quarta-feira, 31 de março de 2010

Os Mistérios da Páscoa

Agora é diferente, virou venda frenética de chocolates, pacote turístico, meia dúzia de filmes bíblicos pela tevê (Victor Mature, Deborah Kerr, Jean Simmons). Mas naquele período jurássico quando nasci e cresci, Semana Santa era coisa séria. Não apenas séria, mas misteriosa. Mais que misteriosa, até mesmo um pouco aterrorizante.

Vários e vagos mistérios, alguns até hoje não esclarecidos. Não se podia comer carne — e não só na Sexta-Feira Santa, não, que hoje fazem um bacalhauzinho e pronto. A semana toda, ninguém comia carne. “O corpo de Cristo”, diziam, e era inevitável sentir-se meio canibal só em pensar num bom bife. Havia também a obrigação do silêncio. Não se podia brincar barulhento demais, rir muito alto, tinha-se que manter ar contrito, enlutado. Cantar então era um sacrilégio brabo, principalmente na Sexta- Feira, quando não se podia nem ligar o rádio. Mas se o rádio continuava funcionando — e tocando música —, por que não se podia ligá-lo? E os donos das rádios, por que perdiam tempo com as emissoras no ar se era proibido sintonizá-las? De que adianta uma rádio no ar, se ninguém escuta? Não havia resposta. Havia, isto sim, silêncios demais nas Semanas Santas de antigamente.

“Jesus morreu” era a única resposta. E lá estavam na Igreja os santos todos cobertos por panos roxos e pretos, assustadores.
Na Sexta-Feira (e por que “da Paixão” ninguém explicava), uma mórbida, lívida estátua de Cristo dentro de um caixão de vidro. Me fascinavam as gotas de sangue, rubis sobre a pele. Muitas vezes tive a tentação de arrancar uma com a unha, guardá-la só para mim. O medo do pecado mortal era o que me detinha. No dia em que Cristo está morto, diziam, cada pecado multiplicava-se por mil, pois era também o dia em que o demônio estava solto. E com toda corda, poderosíssimo. Na Sexta-Feira Santa tinha-se que andar na ponta dos pés, falar em voz muito baixa e não cometer absolutamente nenhum pecado — mesmo os mais bestas, tipo espetar bumbum de formiga com agulha de costura — para não atrair o demônio. Com ele solto, pecados normalmente leves tinham a sua gravidade multiplicada, eram capazes de arrastar alguém ao fogo dos infernos por toda a eternidade.

No Sábado de Aleluia, Jesus ressuscitava. Podia-se começar a gritar, a cantar, a dizer palavrão, enfim: a pecar à vontade outra vez. Mas ninguém explicava por que toda aquela tristeza do dia anterior, se todo mundo sabia que Cristo acabaria ressuscitando no dia seguinte. Era puro fingimento? Hoje sei, era mesmo. Ou não fingimento, mas liturgia, rito. Mistério maior era no domingo, acordar cedo para procurar pela casa toda os ninhos feitos em caixas de sapato, com papel de seda, palha e cola de farinha de trigo danada pra embolar. Os ninhos estavam cheios de ovos de chocolate deixados pelo coelhinho da Páscoa. Ótimo, claro, que criança não adora se empapuçar de sugar blues?

Mas ninguém nunca explicava qual a relação entre a morte e a ressurreição de Cristo com ovos de chocolate. E muito menos com coelhos. Galinha de Páscoa seria mais lógico. Ou pata, vá lá. Agora, coelho? E tem mais: não era coelha, era coelho mesmo. Coelho então também bota ovo? Só na Páscoa, talvez. Ou talvez apenas faça ovos, não ponha, eu refletia. Eu refletia muito naquele tempo.

Nos anos seguintes devo ter perguntado sobre isso, e até mesmo ouvido alguma resposta satisfatória. Vagamente, na minha cabeça, ronda uma lenda qualquer, talvez polonesa. Ou quem sabe misturo isso àquela tradição polonesa de pintar ovos de Páscoa (aliás, tenho um lindo que ganhei em Curitiba). Acho que não prestei atenção, pelo menos não lembro de nada. Também não quero que me expliquem agora. Tem muita coisa que, francamente, cá entre nós, não faço mesmo questão de saber.

Caio Fernando Abreu, in: Pequenas Epifanias / Crônica do Zero Hora, 1/4/1995 / Ed. Agir

terça-feira, 30 de março de 2010

Palavras de uma amiga

Denise Alba

"Fortifica o que de melhor tiveres de ti. Não prestes atenção à opinião alheia. Faze de ti mesma e de teu próprio Eu o teu mestre. Quando ele estiver bastante fortalecido, despertará e coisas jamais sonhadas te serão reveladas."

Clarice Lispector, in: A Descoberta do Mundo / Crônica de 03/08/1968. Ed. Rocco

segunda-feira, 29 de março de 2010

Chico Buarque de Holanda,

Chico Buarque de Hollanda
eu poderia dizer isso pessoalmente mas tive medo de me emocionar. Você sabe que não me seria difícil convidar o que se chama de personalidades para a minha casa. Mas não foi por você ser uma personalidade que chamei. Convidei porque, além de altamente gostável, você tem a coisa mais preciosa que existe: candura. Meus filhos têm. E eu, apesar de não parecer, tenho candura dentro de mim. Escondo-a porque ela foi ferida. Peço a Deus que a sua candura nunca seja ferida e que se mantenha sempre.

Clarice Lispector, in: A Descoberta do Mundo / Crônica de 10/02/1968. Ed. Rocco

domingo, 28 de março de 2010


[...] Domingo é o dia dos ecos – quentes, secos, e em toda a parte zumbidos de abelhas e vespas, gritos de pássaros e o longínquo das marteladas compassadas – de onde vêm os ecos de domingo? Eu que detesto domingo por ser oco.

Clarice Lispector, in: Água Viva. Ed. Círculo do Livro

sexta-feira, 26 de março de 2010

Antídoto

Katia Chausheva
Como o sangue, corremos dentro dos corpos no momento em que abismos os puxam e devoram. Atravessamos cada ramo das árvores interiores que crescem do peito e se estendem pelos braços, pelas pernas, pelos olhares. As raízes agarram-se ao coração e nós cobrimos cada dedo fino dessas raízes que se fecham e apertam e esmagam essa pedra de fogo. Como sangue, somos lágrimas. Como sangue, existimos dentro dos gestos. As palavras são, tantas vezes, feitas daquilo que significamos. E somos o vento, os caminhos do vento sobre os rostos.

O vento dentro da escuridão como o único objecto que pode ser tocado. Debaixo da pele, envolvemos as memórias, as ideias, a esperança e o desencanto.

José Luís Peixoto

Calunga

meu corpo guarda teu cheiro.
tuas mãos pesadas, enormes.

das coisas que diz, só sabe teu sexo.
ele não te lembra: te é.

Nina Rizzi

quinta-feira, 25 de março de 2010

Eu tenho uma espécie de dever,
de dever de sonhar,
de sonhar sempre,
pois sendo mais do que
uma espectadora de mim mesma,
Eu tenho que ter o
melhor espetáculo que posso.
E assim me construo a ouro e sedas,
em salas supostas, invento palco, cenário para viver o meu sonho entre
luzes brandas e músicas invisíveis.

Fernando Pessoa, in: O Livro do Desassossego. Ed. Companhia das Letras

terça-feira, 23 de março de 2010

Retrato com sombra

Lilya Corneli
Que morte é a sombra deste retrato
onde eu assisto ao dobrar dos dias,
órfão de ti e de uma aventura suspensa?

Tu não eras só este perfil.
Tu não eras só este sossego aconchegado
nas mãos como num regaço.
Tu não eras apenas
este horizonte de areia com árvores distantes.

Falta aqui tudo o que amámos juntos,
o teu sorriso com as ruas dentro,
o secreto rumor das tuas veias
abrindo sulcos de palavras fundas
no rosto da noite inesperada.
Falta sobretudo à roda dos teus olhos
a pura ressonância da alegria.

Lembro-me de uma noite em que ficámos nus
para embalar um beijo ou uma lágrima,
lutando, de mãos cortadas, até romper o dia,
largo, intacto,
nas pálpebras molhadas dos lírios.

Tu não eras ainda este perfil
com uma rosa de cinza na mão direita.
Eu andava dentro de ti
como um pequeno rio de sol
dentro da semente,
porque nós – é preciso dizê – lo –
tínhamos nascido dentro do outro
naquela noite.

Esse é o teu rosto verdadeiro;
aquele rosto que vou juntando ao teu retrato
como quando era pequeno:
recortando aqui,
colando ali,
até que uma fonte rasgue a tua boca
e a noite fique transbordante de água.

Eugénio de Andrade
o tempo, subitamente solto pelas ruas e pelos dias, como a onda de uma tempestade a arrastar o mundo, mostra-me o quanto te amei antes de te conhecer. eram os teus olhos, labirintos de água, terra, fogo, ar, que eu amava quando imaginava que amava. era a tua voz que dizia as palavras da vida. era o teu rosto. era a tua pele. antes de te conhecer, existias nas árvores e nos montes e nas nuvens que olhava ao fim da tarde. muito longe de mim, dentro de mim, eras tu a claridade.

José Luís Peixoto
fingir que está tudo bem: o corpo rasgado e vestido com roupa passada a ferro, rastos de chamas dentro do corpo, gritos desesperados sob as conversas: fingir que está tudo bem: olhas-me e só tu sabes: na rua onde os nossos olhares se encontram é noite: as pessoas não imaginam: são tão ridículas as pessoas, tão desprezíveis: as pessoas falam e não imaginam: nós olhamo-nos: fingir que está tudo bem: o sangue a ferver sob a pele igual aos dias antes de tudo, tempestades de medo nos lábios a sorrir: será que vou morrer?, pergunto dentro de mim: será que vou morrer?, olhas-me e só tu sabes: ferros em brasa, fogo, silêncio e chuva que não se pode dizer: amor e morte: fingir que está tudo bem: ter de sorrir: um oceano que nos queima, um incêndio que nos afoga.

José Luís Peixoto
Nonnetta

Não gosto do imediatismo,
prefiro a conquista,
a conversa antes mesmo de qualquer atitude,
a confiança antes da entrega,
que meu coração esteja pronto
para um eventual desastre ou sinal de felicidade.

Celso Andrade
Há um espaço no coração
o qual não sei o tamanho
entre o amor e o desamor
sobra apenas uma fresta.

Um ligar e desligar
onde cabe tudo...
Início, meio e fim que
um relacionamento
pode oferecer.

Vivo nesse meio termo
onde restou-me a ausência
e o silêncio abrasador

Beiro o absurdo do convívio
entre a lembrança
e o vazio no coração
soprando-lhe pó de esperança.

Celso Andrade

sexta-feira, 19 de março de 2010

XIX

Nadya Kulikova
Teus passos somem
Onde começam as armadilhas.
Curvo-me sobre a treva que me espia.

Ninguém ali. Nem humanos, nem feras.
De escuro e terra tua moradia?

Pegadas finas
Feitas a fogo e a espinho.
Teu passo queima se me aproximo.

Então me deito sobre as roseiras.
Hei de saber o amor à tua maneira.

Me queimo em sonhos, tocando estrelas.

Hilda Hilst

quinta-feira, 18 de março de 2010

[...] Nunca perdi a pressa. Calma aparente, não de todo. Dentro, bem Quintana: 'Em mim, na minha alma, pressinto que vou ter um terremoto'. Mas encontro as docilidades de Deus nas coisas mais banais e tudo serena. Por tanto ansiar, temo. Não é resistência, é bicho ferido. Puro instinto. Se tu me tocar poderá ler em minha pele toda minha história, assim como se lê entre as estrelas os caminhos.
Aceito, se me der a mão e caminhar vacilante comigo sobre as linhas de nossas vidas.

Equilibrista. Lá em baixo, a teia do destino que o nosso cuidado trançar. Porque destino se faz assim: abre bem a palma da mão, inspira-se no que deseja, e desenha com pirógrafo. Se cair? Aproveita o voo. Ícaro. Se derreter? Melhor. Coloco um brinco de pavão na orelha esquerda. Sabedoria Indígena. Perto do perigo, aves se eriçam.
Sei que o outro é sempre um outro. Já me olhei nos olhos até saber quem sou. Não espero completude, só cumplicidade. Aprendi a não esperar, mais. Nem desesperar, tanto.

Entenda, a vida tem me embalado de um jeito tão único que só encontrei meus passos com total entrega. Quando desando, sei bem o que quero... mas não sei se posso. Não quero licença para ser feliz. Não mais. Se preciso for, quero mostrar os dentes pelos meus direitos. E ter a ousadia de erguer a mão direita até a sua nuca. Perdi minha natureza selvagem em algum lugar, já encontro. Por isso as ausências. Mas minhas fomes sempre ditaram o meu ritmo e nenhuma palavra me brota dos dedos se não salivar na boca. [...]

Cecília Braga

quarta-feira, 17 de março de 2010

[...] Uma esquizofrenia teológica, eu sei, quando fica tudo confuso assim, meu descanso é recolher-me como um tatu-bola e repetir até passar a crise, Senhor, tem piedade de mim. Até em sonhos repito, Senhor, tem piedade de mim, é perfeito. Sensação de confinamento outra vez, minha pele, minha casa, paredes, muro, tudo me poda, me cerca de arame farpado. [...]

Adélia Prado, in: Quero Minha Mãe. Ed. Record


Hoje estou melancólica e suspirosa [...] choveu muito, a água invadiu este porão de lembranças, bóiam na enxurrada a caminho do rio. Deixo que naveguem, pois não as perderei. O rio é dentro de mim.

Adélia Prado, in: Filandras. Ed. Civilização Brasileira

terça-feira, 16 de março de 2010


[...] Hoje de manhã eu acordei e fiquei olhando para tudo catatônica, um misto de susto com deslumbramento. Me dei conta de que essa é a pior e a melhor fase da minha vida. Eu nunca andei tão triste e nem tão feliz. Foi difícil enterrar tantos mortos e tantas rotinas, mas está sendo muito fácil viver dentro de mim.

Tati Bernardi

segunda-feira, 15 de março de 2010

Epitáfio V

Nunca dei presentes a ela, nunca recebi nada. Não conheci a letra dela, nunca a vi escrevendo. Não sei se sua caligrafia era redonda ou inclinada, legível ou feia, ou se ela colocava bolinhas em lugar dos pingos nas letras. Eu nunca disse que a amava nem a ouvi dizer isso para mim. Nunca falamos em amor, de filhos, de amantes, de passado. Do futuro. Fodíamos, apenas.

Nunca soube seu signo nem ela o meu. Ela não me falou sobre sua cor favorita ou sua cor predileta. Sua primeira vez. Ela não perguntou sobre a minha. Não sei se ela possuía todos os dentes. Nunca conversamos sobre religião, não sei se ela acreditava em Deus. Em reencarnação ou em horóscopo. Não sei se ela gostava de gatos ou se pensou em colecionar selos. Nunca perguntei se ela se interessava por política, futebol ou mesmo se tinha o costume de ser masturbar. Não sei se ela cozinhava bem o prato de que gostava mais. O que achava da moda, ela jamais me falou. Curtia samba? E caipirinha? Como foi quando criança, ela não me contou. Qual seu número de sorte? Eu pagava pra saber se alguma vez aconteceu de ela olhar com desejo para outra mulher. O nome de seus pais, o que ela achava de homens com barba, das loiras, de armas e de tatuagens - são coisas que nunca vou saber. Não descobri se em alguma ocasião ela passou fome na vida. Se teve uma tia epiléptica. O que achava dos pretos? E dos cavalos? Gostava de novelas? O que pensava de garotas que pedem a sujeitos que batam nelas na hora de trepar? Achava o que do dinheiro, essa mulher? Que número calçava? Tinha medo de baratas. Terá algum dia o pai espancado a mãe na frente dela (e, diante de seu protesto, mandado que calasse a boca pra não tomar uns sopapos também)? Será que, como eu, ela achava que a felicidade é um negócio que inventaram para enganar os pobres, os feios e os esperançosos? Não sei se ela teve um primo que vivia pedindo dinheiro emprestado. Não sei se tomou drogas um dia ou se era bamba em matemática no tempo da escola. Se gostava de resolver as palavras cruzadas do jornal. Será que ela sabia jogar truco? Teve todas as doenças da infância? Tinha ideia de como é que os caras matam os cavalos para fazer mortadela no sul da Bahia? Foi assaltada alguma vez? Transou quando na verdade estava afim de dormir e esquecer? Nunca soube se ela viajou de trem ou de navio. Se teve vontade de matar alguém que um dia amou. Se cortou os cabelos só para agradar a algum homem. Se cortou o pé em caco de vidro quando mais nova. Se em algum momento humilhou alguém e se arrependeu depois. Se gostava de brócolis. Se pensou em sexo com animais. Se alguma noite perdeu o sono por causa de dívidas. Se pensou em fugir. Se lembrava dos sonhos depois que acordava. Se sonhava. Se tinha medo de doar sangue. Se sorriu para pessoas pensando em mandá-las à merda. Se bolou perversões com integrantes da família. Se sentiu saudade. Eu nunca soube o que essa mulher achava do papa. E de velhas que ainda usam laquê. Eu não sei onde ela estava quando a Seleção ganhou a Copa de 94. Se ela tomou algum porre de vinho. Terá ela fingido alguma vez que a coisa estava muito boa quando estava apenas morna? Compreendeu o significado da palavra "sacrifício" a tempo? Será que ela se orgulhou de algo de que deveria se envergonhar? Será que se lembrava da primeira vez que viu o mar? Do primeiro beijo? Será que ela se sentiu digna em alguma oportunidade? E suja? Eu nunca soube o que ela achava do salário-mínimo. Da ioga. Das surubas. E das coisas que assustam quando pensamos nelas. De gente que tem medo de escuro. E de quem sabe que temos escuros dentro da gente. Eu não soube nada disso. Apenas fodíamos. E era bom.

No entanto, eu sabia sua altura. Porque ela precisava ficar na ponta dos pés toda vez que nos beijávamos.

E sabia seu peso: ela me falou um dia, na cama, quando quis ficar por cima.

Marçal Aquino, in: O Amor e Outros Objetos Pontiagudos. Ed. Geração

domingo, 14 de março de 2010


[...] Amar dói tanto que você fica humilde e olha de verdade para o mundo, mas ao mesmo tempo fica gigante e sente a dor da humanidade inteira. Amar dói tanto que não dói mais, como toda dor que de tão insuportável produz anestesia própria...

Tati Bernardi
Caroline Feitosa
Se nos encontramos por acaso, porque insisto, então, em não nos perder também por acaso? [...] Em que momento teremo nos perdido, em que olhar, em que noite, em que palavra? Em que piada sem graça, em que gozo forçado, em que indelicadeza? Em que desejo mal realizado?

Em que exato momento nosso amor foi-se, "fodeu-se"? Que horas marcava o relógio, você viu? Eu não.

Nilza Rezende, do conto Por Acaso, in: 25 Mulheres que Estão Fazendo a Nova Literatura Brasileira. Org. Luiz Ruffato. Ed. Record

findo o dia
minhas pernas vão para casa

vão chorando

querem esquecer o caminho.

Mariana Botelho

Separação

Leszek Kowalski
aquele homem
era a minha rotina

eu cerzia suas roupas
limpava seus sapatos

ele fazia do meu corpo
um caminho só de ida.

Mariana Botelho

Micro

Vânia Medeiros
moço olha bem no meu olho. vê? isso é um abismo. você não vai querer pular. vai?

Mariana Botelho

Avanço

Bubbles
É, eu esqueço. Um monte de vezes, eu ainda esqueço.

Esqueço os jeitos que já sei capazes de hidratar o meu coração quando os desafios se tornam mais tórridos. Como alimentar a minha fé quando o cansaço tenta desnutri-la. Como expandir o meu amor quando o medo faz de tudo para estreitar o meu olhar. Como acender jardins quando as circunstâncias parecem querer apagar as sementes. Como dizer sol quando o céu dos instantes diz um mundaréu de nuvens espessas. Como manter vívida a chama da ternura num tempo de tanta covardia afetiva.

É, eu esqueço. Um monte de vezes, eu ainda esqueço, mas não por muito tempo como antes.

Ana Jácomo

sexta-feira, 12 de março de 2010

Frida Kahlo, o martírio da beleza

Frida Kahlo
Há anos Frida Kahlo me persegue. Tentei fugir, não consegui. Desde os anos 70, redescoberta pelas feministas, quando fotos dela começaram a aparecer nas revistas, eu tinha medo. E me recusava a ler. Bastava aquele rosto duro, de pedra, metade asteca, metade etrusco, buço e sobrancelhas cerrados, olhar direto, arrogante. Sem saber quase nada, eu intuía qualquer coisa terrível na história de Frida. Descobri depois: era ainda mais terrível do que poderia imaginar.

Veio então um filme mexicano extraordinário, numa exibição especial qualquer, com certa atriz magnífica (não lembro o título, talvez Frida, algum cinéfilo me diga por favor). Saí do cinema aos prantos. E devorei, numa noite, uma biografia escrita por Rauda Jamis. Aterrorizado, fascinado. Ó Deus, por que a beleza pode ser tão medonha? Ou ao contrário, por que o medonho pode ser tão belo? Vieram então os quadros. As cores, as corças feridas com cabeça humana, corpos esquartejados, colunas vertebrais metálicas, as pernas amputadas, pregos na carne: a Dor. Maiúscula, maior que tudo. E sempre o rosto. Em todos os quadros, o rosto indescritível.

Em Paris, há três anos, caminhando por uma mostra de arte mexicana no Beaubourg, de repente tive uma espécie de vertigem. Que, estranho, não vinha de dentro de mim, mas emanava de um ponto na parede. Olhei: era uma explosão de cores primárias, brilhantes, exageradas. Era uma das dezenas de auto-retratos de Frida Kahlo. Amarelo, vermelho, verde, lilás. Tive febre, depois. E comprei um livro de reproduções, as livrarias de SaintGermain-des-Prés estavam cheias deles. E as de Amsterdam, as de Berlim, as de Milão e Londres e Oslo também, fui descobrindo. A imagem martirizada de Frida Kahlo estava por toda a parte, como um Cristo-mulher contemporâneo. Um Cristo artista, bissexual, bêbado, drogado, adúltero, arrancando sua transcendência do próprio sangue, com as próprias unhas. E eu cruzava a Europa de ponta a ponta ouvindo Adriana Calcanhoto cantar no walkman: “Eu ando pelo mundo/ Prestando atenção em cores/ Cores que eu não alcanço/ Cores de Almodóvar, cores de Frida Kahlo, cores”.

Agora leio O diário de Frida Kahlo, um livro lindíssimo da Livraria José Olympio Editora, publicado no mundo todo este ano a partir de cadernos deixados no Banco do México. Os diários, escritos com tinta colorida, entremeados de desenhos perturbadores, com símbolos esotéricos hindus, celtas, pré-colombianos, cobrem os anos de 1944-1934. Sempre deitada, coberta de panos e mantas de seda índios, cheia de jóias extravagantes, ela olhava-se ao espelho e pintava e escrevia sem parar o que conhecia melhor: a própria dor. A coluna bífida, poliomielite, uma perna esmagada e amputada, várias fraturas na coluna, 33 cirurgias durante uma vida de apenas 47 anos.

Sobre aquele rosto, diz Carlos Fuentes, que a viu apenas uma vez no Palácio das Belas-Artes da Cidade do México: “O corpo é o templo da alma. O rosto é o templo do corpo. E quando o corpo decai, a alma não tem outro santuário a não ser o rosto”. E Frida, que era poeta, diz assim, cito em espanhol, que é mais belo: “Desde que me escribiste, en aquel día tán claro y lejano, he querido explicarte que no puedo irme de los días, ni regresar a tiempo ai otro tiempo. No te he olvidado — las noches son largas y dificiles”. E diz mais, escute, é importante: “Lo que más importa es la no-ilusión. La mañana nace”.

Passo noites longas, difíceis, o sono raro, entre fragmentos febris de suores e pesadelos, assombrado por Frida Kahlo. Choro muito. Não consigo terminar o livro, não consigo parar, não consigo ir em frente. Seguro sua mão imaginária no escuro do quarto e sei que seja qual for a dimensão da minha própria dor, não será jamais maior que a dela. Por isso mesmo, eu o suportarei.
Como ela, em sua homenagem, Frida.

Caio Fernando Abreu, in: Pequenas Epifanias / O Estado de S. Paulo, 29/10/1995 / Ed. Agir

Imagens I

Para evitar malentendidos
digamos desde já que nos amamos.

Cacaso

Happy End

Alone Gut

o meu amor e eu
nascemos um para o outro.

agora só falta quem nos apresente.

Cacaso, in: Beijo na Boca. Ed. 7 Letras

Ah!

I Hate Cinderella

Ah se pelo menos o pensamento não sangrasse!
Ah se pelo menos o coração não tivesse
[memória!
Como seria menos linda e mais suave
minha história!

Cacaso

Psicórdica

vamos dormir juntos, meu bem,
sem sérias patologias.
meu amor este ar tristonho
que eu faço pra te afligir,
um par de fronhas antigas
onde eu bordei nossos nomes
com ponto cheio de suspiros.

Adélia Prado, in: Bagagem. Ed. Record

quinta-feira, 11 de março de 2010

Vela

um dia eu sei que vi
o farol do infinito em seu corpo

quando o tempo apagou as luzes
e perdeu o infinito no mar
restou um barco sem pouso

e esse jeito de sonhar aos poucos.

Raiça Bomfim

terça-feira, 9 de março de 2010

Tradução

Alfred Gockel
Se a linguagem é uma caixa de ferramentas
com a qual eu tento
traduzir
as linhas do seu rosto,
pego o martelo
e esmago os sentidos que ficaram por vir.
você achava que havia um problema
de interpretação
e que quando eu dizia te quero
você não sabia se eu te amava ou não.
é certo que não entendo a sua língua
e às vezes entendo apenas a sua língua,
nada mais,
e por isso apanho pregos e cola
para consertar nossos equívocos.
e por mais que seja possível determinar a sintaxe
das frases
não sei como as minhas coxas vão parar
insistentemente
em cima da sua perna.
você dizia que era uma questão de pragmática,
e não de semântica,
enquanto eu me punha a procurar os fósforos
que iluminam a nossa topografia, nossas viagens
sem bússolas
nossos percursos sem mapas
– somos sempre estrangeiros.
mas se a linguagem é mesmo uma caixa de ferramentas,
que formão é capaz de abrir-me o peito?

Izabela Leal

segunda-feira, 8 de março de 2010

Oco

I Hate Cinderella

De tudo que passou
só restou esse terreno baldio,
esse vazio,
pois a saudade aperta
mas não ocupa espaço.

Ivana Arruda Leite

Pixe

Monislawa
A lembrança dos teus beijos
só serve
pra deixar
minha alma
ainda mais impermeável.

Não quero mais saber de buracos.

Depois que você se foi
eu me asfaltei inteira.

Ivana Arruda Leite

Ofertório


Mais do que o bico do meu seio
eu te dei meus versos
onde os próprios seios se inspiram
e se tornam rosas e breves
como versos de menina.

Ivana Arruda Leite
ser pessoa
todo mundo é
até fernando.

ser gente é que é difícil
genético vício
gen(ético)
a gente é para o que nasce...

desde já te digo
quero deus e já
nem que seja por derrida
nem que seja ao deus de dar
nem
ou seja
sei lá
quero ser gente.

Gabriela Marcondes

Predição

Fazer da
busca o
ideal.

Rasgar o ventre de
todas as noites
para encontrar
a aurora.

O que não somos hoje
é o que há de nos
esmagar
amanhã.

Eunice Arruda

domingo, 7 de março de 2010

Propósito

Leszek Kowalski
Viver pouco mas
viver muito.
Ser todo o pensamento
Toda a esperança.
Toda a alegria
ou angústia — mas ser.

Nunca morrer
enquanto viver.

Eunice Arruda
Leonilson
um riso sem um
rosto(um olhar
sem um eu)
cuida

do(não to
que)ou
desaparec
erá semru

ído(na doce
terra)&
ninguém
(inclusive nós

mesmos)
relem
brará
(por uma fra

ção de
um mo
mento)onde
o que como

quando
por que qual
quem
(ou qualquer coisa)

E.E. Cummings / Tradução de Augusto de Campos

sexta-feira, 5 de março de 2010

Quando a minha mente está calma

Quando a minha mente está calma, eu acesso uma confiança que é descanso e proteção. Uma fé genuína na preciosidade da vida. Sinto que tudo em mim se reorganiza, silenciosamente, o tempo todo. Que isso tem mais a ver com o meu olhar, com a natureza das sementes que rego, do que eu possa perceber. Minha expectativa, tantas vezes ansiosa, de que as coisas sejam diferentes, dá lugar à certeza tranqüila de que, naquele momento, tudo está onde pode estar. Em vez de sofrer pelas modificações que ainda não consigo, eu me sinto grata pelas mudanças que já realizei. E relaxo.

Quando a minha mente está calma, eu acesso uma clareza que me permite sentir, com mais nitidez, que há uma sabedoria que abraça todas as coisas. Que o tempo tem uma habilidade singular para reinventar nosso roteiro com a gente, toda vez que redefinimos o que, de verdade, nos importa. Que há um contentamento perene no nosso coração. Um espaço de alimento amoroso. Uma fonte que buscamos raras vezes, acostumados a imaginar a felicidade somente fora de nós e a deslocá-la para distâncias onde não estamos.

Quando a minha mente está calma, os sentidos se expandem e me permitem refinar sensações e sentimentos. Posso saborear mais detalhes do banquete que está sempre disponível, mesmo quando eu não o percebo. Nesse lugar de calma e clareza, não há nada a desejar. Nada a esperar. Nada a buscar. Nenhum lugar onde ir. Eu me sinto sentada sob a sombra de uma árvore generosa, numa tarde azul sem pressa, os pássaros bordando o céu com o seu balé harmonioso. O meu coração é pleno, nenhuma fome. Plenitude não é extensão nem permanência: é quando a vida cabe no instante presente, sem aperto, e a gente desfruta o conforto de não sentir falta de nada.

Ana Jácomo

Nau


Todo dia
navego em mim,
depois apago a luz.

Andréa Motta

Borbulho

Alaya Gadeh
Existe um borbulho
dentro de mim
de gestos
afetos
revoltas

Existe um borbulho
dentro de mim
de cores
palavras e versos
a construir

Existe um borbulho
dentro de mim
lava
anseio vulcânico
por uma vida
que não é esta.

Asta Vonzodas

Não lhe pedi nada

Katia Chausheva
Não lhe pedi nada,
nem que foste comigo,
nada.
Permaneço nesta cadeira de madeira, planando.
Enxuga os teus olhos destas terríveis lágrimas.
Enxuga teus olhos destas mágoas.
Queres meu lenço mágico?

Elaine Pauvolid

terça-feira, 2 de março de 2010

Segredos no silêncio

Alaya Gadeh
eu te escrevo, embora ninguém entenda
que nesse silêncio te revelo meus segredos;
escrevo e te amo, porque não há outra forma
de passar pela vida se não passares comigo;
me guarde perto das coisas que levaste
para contar quando tudo já estiver tarde;
me eternize num feliz retrato que nenhum poema
ainda conheceu, pois que é só teu meu riso;
não me esqueça, não me deixa, nem parta,
porque agora a inspiração é farta
de tanta rima que surge no teu beijo;
e quando te tenho, e te recebo,
e vens me invadindo o mundo
ah, por esse segundo
eu daria a eternidade inteira.

Cáh Morandi