sexta-feira, 30 de abril de 2010

Deus é naja

Estás desempregado? Teu amor sumiu? Calma: sempre pode pintar uma jamanta na esquina.

Tenho um amigo, cujo nome, por muitas razões, não posso dizer, conhecido como o mais dark. Dark no visual, dark nas emoções, dark nas palavras: darkésimo. Não nos conhecemos há muito tempo, mas imagino que, quando ainda não havia darks, ele já era dark. Do alto de sua darkice futurista, devia olhar com soberano desprezo para aquela extensa legião de paz e amor, trocando flores, vestida de branco e cheia de esperança.

Pode parecer ilógico, mas o mais dark dos meus amigos é também uma das pessoas mais engraçadas que conheço. Rio sem parar do humor dele - humor dark, claro. Outro dia esperávamos um elevador, exaustos no fim da tarde, quando de repente ele revirou os olhos, encostou a cabeça na parede, suspirou bem fundo e soltou essa: -"Ai, meu Deus, minha única esperança é que uma jamanta passe por cima de mim..." Descemos o elevador rindo feito hienas.

Devíamos ter ido embora, mas foi num daqueles dias gelados, propícios aos conhaques e às abobrinhas. Tomamos um conhaque no bar. E imaginamos uma história assim: você anda só, cheio de tristeza, desamado, duro, sem fé nem futuro. Aí você liga para o Jamanta Express e pede: -"Por favor, preciso de uma jamanta às 20h15, na esquina da rua tal com tal. O cheque estará no bolso esquerdo da calça". Às 20h14, na tal esquina (uma ótima esquina é a Franca com Haddock Lobo, que tem aquela descidona) , você olha para esquina de cima. E lá está - maravilha! - parada uma enorme jamanta reluzente, soltando fogo pelas ventas que nem um dragão de história infantil. O motorista espia pela janela, olha para você e levanta o polegar. Você levanta o polegar: tudo bem. E começa a atravessar a rua. A jamanta arranca a mil, pneus guinchando no asfalto. Pronto: acabou. Um fio de sangue escorrendo pelo queixo, a vítima geme suas últimas palavras: -"Morro feliz. Era tudo que eu queria..."

Dia seguinte, meu amigo dark contou: - "Tive um sonho lindo. Imagina só, uma jamanta toda dourada..." Rimos até ficar com dor na barriga. E eu lembrei dum poema antigo de Drummond. Aquele Consolo na Praia, sabe qual? "Vamos não chores / A infância está perdida/ A mocidade está perdida/ Mas a vida não se perdeu" – ele começa, antes de enumerar as perdas irreparáveis: perdeste o amigo, perdeste o amor, não tens nada além da mágoa e solidão. E quando o desejo da jamanta ameaça invadir o poema – Drummond, o Carlos, pergunta: "Mas, e o humour?" Porque esse talvez seja o único remédio quando ameaça doer demais: invente uma boa abobrinha e ria, feito louco, feito idiota, ria até que o que parece trágico perca o sentido e fique tão ridículo que só sobra mesmo a vontade de dar uma boa gargalhada. Dark, qual o problema?

Deus é naja - descobrimos outro dia.

O mais dark dos meus amigos tem esse poder, esse condão. E isso que ele anda numa fase problemática. Problemas darks, evidentemente. Naja ou não, Deus (ou Diabo?) guarde sua capacidade de rir descontroladamente de tudo. Eu, às vezes, só às vezes, também consigo. Ultimamente, quase não. Porque também me acontece – como pode estar acontecendo a você que quem sabe me lê agora - de achar que tudo isso talvez não tenha a menor graça. Pode ser: Deus é naja, nunca esqueça, baby.

Segure seu humor. Seguro o meu, mesmo dark: vou dormir profundamente e sonhar com uma jamanta. A mil por hora.

Caio Fernando Abreu, in: Pequenas Epifanias / O Estado de S. Paulo, 15/7/1986 / Ed. Agir

quinta-feira, 29 de abril de 2010

Lushlee

Se soubesse da solidão desses meus primeiros passos. Não se parecia com a solidão de uma pessoa. Era como se eu já tivesse morrido e desse sozinha os primeiros passos em outra vida. E era como se a essa solidão chamassem de glória [...]

Clarice Lispector, in: A Paixão Segundo G.H. / Edição Crítica: Benedito Nunes

[...] Eu sou-te como tu me és...

Graça Loureiro
Cala o fluxo sensacional do teu corpo e encontrarás em mim, intactos, os teus medos e as tuas penas. Descobrirás o amor separado das paixões e eu descobrirei as paixões privadas de amor. Sai do papel que te atribuis e descansa no centro dos teus verdadeiros desejos. Por um momento deixa as tuas explosões de violência. Renuncia à tensão furiosa e indomável. Eu passarei a assumi-las.

Pára de tremer, de te agitar, de sufocar, de amaldiçoar, e reencontra o teu fundo que eu sou. Descansa das complicações, destorces e deformações. Por uma hora serás eu; ou antes, a outra metade de ti própria. Aquela parte de ti que tu perdeste. O que queimaste, partiste, estragaste encontra-se entre as minhas mãos. Eu sou guarda de coisas frágeis e preservei de ti o que há de indissolúvel.

Anaïs Nin, in: A Casa do Incesto. Ed. Assírio e Alvim

As tuas mentiras, não são mentiras [...]

Graça Loureiro
São flechas lançadas para fora da tua órbita pela força da tua fantasia. Para alimentar a ilusão. Para destruir a realidade. Vou ajudar-te: sou eu quem inventará para ti as mentiras e com elas iremos atravessar o mundo. Atrás das nossas mentiras desenrolo o fio de ouro de Ariana - porque de todas as alegrias a maior é a de voltar pelo percurso das mentiras, chegar novamente ao ponto de partida e dormir uma vez por ano livre de todas as estruturas de superfície [...].

Anaïs Nin, in: A Casa do Incesto. Ed. Assírio e Alvim
Graça Loureiro
Há no meu olhar uma ruptura por onde a loucura sempre escoa.

Anaïs Nin, in: A Casa do Incesto. Ed. Assírio e Alvim
Graça Loureiro

Reconstruo constantemente a imagem de uma coisa que perdi para sempre e que não posso esquecer.

Anaïs Nin, in: A Casa do Incesto. Ed. Assírio e Alvim

[...] Sou a mulher mais cansada do mundo. Fico cansada assim que me levanto.

Graça Loureiro
A vida requer um esforço de que me sinto incapaz. Por favor passa-me esse livro pesado. Preciso de pôr qualquer coisa pesada sobre a cabeça. Necessito constantemente de pôr os meus pés sob almofadas para que consiga continuar na terra.

De outro modo sinto-me partir, partir a uma velocidade tremenda, tão leve me sinto. Sei que estou morta. Logo que pronuncio uma frase a sinceridade morre e torna-se numa mentira cuja frieza me gela. Não me digas nada, vejo que me entendes, mas tenho receio dessa compreensão, tenho medo de encontrar alguém semelhante a mim e ao mesmo tempo desejo-o. Sinto-me tão definitivamente só, mas tenho tanto medo que o isolamento seja violado e eu não seja mais o cérebro e a lei do meu universo. Sinto-me no grande terror do teu entendimento, meio por que penetras no meu mundo; e que, sem véus, tenha então que partilhar o meu reino.

Mas o medo da loucura, Jeanne, só o medo da loucura nos levará a ultrapassar as fronteiras invioláveis da nossa solidão. O medo da loucura destruirá os muros da nossa casa secreta e projectar-nos-á no mundo à procura de contatos ardentes. [...]

Anaïs Nin, in: A Casa do Incesto. Ed. Assírio e Alvim

[...] Eu não soube suportar a passagem das coisas. Tudo o que flui, tudo o que passa, tudo o que mexe sufoca e enche-me de angústia.

Anaïs Nin, in: A Casa do Incesto. Ed. Assírio e Alvim

sábado, 24 de abril de 2010

Tambores de guerra

A pequenos intervalos rasteja sobre o mundo a sombra de uma guerra de dimensões maiores, explicitada nos meios de comunicação.
Uma guerra apenas "interessante" mal faz cócegas em nossa sensibilidade: estamos calejados pelas fotos e filmes de corpos dilacerados e poças de sangue.

Pequenas guerras mais ou menos ignoradas estão acontecendo sempre em países, cidades ou casas, aqui e ali. Sem falar desta em nosso próprio país - a guerra do narcotráfico -, alimentada cada vez que alguém acende um inocente cigarro de maconha ou dá uma cheirada de coca numa festinha qualquer. E sua irmã, a perversa guerrilha urbana que é a violência do trânsito e da bandidagem impune.

Mas desta vez é a guerra alardeada, propagandeada, a grande morte mil vezes anunciada. Violência em close-up com todos os recursos à mão para melhor matar e assistir à matança nos quatro cantos da Terra.

Insisto em que o ser humano não é original. Recoberto de algum requinte, continua feroz. Contemplando a violência dos tempos atuais, penso nos tempos antigos. A Idade Média. As Cruzadas. A Santa Inquisição.

Quando visitei pela primeira vez a catedral de Colônia, inimaginavelmente grande, a primeira coisa que me ocorreu foi como teria sido quando de sua construção. Aquele monstro alteando-se do nada, em torno centenas de choupanas miseráveis onde miseráveis seres humanos morriam na imundície e na lama, construtores ínfimos daquela maravilha máxima. Entrei na catedral com certo enjoo. Pois o humano ainda me comove mais do que a arte.

Agora a guerra é mais suja, dizem alguns, pois se mata de longe, apertando botões ou lançando veneno. Antes se rasgava o ventre do outro ou se decepava sua cabeça, depois se corria, mãos molhadas de sangue, a estuprar mulheres e crianças na aldeia próxima.

O que seria mais sujo ou mais higiênico, eu não saberia distinguir.
Os gritos dos torturados pela Santa Inquisão continuam ecoando pelas prisões e praças onde eles sofreram e morreram por razões abjetas como manipulação do pensamento e exercício desvairado do poder.

Mas o mundo não é só isso. O mesmo animal predador, que mata por lucro e poder, também produz arte, ama, sabe refletir, ensinar, expressar ideias incríveis, acolher o amigo, segurar a mão do amado que morre.

Pode parecer tolo, mas eu acredito que, nos momentos de sombra, mais do que argumentar e gritar ou deprimir-se, a gente devia acender a pequena chama de algo positivo. Se cada um cultivar afeto, beleza e lealdade em seu ambiente, por pequeno que seja, isso há de espalhar claridade no mundo. E não haverá apenas sombra e horror.

Porque se a gente não acreditar nisso, melhor será correr para o campo de batalha (ou pra uma de nossas ruas mesmo) e abrir o peito à primeira bala de quem quer que seja.
Bala perdida serve - e não é coisa assim tão rara.

Lya Luft, in: Pensar é Transgredir. Ed. Record

quinta-feira, 22 de abril de 2010

João Cabral de Melo Neto
Por que escrevo é um negócio complicado... Eu tenho a impressão de que a gente escreve por dois motivos. Ou por excesso de ser - é o tipo do escritor transbordante, como a maioria dos escritores brasileiros; é uma atitude completamente romântica - ou por falta de ser. Eu sinto que me falta alguma coisa. Então, escrever é uma maneira que eu tenho de me completar. Sou como aquele sujeito que não tem perna e usa uma perna de pau, uma muleta. A poesia preenche um vazio existencial. Às vezes, eu escrevo porque quero dizer determinada coisa que eu acho que não foi dita; às vezes, porque me interessa que conheçam meu ponto de vista. Às vezes, escrevo também por prazer.


João Cabral de Melo Neto, in: Auto-Retratos. Org. Giovanni Ricciardi. Ed. Martins Fontes

Fim de noite

Graça Loureiro
Não, eu disse. Não é de ciúmes que falo. Tampouco de medo. Mas do tempo. Da tua imagem que aos poucos vai em mim se esgarçando à luz inconstante das estrelas. E do vazio crescente que ocupa, paulatina e progressivamente, o seu lugar. O dia amanhecia. O bar fechava. E ele, que mais uma vez, mudo, me olhava fingindo nada entender, disse apenas: bobagem, deixe disso. E me beijou — fundo — até de mim, eu me esquecer.

Márcia Maia

quarta-feira, 21 de abril de 2010

Condição humana

Como captar da vida
o que rápido, foge
entre dúvidas? Como
reter o que, mal surge,
já se desfaz: é sombra,
algo vago, já neutro,
réstia pálida, eco
de nada, de ninguém?
Um minuto se esboça,
rútilo se sonha,
ardente se anuncia.
Onde? Quando? Quem sabe?
Sempre se sabe tarde,
sem mais onde, nem quando.

Emílio Moura, in: Itinerário Poético. Ed. Belo Horizonte

Pra coração ferido

Torça bem as lágrimas, uma a uma, até desencharcar o coração.
Depois, estenda a tristeza pra secar no varal da autogentileza.
Lá costuma bater sol.

Ana Jácomo

terça-feira, 20 de abril de 2010

Graça Loureiro
[...] O que deve fazer alguém que não sabe o que fazer de si? Utilizar-se como corpo e alma em proveito do corpo e da alma? Ou transformar sua força em força alheia? Ou esperar que de si mesma nasça, como uma consequência, a solução? Nada posso dizer ainda dentro da forma. Tudo o que possuo está muito fundo dentro de mim. Um dia, depois de falar enfim, ainda terei do que viver? Ou tudo o que eu falasse estaria aquém e além da vida? - Tudo o que é forma de vida procuro afastar. Tento isolar-me para encontrar a vida em si mesma. No entanto apoiei-me demais no jogo que distrai e consola e quando dele me afasto, encontro-me bruscamente sem amparo. No momento em que fecho a porta atrás de mim, instantaneamente me desprendo das coisas. Tudo o que foi distancia-se de mim, mergulhando surdamente nas minhas águas longíquas. Ouço- a, a queda. Alegre e plana espero por mim mesma, espero que lentamente me enleve e surja verdadeira diante de meus olhos. Em vez de me obter com a fuga, vejo-me desamparada, solitária, jogada num cubículo sem dimensões, onde a luz e a sombra são fantasmas quietos.
No meu interior encontro o silêncio procurado. Mas dele fico tão perdida de qualquer lembrança de algum ser humano e de mim mesma, que transformo essa impressão em certeza de solidão física. Se desse um grito - imagino já sem lucidez - minha voz receberia o eco igual e indiferente das paredes da terra. Sem viver coisas eu não encontrarei a vida, pois? Mas, mesmo assim, na solitude branca e ilimitada onde caio, ainda estou presa entre montanhas fechadas. Presa, presa. Onde está a imaginação? Ando sobre trilhos invisíveis. Prisão, liberdade. São essas as palavras que me ocorrem. No entanto não são as verdadeiras, únicas e insubstituíveis, sinto-o. Liberdade é pouco. O que desejo ainda não tem nome. [...]

Clarice Lispector, in: Perto do Coração Selvagem. Ed. Rocco
[...] Ah, a piedade é o que sinto então. Piedade é a minha forma de amor. De ódio e de comunicação. É o que me sustenta contra o mundo, assim como alguém vive pelo desejo, outro pelo medo. Piedade das coisas que acontecem sem que eu saiba. Mas estou cansada, apesar de minha alegria de hoje, alegria que não se sabe de onde vem, como a da manhãzinha de verão. Estou cansada, agora, agudamente! Vamos chorar juntos, baixinho. Por ter sofrido e continuar tão docemente. A dor cansada numa lágrima simplificada. Mas agora já é desejo de poesia, isso eu confesso, deus. Durmamos de mãos dadas. O mundo rola e em alguma parte há coisas que não conheço. Durmamos sobre Deus e o mistério, nave quieta e frágil flutuando sobre o mar, eis o sono.

Clarice Lispector, in: Perto do Coração Selvagem. Ed. Rocco

segunda-feira, 19 de abril de 2010



Viver — não é? — é muito perigoso. Porque ainda não se sabe. Porque aprender-a-viver é que é o viver mesmo.

João Guimarães Rosa, in: Grande Sertão: veredas. Ed. Nova Fronteira
O sertão é do tamanho do mundo.

[...]

Sertão é dentro da gente.

[...]

O sertão é sem lugar.

João Guimarães Rosa, in: Grande Sertão: veredas. Ed. Nova Fronteira

domingo, 18 de abril de 2010

Lições para pentear pensamentos matinais

Pensamentos, como cabelos, também acordam despenteados. Naquela faixa-zumbi que vai em slow motion, desde sair da cama, abrir as janelas, avaliar o tempo e calçar os chinelos até o primeiro jato da torneira – feito fios fora de lugar emaranhando-se, encrespam-se, tomam direções inesperadas.Com água, mão, pente, você disciplina cabelos. E pensamentos? Que nem são exatamente pensamentos, mas memórias, farrapos de sonho, um rosto, premonições, fantasias, um nome. E às vezes também não há água, mão, pente, gel ou xampu capazes de domá-los. Acumulando-se cotidianas, as brutalidades nossas de cada dia fazem pouco a pouco alguns recuar – acuados, rejeitados – para as remotas regiões de onde chegaram. Outros como cabelos rebeldes, renegam-se a voltar ao lugar que (com que direito?) determinamos para eles. Feito certas crianças, não se deixam engabelar assim por doce nem figurinha.

Pensamentos matinais, desgrenhados, são frágeis como cabelos finos demais que começam a cair. Você passa a mão, e ele já não está mais ali – o fio. No travesseiro sempre restam alguns, melhor não olhar para trás: vira-se estátua de cinza. Compacta, mas cinza. Basta um sopro. Pensamentos matinais, cuidado, são alterados feito um organismo mudando de fuso horário. Não deveria estar ali naquela hora, mas está. Não deveria sentir fome às três da tarde, mas sente. Não deveria sentir sono ao meio-dia, mas. Pensamentos matinais são um abrupto mas com ponto final a seguir. Perigosíssimos. A tal ponto que há risco de não continuar depois do que deveria ser uma curva amena, mas tornou-se abismo.

E só vamos em frente porque começam a acontecer urgências. Enquanto a manhã dispara e o telefone toca e a campainha soa e as crianças vão precisam sair para a escola e o relógio de ponto ou qualquer coisa assim – incluindo os outros, sobretudo os outros – não esperam. Nada espera, ninguém. Você lava o rosto, finge não ter visto coisa alguma. É possível também ligar o rádio. Um banho frio, o café feito uma bofetada. Há pensamentos-matinais-despenteados que põe o rabo entre as pernas e dão o fora, mas outros – mulheres de Nelson Rodrigues – adoram apanhar.

Quanto mais você bate, mais ele arreganha os dentes e instiga para apanhar mais. Isso magnetiza e atrai outros pensamentos, ainda mais descabelados e até então escondidos. Se era um nome, vem um sobrenome. Se era um rosto, vem a textura da pele, um cheiro um jeito de olhar. Se fantasia, ganha cor, e assim por diante. Pensamentos desse tipo são quase sempre proustianos: loucos pelo velho e bom tempo perdido.

Soluções mais grosseiras, há. Colmo papel higiênico, amarrotá-los, jogá-los na privada, dar descarga. Acontece que descargas, não quero parecer alarmista, às vezes entopem. E devolvem justamente aquilo que deveriam levar embora, num comportamento que é o avesso daquele para qual foram programadas. Ah o avesso, esse o problema. Pensamentos assim são um sintoma do avesso. E o avesso é a superfície correspondente, igual em tamanho e forma, a tudo aquilo que você considera o direito. Conhecer de cor-e-salteado o direito absolutamente não dá direito a conhecer também o outro lado. Sinto muito, mas ele sempre está lá. Incógnito, invisível, inviável. In, enfim.

Por ser assim, desordena-se. Pelas manhãs, mesmo que o de-manhã de alguns aconteça às seis da tarde. Mesmo nos calvos, a cabeleira abstrata pode amanhecer tão eriçada quanto a da Medusa. E se em vez de veneno as cobras tiverem mel? Tudo depende não me pergunte de quê. Só sei que deve-se olhar direito nos olhos deles, tocar sem nojo nem medo suas mãos cobertas de musgo, teias de aranha. Passar num susto a mão pelos cabelos, reais ou não. Deve-se sempre com a doçura e paciência possíveis nessas situações, mudar rápido de assunto. Ou cair no poço.

Caio Fernando Abreu, in: Pequenas Epifanias / O Estado de S. Paulo, 19/9/1993 / Ed. Agir
Toque de Veludo
[...] Som dentro do som, cena dentro da cena, mulher dentro de mulher - como ácido revelador de uma escrita invisível. Uma mulher dentro de outra eternamente, num longo cortejo, dividindo-me o pensamento em fragmentos, em quartos de tom que nenhuma batuta de orquestra pode voltar a reunir.

Anaïs Nin, in: A Casa do Incesto. Ed. Assírio e Alvim

sábado, 17 de abril de 2010

Quem pensa que está fora do amor entra. Quem pensa que está dentro sai. Ele engana sua força. Sobrepõe a memória dos sentimentos na memória dos fatos. É procurar cabelos para completar as mãos, é procurar o que não se viveu para contar. É esperar o sol aquecer o lado ileso da cama. É não apagar direito a ausência, a letra, o cheiro. É insistir com respostas sem as perguntas. É podar o arbusto de água. É pão ruivo antes do mel. É idioma acumulado nas calhas. Não há descrição fiel que o possa explicar. Adiar o amor ainda é cumpri-lo. Fingir que não se sente é exercê-lo. Desdenhar é elogiar. Ofender é trocar palavras. Odiar é desesperar o atraso. O amor devora os sobreviventes. Não lembra do pente, da navalha, da tesoura de unhas, do jornal, do abajur. O amor não lembra do que precisa. Amor é não precisar de nada. É precisar do que acontece depois do nada, ainda que não aconteça. A fraqueza é força física. O endereço é genealogia. O amor confunde para se chegar ao mistério. Embaralha para não se ouvir. Perde-se no próprio amor a capacidade de amar. Quanto mais violento o primeiro amor, mais difícil será o segundo amor. Quanto mais violento o último amor, mais calmo é o primeiro amor. As frutas postas na mesa não estão à espera da fome, ainda estão à espera da árvore. A fome é uma árvore que cresce deitada e arranca o telhado do corpo. Amor é comer a fruta do chão. O chão da fruta. O amor queima os papéis, os compromissos, os telefones onde havia nomes. O amor não se demora em versos, se demora no assobio do que poderia ser um verso. O amor é uma amizade que não foi compreendida, uma lealdade que foi quebrada; o amor é um desencontro por dentro.

Fabrício Carpinejar

sexta-feira, 16 de abril de 2010

Mar em redor

Meus ouvidos estão como as conchas sonoras:
música perdida no meu pensamento,
na espuma da vida, na areia das horas...

Esqueceste a sombra no vento.
Por isso, ficaste e partiste,
e há finos deltas de felicidade
abrindo os braços num oceano triste.

Soltei meus anéis nos aléns da saudade.
Entre algas e peixes vou flutuando a noite inteira.
Almas de todos os afogados
chamam para diversos lados
esta singular companheira.

Cecília Meireles, in: Vaga Música / Antologia Poética. Ed. Nova Fronteira

quinta-feira, 15 de abril de 2010

não sei onde ele está.

Meu coração está negro. O ar que eu respiro atravessa um caminho de carne podre cancerosa que começa no nariz e termina com uma pontada em algum lugar nas minhas costas. Quando penso em José Roberto, um raio de luz corta o meu coração. Ilumina e dói. Às vezes penso que minha única saída é o suicídio. Fogo às vestes? Barbitúricos? Pulo da janela? Hoje à noite vou à boate.

Rubem Fonseca, in: Lúcia McCartney / 64 Contos de Rubem Fonseca. Ed. Companhia das Letras

quarta-feira, 14 de abril de 2010

Sétimo fragmento da décima terceira voz

Lara Fairie
A pedra morna de sol sob as minhas costas. Os garis limpam os restos da feira. Encosto a cabeça no tronco da árvore. Fecho os olhos, ofuscado pelo excesso de luz. Dificil conciliar a manhã de fora com a treva de dentro. Respirar é uma oração que nada pede, Obá humilde. Continua, já ultrapassaste o meio, não tens mais o que temer. Repara, agora é como o centro escuro da noite. O próximo movimento só pode ser em direção à luz. Ele brilhava, ele era claro, ele era feito de sol. Todos queriam não estar ali. Não se deve, não se pode querer estar em outro lugar além do que se está. Eles desejam coisas que não existem. Eles não conhecem a paixão, nem tu. A tudo isso eu chamo tontura, não prazer. Evita a vertigem. Resseca, desbasta, o limite é a nudez do osso. Além dele, se avançares, há somente poeira. Mas cuidado, exigem-se os dentes fortes que Nanã perdeu. Descobre, desvenda. Há sempre mais por trás. Que não te baste nunca uma aparência do real. Como te atreves a supor que carregas O Facho de Luz? Sei bem quanto brilha, mas te digo que serias incapaz de vencer as Iansãs do vento.

Caio Fernando Abreu, in: Triângulo das Águas. Ed. Agir
Vânia Medeiros
O amor, ah o amor: eu quero porque quero da vida.

Oswald de Andrade

terça-feira, 13 de abril de 2010

Jasmim

Depois voltarei ao mar, sempre volto. Mas falei em perfume. Lembrei-me do jasmim. Jasmim é de noite. E me mata lentamente. Luto contra, desisto porque sinto que o perfume é mais forte do que eu, e morro. Quando acordo, sou uma iniciada.

Clarice Lispector, in: A Descoberta do Mundo / Crônica de 07/04/1973. Ed. Rocco

segunda-feira, 12 de abril de 2010

Bem no fundo

Vânia Medeiros
no fundo, no fundo,
bem lá no fundo,
a gente gostaria
de ver nossos problemas
resolvidos por decreto

a partir desta data,
aquela mágoa sem remédio
é considerada nula
e sobre ela — silêncio perpétuo

extinto por lei todo o remorso,
maldito seja quem olhar pra trás,
lá pra trás não há nada,
e nada mais

mas problemas não se resolvem,
problemas têm família grande,
e aos domingos saem todos passear
o problema, sua senhora
e outros pequenos probleminhas.

Paulo Leminski, in: Distraídos Venceremos. Ed. Brasiliense

Recomeço

Não é preciso agendar, entrar em fila, contar com a sorte, acordar cedo para pegar senha: a possibilidade de recomeço está disponível o tempo todo, na maior parte dos casos. Não tem mistério, ela vem embrulhada com o papel bonito de cada instante novo, essa página em branco que olha pra gente sem ter a mínima ideia do que escolheremos escrever nas suas linhas.

O que é preciso mesmo é coragem para abrir o presente.

Ana Jácomo

Espelho

Encontros e Desencontros

Aprendi que algumas vezes, por mais embaraçoso que seja reconhecer, a dificuldade que vejo no outro, exatamente aquela que tanto me incomoda, também é minha, só que me olha do tal lado de fora.

Ana Jácomo

domingo, 11 de abril de 2010

O trovador

não tenho filosofia
diz o poeta
que faz versos sentidos.

não tenho filosofia
desdiz o poeta
que faz versos sentimentais.

não tenho sentimentos
desmente o poeta
que faz versos.

Pedro Maciel

sábado, 10 de abril de 2010

Sertão

As nuvens são baixas,
mas alto é o céu.
O que parece passar,
permanece.

O verde, no cinza
se descobre.
A luz,
da escuridão se tece.

O verbo afia,
a faca desafia:
no oculto de mim,
tudo é Sertão.

Everardo Norões

Outono


Folhas pelo chão:
é chegado o outono. Ou
falta inspiração...

Angela Leite de Souza

O tempo

Quando voltará o tempo
a estender-se a nossos pés
como uma planície verdejante?

Que saudades das tardes imensas,
infinitas, em que brincávamos,
corríamos, descansávamos
e líamos, horas a fio,
esses romances que nos enchiam a alma
e que em nós se tornaram!

Durmo demais ou de menos?
Sou lenta ou, antes,
apressada em demasia?
Manhãs e tardes esfumam-se
na voragem do dia-a-dia…

Nervosamente antecipo o pôr-do-sol,
enquanto percorro este labirinto
feito de momentos compartimentados,
intercalados por corredores
apinhados de ânsias e temores,
que são o meu tempo de hoje.

Sonho com o regresso do tempo infindo,
em que o corpo voltará a correr livre,
como criança, e o espírito, ousado,
voará mais alto do que nunca!

Tanto desejo esse tempo!
Tanto planeio criar
nessa planície verdejante!

Caiam paredes!
Dilate-se o espaço!
Germinem sementes!
Estenda-se a nossos pés
a imensidão do tempo!

Ilona Bastos

quarta-feira, 7 de abril de 2010

A meio pau

Queria mais um amor. Escrevi cartas,
remeti pelo correio a copa de uma árvore,
pardais comendo no pé um mamão maduro
- coisas que não dou a qualquer pessoa -
e mais que tudo, taquicardias,
um jeito de pensar com a boca fechada,
os olhos tramando um gosto.
Em vão.
Meu bem não leu, não escreveu,
não disse essa boca é minha.
Outro dia perguntei a meu coração:
o que há durão, mal de chagas te comeu?
Não, ele disse: é desprezo de amor.

Adélia Prado, in: Bagagem. Ed. Record

bloco do eu sozinho.

Alone Gut
amar é
verbo
singular.

Maria Nina

Pedaços

Estou estilhaçada
silêncios saem da boca
mansos
estava desenhando
palavras
perdi o jeito de amanhecer

tenho tantos pedaços
que sou quase infinita.

Vera Lúcia de Oliveira, in: Geografias de Sombra

terça-feira, 6 de abril de 2010

Pequenas mortes

De tudo o que me resta e que não seja
amor,
seja
o portão de partida
despedida,
de pequenas causas diárias.
Eu sangro momentos,
derreto venenos
e morro nos cotidianos fins.
Ainda prefiro
a mortalha
envolvendo
afazeres não entranhados.
Quero a devastação
irreversível
de qualquer pequena vida
vã.

Samantha Abreu

Labaredas


Todas as minhas pontas são labaredas. Possuo na casca uma felicidade vermelha e sobejante, que estala as extremidades de mim.
Sinto meu próprio açoite. Eu, mulher de tentáculos, termicamente borbulhante.
Às vezes me queimo, mas eu mesma assopro os hematomas.

Samantha Abreu

Das coisas em que acredito

até aonde meus olhos
alcançam
eu acredito em tudo
aquilo que eu vejo.

dali em diante
acredito em tudo
aquilo que imagino.

Ademir Antonio Bacca, in: Grito por Dentro das Palavras

domingo, 4 de abril de 2010

[...] Descobri, em dias como hoje, de fôlego difícil e desconforto pré-cordial, sou levada a desejos de cantar, cantar muito sem medir volume. Quando o faço, melhoro. Saio-me. O corpo me limita, a pele, a casa, o quarto, a roupa, os óculos, o sofrimento de dona Luizinha que não entende eu não comparecer às suas bodas de ouro. É ilusão voar de asa-delta, estamos todos retidos e em culpa, o maior de todos os limites. Só uma coisa não castiga, a nudez verdadeira, a que não se vende, porque ninguém compra a desolação, a terra arrasada de nossa impotência.

Adélia Prado, in: Quero Minha Mãe. Ed. Record

Um pouco de silêncio

Nesta trepidante cultura nossa, da agitação e do barulho, gostar de sossego é uma excentricidade. Sob a pressão do ter de parecer, ter de participar, ter de adquirir, ter de qualquer coisa, assumimos uma infinidade de obrigações. Muitas desnecessárias, outras impossíveis, algumas que não combinam conosco nem nos interessam.

Não há perdão nem anistia para os que ficam de fora da ciranda: os que não se submetem mas questionam, os que pagam o preço da sua relativa autonomia, os que não se deixam escravizar, pelo menos sem alguma resistência.

O normal é ser atualizado, produtivo e bem informado. É indispensável circular, ser bem-relacionado. Quem não corre com a manada, praticamente nem existe. Se não tomar cuidado, põem-no numa jaula: um animal estranho.

Pressionados pelo relógio, pelos compromissos, pela opinião alheia, disparamos sem rumo – ou por trilhos determinados – como hâmsteres que se alimentam da sua própria agitação.

Ficar sossegado é perigoso: pode parecer doença. Recolher-se em casa ou dentro de si mesmo ameaça quem apanha um susto de cada vez que examina a sua alma.

Estar sozinho é considerado humilhante, sinal de que não se arramou ninguém – como se a amizade ou o amor se arrumasse em loja. Com relação a homem pode até ser libertário: enfim só, ninguém pendurado nele controlando, cobrando, chateando. Enfim, livre!
Mulher, não. Se está só, em nossa mente preconceituosa é sempre porque está abandonada: ninguém a quer.

Além do desgosto pela solidão, temos horror à quietude. Logo pensamos em depressão: quem sabe terapia e antidepressivos? Criança que não brinca ou salta nem participa de atividades frenéticas está com algum problema.

O silêncio nos assusta por retumbar no vazio dentro de nós. Quando nada se move nem faz barulho, notamos as frestas pelas quais nos espiam coisas incômodas e mal resolvidas, ou se enxerga outro ângulo de nós mesmos. Nos damos conta de que não somos apenas figurinhas atarantadas correndo entre casa, trabalho e bar, praia ou campo.

Existe em nós, geralmente nem percebido e nada valorizado, algo para além desse que paga contas, transa, ganha dinheiro, e come, envelhece, e um dia (mas isso é só para os outros!) vai morrer. Quem é esse que afinal sou eu? Quais seus desejos e medos, seus projetos e sonhos?

No susto que essa ideia provoca, queremos ruído, ruídos. Chegamos em casa e ligamos a televisão antes de largar a bolsa ou pasta. Não é para assistir a um programa: é pela distração.

O silêncio faz pensar, remexe águas paradas, trazendo à tona sabe Deus que desconcerto nosso. Com medo de ver quem – ou o que – somos, adia-se o defrontamento com nossa alma sem máscaras.

Mas, se a gente gostar um pouco de sossego, descobre – em si e no outro – regiões nem imaginadas, questões fascinantes e não necessariamente ruins.

Nunca esqueci a experiência de quando alguém botou a mão no meu ombro de criança e disse:
— Fica quietinha um momento só, escuta a chuva chegando.

E ela chegou: intensa e lenta, tornando tudo singularmente novo. A quietude pode ser como essa chuva: nela a gente se refaz para voltar mais inteiro ao convívio, às tantas frases, às tarefas, aos amores.

Então, por favor, dêem isso: um pouco de silêncio bom para que eu escute o vento nas folhas, a chuva nas lajes, e tudo o que fala muito para além das palavras de todos os textos e da música de todos os sentimentos.

Lya Luft, in: Pensar é Transgredir. Ed. Record

sábado, 3 de abril de 2010

O Tempo Passa? Não Passa

Amanda Cass
O tempo passa? Não passa
no abismo do coração.
Lá dentro, perdura a graça
do amor, florindo em canção.

O tempo nos aproxima
cada vez mais, nos reduz
a um só verso e uma rima
de mãos e olhos, na luz.

Não há tempo consumido
nem tempo a economizar.
O tempo é todo vestido
de amor e tempo de amar.

O meu tempo e o teu, amada,
transcendem qualquer medida.
Além do amor, não há nada,
amar é o sumo da vida.

São mitos de calendário
tanto o ontem como o agora,
e o teu aniversário
é um nascer a toda hora.

E nosso amor, que brotou
do tempo, não tem idade,
pois só quem ama escutou
o apelo da eternidade.

Carlos Drummond de Andrade
Hoje acordei inteira. Migalhas? Pedaços? Não, obrigada. Não gosto de nada que seja metade. Não gosto de meio termo. Gosto dos extremos. Gosto do frio. Gosto do quente (depende do momento.) Gosto dos dedinhos dos pés congelados ou do calor que me faz suar o cabelo. Não gosto do morno. Não gosto de temperatura-ambiente. Na verdade eu quero tudo. Ou quero nada. Por favor, nada de pouco quando o mundo é meu. Não sei sentir em doses homeopáticas. Sempre fui daquelas que falam "eu te amo" primeiro. Sempre fui daquelas que vão embora sem olhar pra trás. Sempre dei a cara à tapa. Sempre preferi o certo ao duvidoso.
Quero que se alguém estiver comigo, que esteja. Mesmo que seja só naquele momento. Mesmo que mude de idéia no dia seguinte.

Fernanda Mello

sexta-feira, 2 de abril de 2010

Oscilo e flutuo nas pontas sem ossos dos meus pés atenta aos sons distantes, sons para além do alcance de ouvidos humanos, vejo coisas que são para além do alcance dos olhos.
[...] Sempre à espera de sons perdidos e à procura de perdidas cores, permanecendo para sempre no limiar como alguém perturbado por recordações, corto o ar a passo largo com largos golpes de barbatana e nado através de quartos sem paredes.

Anaïs Nin, in: A Casa do Incesto. Ed. Assírio e Alvim

Sim e não



Eu sou sim. Eu sou não. Aguardo com paciência a harmonia dos contrários. Serei um eu, o que significa também vós.

Clarice Lispector, in: A Descoberta do Mundo / Crônica de 14/03/1970. Ed. Rocco

quinta-feira, 1 de abril de 2010

Ao acordar, ele urina, depois toma banho, e depois se penteia e bebe seu café. A cafeína circula o resto do dia em suas veias. Como ele é bonito (se digo que ele é bonito, é porque o amo, deve ser isso). Ele sorve o café até a última gota, tem um olho inchado. Todo dia é a mesma coisa. Como gostaria de fazê-lo desaparecer. Ele tem consciência disso. Ele é apenas um diamante sem interesse, seu brilho não pode mais me seduzir.

Mas não consigo lhe dizer "não", porque não temos mais nada na vida.

Mian Mian, in: Bombons Chineses. Ed. Geração
Um dia parei de acreditar em meu corpo, não o compreendia mais. Era muito caprichoso, não parava de me decepcionar. O que a vida me ensinou? Esse homem deveria desaparecer de vez da minha vida. Onze anos! Realmente é o que deveria fazer, mas é impossível arranhar esse céu escuro, é tão difícil fazer as coisas como se quer!

Mian Mian, in: Bombons Chineses. Ed. Geração

[...] Tinha um medo enorme de ficar apaixonada por qualquer pessoa. Desde que seja simplesmente por sentir-se solitária, ou porque me atraía sexualmente, desde que não seja por amor. Alguém me disse que amar torna as pessoas felizes, que ser amado é que faz sofrer.

Mian Mian, in: Bombons Chineses. Ed. Geração

Engrenagem

Minha alma humana é a única forma possível de eu não me chocar desastrosamente com a minha organização física, tão máquina perfeita está é. Minha alma humana é, aliás, também o único modo como me é dado aceitar sem desatino a alma geral do mundo. A engrenagem não pode nem por um segundo falhar.

Clarice Lispector, in: A Descoberta do Mundo / Crônica de 28/06/1969. Ed. Rocco