de nós mesmos e para que no fim do dia possamos dizer "pelo menos não fui tolo" e assim não ficarmos perplexos antes de apagar a luz. Temos sorrido em público do que não sorriríamos quando ficássemos sozinhos. Temos chamado de fraqueza a nossa candura. Temo-nos temido um ao outro, acima de tudo. E a tudo isso consideramos a vitória nossa de cada dia. [...]

Clarice Lispector, in: Uma Aprendizagem ou O Livro do Prazeres. Ed. Rocco

quarta-feira, 23 de junho de 2010

1


Não perguntavam por mim,
mas deram por minha falta.
Na trama da minha ausência,
inventaram tela falsa.
[...]

Cecília Meireles, in: Metal Rosicler / Antologia Poética. Ed. Nova Fronteira

Quarto aprendizado

Para nada vivo.
Sou apenas mais um, e se não fosse
nenhum seria
o prejuízo.
Nasci por mero acaso
e não me explico. E
por mero acaso
aceito satisfeito a tudo isso.

Roberval Pereyr

Sob as montanhas

As memórias – ei-las: é o que somos.
Pois o que buscamos é a perfeita forma
de um passado torto:

porque, ontem, fomos tristemente
outros – rudes
aprendizes do que nunca fomos.

Roberval Pereyr

segunda-feira, 21 de junho de 2010

do sentimento das coisas (II)

consigo finalmente me comportar dentro dos limites de rio estreito que sou.

não mais transpor a linha frágil dos contornos de mim
e transbordar.

seguir a sina dos rios pequenos: não saber dos abismos

nem do sal.

o som da fonte próxima seja acalento
pássaros quando amanhecer e o florescer dos lírios.
na noite inevitável.

Nydia Bonetti

Sobre amarelos e azuis:


Depois de abrir os olhos passa, depois de escovar os dentes passa, depois de tomar banho passa, depois de ler os jornais passa, depois de almoçar passa, depois de ver o filme passa, depois de escrever passa, depois do dia passar passa,
mas não passa.
Nunca.

Daniela Lima

sábado, 19 de junho de 2010

Aspiração

Eu piso no acelerador.
O vento da fuga me toma o peito,
desfaz o nó na garganta,
desembaraça os cabelos,
esvaziamento.

Chego amplamente
despovoada,
não sei onde.

Samantha Abreu

Estrelas

Estrelas são conchas que escondem
mares.
Quando amanhece, as águas as recolhem.
E nós as recolhemos quando pequenos.
Alguns mantêm o costume.
Os mesmos que gostam de olhar as
estrelas
e nem notam que faltam algumas -
aquelas que eles possuem
em suas caixas ou potes de maionese.
Estes, os colecionadores, são os
mesmos
que antes de dormir pensam nos
amores,
nos sabores, nas pessoas.
Estes, meus senhores, estão à nossa
procura.

Elaine Pauvolid
eu tinha por ti amor
e ainda não havia lido
nem escrito nem vivido nada igual
eu tinha por ti um sentimento
que não havia sido previsto, intuído
não havia sinal de reconhecimento
por isso ainda deixo a porta aberta
não entra você, entra o vento
todo amor desconhecido
precisa se entender com o tempo.

Martha Medeiros, in: Poesia Reunida. Ed. L&PM

segunda-feira, 14 de junho de 2010

Meu corpo não é o mesmo. Algo dentro e fora de mim tem mudado. Mudado de forma, teor, intensidade e lugar. Algo em mim é transitivo de um futuro que não é o mesmo, de um ficar que não ficou aonde deveria. O amor não é para agora e nem é para ontem. O amor sempre esteve, sempre estará. O meu amor não foi embora junto com um rosto e uma promessa desfeita. Ele permanece e perpetua desde aonde vim e é ele também que me levará. Lavará. A chuva não é a mesma. Não sou a mesma, meu amor. Agora resisto, fortifico e resplandeço. Teu toque não mais me derruba, teu olhar não mais me devasta. Sou minha antes de ser tua.

Cáh Morandi

sábado, 12 de junho de 2010

(in)crível

Essa estranha beleza
em racionalizar.
Ser dolorido,
mas ser
verdadeiramente.
Tocar tua carne nua,
e saber-te
onde, saber-te
quando.

Não me parece mais encantado
nosso mundo.
Não tenho mais aquelas
fantasias.

Talvez, a realidade não seja assim
tão boa
para amores insólitos.

Samantha Abreu

Avesso

A pele lisa, o cabelo solto, o sorriso esticado.
Sou toda ostentação da ventura.
Minhas próprias formas de me aconchegar em máscaras.
A conversa proposta,
a gargalhada dissimulada,
a satisfação inventada.

Sou toda arquitetura:
com sacada, paisagem e brisa.
Sou a brisa,
o copo gelado,
o arrepio dos pelos.
Aqui fora, claridade.

Mas o avesso está coberto de sangue.

Samantha Abreu

Estio

pousa tão leve
borboleta amarela
o sol nas asas

águas do céu dão trégua
quem tiver asas, voe...

Nydia Bonetti

quinta-feira, 10 de junho de 2010

Fibrilações

Tanto faz
funeral ou festim
tudo é desejo
o que percute em mim.
Ó coração incansável à ressonância das coisas,
amo, te amo, te amo,
assim triste, ó mundo,
ó homem tão belo que me paralisa.
Te amo, te amo.
E uma língua só,
um só ouvido, não absoluto.
Te amo.
Certa erva do campo tem as folhas ásperas
recobertas de pêlos,
te amo, digo desesperada
de que outra palavra venha em meu socorro.
A relva estremece,
o amor para ela é aragem.

Adélia Prado, in: Poesia Reunida. Ed. Siciliano

Tanta saudade

No coração do irrefletido mau gosto
a alegria palpita.
Montes de borboletas entram janela adentro
provocando coceiras, risos, provocando beijos.
Como nós nos amamos e seremos felizes!
Ah! Minha saia xadrez com minha blusa de listras...
Faço um grande sucesso na janela
fingindo que olho o tempo, ornada de tanajuras.
Papai tomou banho hoje,
quer vestir sua camisa azul de anil,
fio sintético transparente, um bolsinho só.
Quem me dera um só dia
dos que vivi chorando em minha vida,
quando éreis vivos, ó meu pai e minha mãe.

Adélia Prado, in: Poesia Reunida. Ed. Siciliano

quarta-feira, 9 de junho de 2010

Nuança

Deviantart
Meus caminhos, meus mapas,
meus caminhos.

Tudo está em ordem
em minha vida.

Como se faltasse
alguma coisa.

Antonio Brasileiro

Das definições de Manoel, o são

A vida – diz Manoel, o são – é
tempestável. E que é tempestável,
Manoel? Tempestável? Ah, tempestável!
É a vida, filho. Quem lá sabe!

Antonio Brasileiro

terça-feira, 8 de junho de 2010

Previsão

DeviantArt

O tempo anda
trovoando em mim.

É sempre assim
que as águas de março
se antecipam.

Eliana Mora

Soneto de entrega

Amar é entregar. Tudo te dou.
Não porque tu me pedes porque quero.
Pois te sei livre em mim portanto espero
em ti livre perder-me: aqui estou.
Quero o grito o encanto o mel o vôo
oceano e deserto reverbero
sob o toque das mãos tuas: bolero
só audível a mim quando em ti sou.
Mais que flor ofertada aberta ao falo
sou suor sou galope e contra-canto
o teu corpo no meu corpo abrilhanto
e em mil sóis saberei multiplicá-lo
:
gozo imenso eterniza a cavalgada
e enrubesce de inveja a madrugada.

Márcia Maia

segunda-feira, 7 de junho de 2010

Saudades que riem

Existem saudades que sabem rir. São as minhas preferidas. Algumas, nascem sabendo. Outras aprendem, depois de transformar o choro.

Como borboletas, voam pelos jardins da memória, abraçam as lembranças mais viçosas, e saboreiam o néctar, sempre disponível, das alegrias perenes.

Ana Jácomo

domingo, 6 de junho de 2010

Trottoir

Egon Schiele
Minhas fantasias eróticas, sei agora,
eram fantasias do céu.
Eu pensava que sexo era a noite inteira
E só de manhãzinha os corpos despediam-se.
Para mim veio muito tarde
a revelação de que não somos anjos.
O rei tem uma paixão – dizem à boca pequena –,
regozijo-me imaginando sua voz,
sua mão desvencilhando da fronte a pesada coroa:
'Vem cá, há muito tempo não vejo uns olhos castanhos,
tenho estado em guerras...'
O rei desataviado,
com o seu sexo eriçável mas contido,
pertinaz como eu em produzir com voz,
mão e olhos quase extáticos, um vinho,
um sumo roxo, acre, meio doce,
embriaguez de um passeio entre as estrelas.
À voz apaixonada mais inclino os ouvidos,
aos pulsares, buracos negros no peito,
rápidos desmaios,
onde esta coisa pagã aparece luminescente:
com ervas de folhas redondinhas
um negro faz comida à beira do precipício.
À beira do sono, à beira do que não explico
brilha uma luz. E de afoita esperança
o salto do meu sapato no meio-fio
bate que bate.

Adélia Prado, in: Terra de Santa Cruz. Ed. Record

Fragmento

Bem-aventurado o que pressentiu
quando a manhã começou:
não vai ser diferente da noite.
Prolongados permanecerão o corpo sem pouso,
o pensamento dividido entre deitar-se primeiro
á esquerda ou á direita,
e mesmo assim anunciou paciente ao meio-dia:
algumas horas e já anoitece, o mormaço abranda,
um vento bom entra nessa janela.

Adélia Prado, in: Poesia Reunida. Ed. Siciliano

sábado, 5 de junho de 2010

Del cielo y el infierno


A menina da sala doze só se ocupa de sonhar e qualquer outra coisa, mesmo o fumar, o escrever e o conversar a aborrecem profundamente.

Daniela Lima

Dívidas

amor
com amor se paga

tem alguém me devendo

tenho também
algumas contas penduradas

em algum velho balcão
por aí.

Nydia Bonetti

Anima

Deviantart
soprei

versos
sem alma

que andam
por aí

feito zumbis

até

que o corpo
se desfaça

ou a vida
retorne.

Nydia Bonetti

O pássaro


o pássaro
com seus olhos de céu
me olha
buscando em mim
as asas
que já não tenho.

Nydia Bonetti

Voltas

Deve ser por isso que os franceses chamam o período após o orgasmo de "pequena morte", petite mort. É a sensação de contato com a essência, que é interpretado como vazio ou lucidez extrema. Não estamos preparados para isso.

Claro, estamos acostumados com a existência e, portanto, não reconhecemos a essência.

Um pouco antes, ele segurou a minha mão e eu, encolhida, esperava o peso desastroso de um "eu te amo". Mas não: "quero te dar prazer". Achei bonito. E, antes disso, sincero. Nunca ninguém havia me dito nada parecido. Então, ficamos ali, trancados naquele momento, longe do martelar do tempo.

"Meu bem, faz quantos anos?".

Daniela Lima

sexta-feira, 4 de junho de 2010

Mergulho II

Barbara Cole
Na primeira noite, ele sonhou que o navio começara a afundar.
As pessoas corriam desorientadas de um lado para outro no tombadilho, sem lhe dar atenção. Finalmente conseguiu segurar o braço de um marinheiro e disse que não sabia nadar. O marinheiro olhou bem para ele antes de responder, sacudindo os ombros: "Ou você aprende ou morre".

Acordou quando a água chegava a seus tornozelos.

Na segunda noite, ele sonhou que o navio continuava afundando. As pessoas corriam de outro para um lado, e depois o braço, e depois o olhar, o marinheiro repetindo que ou ele aprendia a nadar ou morria. Quando a água alcançava quase a sua cintura, ele pensou que talvez pudesse aprender a nadar. Mas acordou antes de descobrir.

Na terceira noite, o navio afundou.

Caio Fernando Abreu, in: Pedras de Calcutá. Ed. Agir

Impressionista

Uma ocasião,
meu pai pintou a casa toda
de alaranjado brilhante.
Por muito tempo moramos numa casa,
como ele mesmo dizia,
constantemente amanhecendo.

Adélia Prado, in: Poesia Reunida. Ed. Siciliano

quinta-feira, 3 de junho de 2010

Alicia Varela
Não é que o mundo seja só ruim e triste. É que as pequenas notícias não saem nos grandes jornais. Quando uma pena flutua no ar por oito segundos ou a menina abraça o seu grande amigo, nenhum jornalista escreve a respeito. Só os poetas o fazem.

Rita Apoena


Só se pode viver perto de outro, e conhecer outra pessoa, sem perigo de ódio, se a gente tem amor. Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura.

João Guimarães Rosa

quarta-feira, 2 de junho de 2010

Meu jeito

DeviantArt_Curlytops
Se te pareço ausente, não creias:
hora a hora meu amor agarra-se aos teus braços,
hora a hora meu desejo revolve estes escombros,
e escorrem dos meus olhos mais promessas.

Não acredites neste breve sono;
não dês valor maior ao meu silêncio;
e se leres recados numa folha branca,
não creias também: é preciso encostar
teus lábios em meus lábios para ouvir.

Nem acredites se pensas que te falo:
palavras
são meu jeito mais secreto de calar.

Lya Luft, in: Para Não Dizer Adeus. Ed. Record

Arte final

Juliana Moraes
"Temos a arte para que a verdade não nos destrua..." Nietzsche

A arte de poder chorar
a arte de poder sorrir
acho que as perdi

Mas ainda me resta
a arte de
poder dormir...

Eliane Stoducto

Minha vida sem mim

Você precisa entrar no ringue sabendo que não vai escapar de todos os socos. Amigo, você vai apanhar. E muito. Então, pense se vale a pena. Mas saiba que aqui fora, na torcida, a gente também se dá mal. As pessoas estão sempre dispostas a roubar a sua cadeira, a trapacear nas apostas e até a tirar a sua vida.

Já não fecho os olhos, na hora de receber a minha dose diária de decepção. Não é qualquer golpe que me derruba — embora,

todos

me

machuquem.

Tento ter consciência da totalidade das coisas e: um soco é só um soco. Então, procuro não me prender àquele instante de dor — a vida vai além dos elásticos, dos juízes e da torcida. Na verdade, a vida vai além de você e

de

mim.

Daniela Lima

Impasse

Busquei terra escura e fresca pra me plantar.
Criei raízes nervosas, grossas e fundas.
Esqueci das asas.
Perdi o tempo da poda e já não seriam
aparas, mas assassinato.
Desistência.
Agora me estiro entre o chão e sua seiva
e o céu e suas promessas.
Entre o que me tornei
e o que poderia ter sido.

Claudia Camara

Sopro de Deus

Sigo distraído e breve — piedade na alma,
opulência no calabouço.

Sigo sereno, neblina me abraça.
Meu corpo um jarro de esperanças.

O amor — única navalha que me corta.
Aprendi que somos sopros de Deus — instantes.

Bárbara Lia

terça-feira, 1 de junho de 2010

V

quando você chegou
era tão tarde

sono pesado - eu já dormia

você devia
ter batido mais forte.

Nydia Bonetti

Uma didática da invenção

XIV

Poesia é voar fora da asa.

Manoel de Barros, in: Os Cem Melhores Poemas Brasileiros do Século. Org. Italo Moriconi. Ed. Objetiva

Desenredo

Grande admiração me causam os navios
e a letra de certas pessoas que esforço por imitar.
Dos meus, só eu conheço o mar.
Conto e reconto, eles dizem ‘anh’.
E continuam cercando o galinheiro de tela.
Falo de espuma, do tamanho cansativo das águas,
eles nem lembram que tem o Quênia,
nem de leve adivinham que estou pensando em Tanzânia.
Afainosos me mostram o lote: aqui vai ser a cozinha,
logo ali a horta de couve.
Não sei o que fazer com o litoral.
Fazia tarde bonita quando me inseri na janela, entre meus tios,
e vi o homem com a braguilha aberta,
o pé de rosa-doida enjerizado de rosas.
Horas e horas conversamos inconscientemente em português
como se fora esta a única língua do mundo.
Antes de depois da fé eu pergunto cadê os meus que se foram,
porque sou humana, com capricho tampo o restinho de molho na panela.

Saberemos viver uma vida melhor que esta,
quando mesmo chorando é tão bom estarmos juntos?
Sofrer não é em língua nenhuma.
Sofri e sofro em Minas Gerais e na beira do oceano.
Estarreço de estar viva. Ó luar do sertão,
ó matas que não preciso ver pra me perder,
ó cidades grandes, estados do Brasil que amo como se os tivesse inventado.
Ser brasileira me determina de modo emocionante
e isto, que posso chamar de destino, sem pecar,
descansa meu bem-querer.
Tudo junto é inteligível demais e eu não suporto.
Valha-me noite que me cobre de sono.
O pensamento da morte não se acostuma comigo.
Estremecerei de susto até dormir.
E no entanto é tudo tão pequeno.
Para o desejo do meu coração
o mar é uma gota.

Adélia Prado, in: Poesia Reunida. Ed. Siciliano