domingo, 31 de janeiro de 2010

Tenho aprendido com o tempo que a felicidade vibra na frequência das coisas mais simples. Que o que amacia a vida, acende o riso, convida a alma pra brincar, são essas imensas coisas pequeninas bordadas com fios de luz no tecido áspero do cotidiano. Como o toque bom do sol quando pousa na pele. A solidão que é encontro. O café da manhã com pão quentinho e sonho compartilhado. A lua quando o olhar é grande. A doçura contente de um cafuné sem pressa. O trabalho que nos erotiza. Os instantes em que repousamos os olhos em olhos amados. O poema que parece que fomos nós que escrevemos. A força da areia molhada sob os pés descalços. O sono relaxado que põe tudo pra dormir. A presença da intimidade legítima. A música que nos faz subir de oitava. A delicadeza desenhada de improviso. O banho bom que reinventa o corpo. O cheiro de terra. O cheiro de chuva. O cheiro do tempero do feijão da infância. O cheiro de quem se gosta. O acorde daquela risada que acorda tudo na gente. Essas coisas. Outras coisas. Todas, simples assim.

Ana Jácomo

Canção para o Exílio

Minha terra sem palmeiras
tem poetas a cantar
A vida, eu quero inteira
mas ela fugiu de lá

Dos nossos céus roubaram estrelas
Somos vazos, mas sem flores
nesta terra o amor
é tão frio quanto a morte

Em versar, na pura noite
nem meus versos são de lá
desmataram as florestas
onde tinha sabiá

Minha terra tem amores
que Deus não quis inventar
em versar - eu choro as dores
que me fazem encontrar
e ainda sonham com palmeiras
onde canta o sabiá

Me permita Deus que eu morra
mas não volte para cá
que não sinta mais as dores
nem Gonçalves a cantar
a ilusão dessas palmeiras
e seu doente sabiá.

Sérgio Silva

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Claudia Degliuomini
Às vezes sinto vontade de distanciar-me do solo, às vezes preciso fazer transbordar o mundo inteiro de amor, às vezes necessito de êxtase para alimentar meu cérebro.
Quando não existe nada mais senão eu e o céu estrelado, a lua assume uma expressão infantil e não ouso mais lhe sorrir. Sinto poder ser uma criança também, são elas os verdadeiros observadores do universos.

Mian Mian, in: Bombons Chineses. Ed. Geração

Confesso

nem tudo que disse foi acerto,
que não reconheço quase nada como erro,
que volto atrás em promessas sérias,
que muitos chutes foram trave,
que trave, para mim, é um quase acerto,
o limite do engano... e isso é grave.

que era eu ao telefone
porque tem dias, poucos, que um alô é muito
e o muito, muitas vezes me cala.

confesso
quis também um silêncio salmoura
que me reconhecesse antes mesmo de ser alô
e também se calasse
que dissesse sei que foi você,
porque só seu silêncio me dói
e isso bastasse.

Roberta Silva

Inconcordante

Meus olhos chorou.
Neles lágrimas para um só.
Alma plural, verbo singular.
O outro jaz.
Perdão, foi o melhor que pude.
A dor cavou,
mas não encheu o açude.

Roberta Silva

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Foi num dia de muita chuva
E pouco lugar pra me esconder,
Que o amigo olhou-me e disse:
Sigamos com calma e fé
A chuva não passou,
Tampouco se abrandou,
Mas, a partir dali,
Perdi o medo de me molhar.

Renata Pereira

Pra não sentir (auto) piedade

quero uma tarde de vento. ventania. um tornado. leve. que me leve ao chão. quero machucar o joelho. joelhos. terra carne sangue vento. minhas compras ao chão a encontrar novos livros. quero o cuidado de mãos estrangeiras. desconhecidas. um apartamento num prédio antigo. quem sabe um café de esquina. quero uma poesia arrancada. como um souvenir. aulas de cerâmica. algo que eu fizesse por mim mesma. um festival de filmes asiáticos. quero a alegria. o toque da descoberta. a primeira noite. a sensibilidade dos infiéis. a coragem dos suicidas.

Nina Rizzi
Penso em você todos os dias, todos os dias me interrogo, os hábitos são tão difícies de mudar, meu doce e pequeno coração perdeu sua doçura, porque caminha assim tão solitário, não tem medo da tempestade que se levanta no mar? Se a água corrente pode mudar de rumo, leve-me com você, se viro água corrente as lágrimas continuarão a cair, se eu sou água límpida, não voltarei atrás, o tempo passa, o tempo é fugidio, não volta nunca. Como são bonitas as flores desabrochando nos galhos, elas murcham, florescem novamente, como compreender, você é a estrela, eu sou a nuvem, é o amor que carece de profundidade ou somos nós que não éramos predestinados. É preciso aceitar tudo o que está ao seu lado hoje, você me ama, eu a amo, não pergunte de onde vem o amor, não queira saber de onde sopra o vento, o amor é como uma canção ou um quadro, espero que você não me esqueça, o vento veio me perguntar: o que é a solidão? Ainda sou tão jovem, como posso saber? A nuvem veio me perguntar: o amor é alegre? Eu que não posso ainda distinguir as emoções, como poderia saber?

Mian Mian, in: Bombons Chineses. Ed. Geração

Encostando o ouvido à noite

Se tu soubesses da solidão das palavras
enrolarias o silêncio
na noite sem pirilampos

depois
como numa prece

ouvirias do mar o canto.

Helena Monteiro

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Para sempre

Como num soluço
a solidão

passadas as framboesas
perdidos os aloendros
só o malmequer
na cozinha junto ao sol
permanecia

malmequer
bem me quer
muito
pouco
nada

sorriu

ainda ouvia murmurar
deste poema o título.

Helena Monteiro
Intimidade é quando a vida da gente relaxa diante de outra vida e respira macio. Não há porque se defender de coisa alguma nem porque se esforçar para o que quer que seja. O coração pode espalhar os seus brinquedos. Cantar a música que cada instante compõe. Bordar cada encontro com as linhas do seu próprio novelo. Contar as paisagens que vê enquanto cria o caminho. Andar descalço, sem medo de ferir os pés.

Ana Jácomo

sábado, 23 de janeiro de 2010

Invasão

Às vezes a alegria chega de mansinho. Vem pelos cantos, pelas beiradas, pela fresta da porta, invade e não pede licença. Transforma.
Muda um ser inteiro e os que estão à sua volta...
É preciso ter espaço e coragem para deixá-la fazer morada.

Celso Andrade
Que eu não perca a capacidade de amar
e ver as coisas melhor no futuro.
Que o presente que vivemos juntos
não tire a esperança que me faz ver melhor
as coisas e as pessoas, nem faça-me perder
tempo, sem compartilhamento de afetos.

Celso Andrade

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

I Hate Cinderella
[...] Estou amarga com simplicidade, e isso é relaxante já que vivo cheia de complicações. A amargura é muito mais simples que a esperança. Estou triste do tamanho do buraco sem vida que você deixou em mim, uma concavidade sonhadora que ainda pulsa um desejo que ao mesmo tempo enoja.
Ainda sinto você aqui dentro e toda a energia boa de vida que esta lembrança poderia gerar em mim, mas essa energia sem escape, sem válvula, sem história, essa energia inocentemente transformada em ódio, só carrega ondas que me corroem por dentro. [...]

Tati Bernardi

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Texturas

Não te preocupes em me decifrar,
sou costurada com a linha da ambigüidade,
vestida de discursos de calar.
Não procure em mim suas verdades
minha bainha não foi feita,
toco em todas as texturas.
Minha cor não foi eleita,
sou camaleão sem cura.

Sou verso de intuição,
pergunta possível,
tentativa de explicação.

Meu verso é repleto de possibilidades,
não possuo seqüência, não possuo métrica.
Sou cúmplice da dualidade,
rima anacrônica perdida na realidade.
Não te preocupes em me decifrar.

Gabriela Marcondes

15. Janelas

A vida abre
caminhos:
existencialismo de Sartre.

Eu me envolvo
com o mundo
e me escondo
(atrás das portas)
até alguém me descobrir.

Quando o silêncio expandir minha voz,
eu estou aqui.

Isso tudo
quando percebo
janelas.

Fabiana Borgia

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

14. Amor por amor

Insônia profunda
quando meus eus explodem
como heterônimos de Fernando Pessoa.
Agora encarno Vinicius
e seu excesso de amor.

Amor por amor.
No Rio de Janeiro,
eu me faço carioca
em estado de espírito.

Insônia insana,
quando meus egos exteriorizam
almas de todos os tipos.

Agora eu assumo Drummond
na minha individualidade solitária
e me faço de Itabira,
que até a tristeza me diverte,
e penso nos sonetos de Camões,
e nas chagas do amor.

No espasmo vem o marasmo,
um truque desconcertante,
e eu escureço na minha palidez,
e transpareço um oceano de lembranças,
mas a morte não clama por mim,
porque a vida me contempla,
em todos os seres me chama
como continuação,
e eu não deixo de existir.

Fabiana Borgia

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Nem águas e nem março

é cal
é cedro
o fim do princípio
do resto do ninho
calvário de dor.

é o nada é o tudo
assim tão sozinhos
é o vale
é o toco
que sobram
do amor.

é a casa vazia
é a palma
é o pé
é dezembro a chegar
dias de santa fé.

é a minha tristeza
que brota
e caminha
se espalha
encantada

qual erva daninha.

Eliana Mora

Aqui ficam as coisas

Aqui ficam as coisas.

Amar é a mais alta constelação.

Os sapatos sem dono
tripulando
na correnteza-espaço
em que deitamos.

As minhas mãos telhado
no teu rosto de pombas.

Os corpos circulando
na varanda dos braços.

É a mais alta constelação.

Carlos Nejar

(...)

tentar chegar ao amor
é como reduzir da terceira para a segunda,
engrenar a marcha ré e pisar fundo,
é desacelerar, é querer voltar,
é desfazer as malas e voltar para casa,
é não perder o cheiro,
é não cobrir o corpo,
é não perder o tato,
é querer ficar,
é não abandonar as memórias...
tentar chegar ao amor:
pensar na primeira coisa
que deveria se esquecer.

Cáh Morandi

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Relacionamento perfeito

O assunto pode ser dramático ou engraçado, tão humano e tão difícil de entender.

A mim, sempre buscando explicações e significados porque tão pouco entendo, me ocorre falar ou escrever exatamente sobre aquilo que menos sei. Trabalho interminável, espécie de suplício de Tântalo: o pobre todo dia empurrando montanha acima uma grande pedra que voltava a rolar pela encosta, a fim de que o torturado recomeçasse mais uma vez.

Querer alcançar o significado das coisas, da vida, das gentes, de seus relacionamentos e desencontros, é um pouco assim.

Seguidamente me indagam – ou tento imaginar – o que seria um relacionamento perfeito. Eu ia escrever “casamento”, mas preferi a outra palavra, porque ela não tem nada a ver com cartório e burocracia, opressão ou coerção social e familiar: tem a ver com querer se ligar a alguém, e querer continuar ligado.

Cada dia, ao acordar, fazer de novo a escolha: eu quero mesmo é você comigo.

Mas “perfeito” é uma palavra tola: perfeição, só no céu de todas as utopias. Aqui, nesta nossa terra nada utópica, perfeição me pareceria um pouco entediante: como, nada a reclamar, tudo assim direitinho?

Olho pela janela e bocejo: muito sem graça, a tal perfeição. O céu com anjos tocando harpa pelo tempo sem tempo me deixava pasmada já na infância. Nada mais? Nem uma brincadeira proibida, um escorregão nas nuvens, uma risada na hora do sagrado silêncio... nem uma transgressãozinha na ordem celestial?

Minha alma indisciplinada não encontraria alimento nem estímulo, e ia-se desfazer em fiapo de nuvem embaixo de algum armário onde se guardassem os relâmpagos e os trovões, e todas as duras sentenças.

Então, relacionamento perfeito, nem pensar.

Mas uma ligação de cumplicidade e ternura, de sensualidade e mistério, ah, essa eu acho que pode existir. Como todos os contratos (não falo dos de papel mas de corpo, coração e mente), esse precisa ser renovado de vez em quando: a gente tira o contrato da gaveta da alma, e discute. Briga talvez, chora, reclama, mas ainda ama, ainda deseja. Ainda quer o abraço, o passo no corredor, o corpo na cama, o olhar atento por cima da xícara de café... quer até a desorganização e a ruptura, para depois de novo o que é bom se reconstruir.

Que seja vital: isso me parece uma boa parceria. Que seja dinâmica, seja lá o que isso significa em cada caso. Pelo menos, não acomodada; mas muito aconchegante.

Que seja sensual e amiga, essa ligação: se não gosto do outro como ser humano, com seus defeitos, sua generosidade e egoísmo, força e fragilidade, se não o quereria como amigo... como então, mesmo com tempero do desejo, posso me relacionar com ele para uma vida a dois?

O tema é quase infinito: pois cada caso é um caso, assim como cada casal é um casal, e cada fase da vida do indivíduo ou dos dois é diferente.

O bom é quando essa constante transformação se faz para maior cumplicidade, e não mais distanciamento.

Que um relacionamento não seja prisão; que não seja enfermaria nem muleta; mas que seja vida, crescimento (turbulências eventuais incluídas).

Que seja libertação e ajuda mútua; não fiscalização e condenação, a sentença pronunciada numa frase gélida ou num olhar acusador, ar de reprovação ou lamúria explícita.

Que seja cumplicidade, porque a vida já é difícil sem afetos. O som dos passos no corredor pode ser um conforto inacreditável, o corpo ao lado na cama uma âncora para a alma aflita. O entendimento recíproco é um oásis no isolamento desta nossa vida pressionada por tempo, dinheiro, regras, mil solicitações de família, trabalho, grupo social, realidade do mundo.

Que seja presença e companhia, o relacionamento bom: pois a solidão é um campo demasiado vasto para ser atravessado a sós.

Lya Luft, in: Pensar é Transgredir. Ed. Record

Respiro o teu corpo

Katia Chausheva
Respiro o teu corpo:
sabe a lua-de-água
ao amanhecer,
sabe a cal molhada,
sabe a luz mordida,
sabe a brisa nua,
ao sangue dos rios,
sabe a rosa louca,
ao cair da noite
sabe a pedra amarga,
sabe à minha boca.

Eugénio de Andrade

Espera

Katia Chausheva
Horas, horas sem fim,
pesadas, fundas,
esperarei por ti
até que todas as coisas sejam mudas.

Até que uma pedra irrompa
e floresça.
Até que um pássaro me saia da garganta
e no silêncio desapareça.

Eugénio de Andrade

Depois de tudo

Mas tudo passou tão depressa
Não consigo dormir agora.
Nunca o silêncio gritou tanto
Nas ruas da minha memória.
Como agarrar líquido o tempo
Que pelos vãos dos dedos flui?
Meu coração é hoje um pássaro
Pousado na árvore que eu fui.

Cassiano Ricardo

Pudesse eu

 Pudesse eu não ter laços nem limites 
Ó vida de mil faces transbordantes
Para poder responder aos teus convites

Suspensos na surpresa dos instantes.


Sophia de Mello Breyner Andresen, in: Poesia I, 1944
. / Poemas Escolhidos. Seleção Vilma Arêas. Ed. Companhia das Letras

Mãos

Côncavas de ter
Longas de desejo
Frescas de abandono
Consumidas de espanto
Inquietas de tocar e não prender.

Sophia de Mello Breyner Andresen, in: Coral, 1950. / Poemas Escolhidos. Seleção Vilma Arêas. Ed. Companhia das Letras

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

Um outro poema de amor

No fundo, as relações entre mim e ti
cabem na palma da mão:
onde o teu corpo se esconde e
de onde,
quando sopro por entre os dedos,
foge como fumo
um pequeno pássaro,
ou um simples segredo
que guardávamos para a noite.

Nuno Júdice, in: O Movimento do Mundo

Um poema de amor

Não sei onde estás, se falas
ou se apenas olhas o horizonte,
que pode ser apenas o de uma
parede de quarto. Mas sei que
uma sombra se demora contigo,
quando me pergunto onde estás:
uma inquietação que atravessa
o espaço entre mim e ti, e
te rouba as certezas de hoje,
como a mim me dá este poema.

Nuno Júdice, in: O Movimento do Mundo

Por um coração mais arejado

Muitas vezes eu também já me perguntei se adianta a gente se empenhar para abrir o coração num tempo de tantos corações rigidamente trancados, em que o medo parece dar as cartas e descartar possibilidades de troca, espontaneidade e amor.

Houve instantes em que duvidei e me questionei se não seria mais seguro, mais tranquilo, mais fácil, tentar interromper o fluxo e fechar o meu coração de novo. No máximo, deixar apenas uma fresta aberta por onde espiar a vida de longe.

Embora não seja necessariamente mais seguro, mais tranquilo, muito menos mais fácil, continuo sentindo que é bem mais leve, alegre e desapertado viver com o coração mais aberto. Sobretudo, para nós mesmos. Ainda que às vezes a gente sinta estar na contramão. Ainda que às vezes esse nos pareça ser um movimento solitário.
No mínimo, corre mais vento.

Ana Jácomo

O momento novo

Igualzinho ao que acontece com todas as pessoas, num trecho ou outro da estrada, eu já senti tanta dor que parecia que os golpes haviam me quebrado toda por dentro. Não sabia se era possível juntar os pedaços, por onde começar, nem se o cansaço me permitiria movimentos na direção de qualquer tentativa. Quando o susto é grande e dói assim, a gente precisa de algum tempo para recuperar o fôlego. Para voltar a caminhar sem contrair tanto os ombros e a vida. Um espaço para a gente quase se reinventar.

O tempo passa. O fôlego retorna. Parece milagre, mas as sementes de cura começam a florescer nos mesmos jardins onde parecia que nenhuma outra flor brotaria. A alma é sábia: enquanto achamos que só existe dor, ela trabalha, em silêncio, para tecer o momento novo. E ele chega.

Ana Jácomo

Força


O que revela a nossa força não é sermos imbatíveis, incansáveis, invulneráveis. É a coragem de avançar, ainda que com medo. É a vontade de viver, mesmo que já tenhamos morrido um pouco ou muito, aqui e ali, pelo caminho. É a intenção de não desistirmos de nós mesmos, por maior que às vezes seja a tentação. São os gestos de gentileza e ternura que somente os fortes conseguem ter.

Ana Jácomo

sábado, 9 de janeiro de 2010


Eu sempre me apaixono por você.Todas as vezes que te vi, eu sempre me apaixonei por você.

Tati Bernardi

Tem tanta gente interessante por aí querendo entrar. Deixa. Deixa entrar: na vida, no coração, na cabeça.

Tati Bernardi

Quinto fragmento da décima terceira voz

Tanto sangue dentro do meu derramado coração, era assim? Talvez fosse, mas não se trata disso. Lamúria insuportável, o corpo, esse que se arrasta com suas carências. Não precisa pressa, calma lá. A porteira está fechada para quem quiser passar, era isso? Já te disse que não responderei.

Quero saber, e depois? Passaram-se meses, ele voltou. Foi longo. Doía. Continua doendo.

Ainda não acabou. Passa, passará. Às vezes ficávamos deitados na minha cama enquanto eu tentava decifrar o seu destino. Marte, Ossanha gostava das folhas, das pedras. De peixes também. Ele me ensinou que as pedras eram vivas. Desde então eu as mantenho imersas em copos cheios d’água, para que cresçam. São muitas. Agora espero outro. Que como ele, não será mais do que Uma Nova Metáfora do Encontro. Por enquanto espio as pombas nas cumeeiras. Quando não há música, canto. Quando paro de cantar, como maçãs. Os talos estão jogados pelo quarto, entre os lençóis. Apodrecem como meus sentimentos, jogados na via-láctea. Esfrego a lâmpada, mas o gênio se foi. Talvez me bata outra vez contra as grades da janela até me levarem para a mesa de choques.

Caio Fernando Abreu, in: Triângulo das Águas. Ed. Agir

Outra canção

Não me deixem ir tão só,
Tão só, transido de frio...
Eu quero um renque de vozes
Por toda a margem do rio!
Como alguém que adormecendo
E umas vozes escutando,
Nem soubesse que as ouvia,
Nem soubesse que as ouvia
Ou se as estava sonhando,
Eu quero um renque de vozes
Por toda a margem do rio:
Vozes de amigo calor
Na lenta e escura descida
Como lanternas de cor
E aonde mais longe eu me for
(Quanto mais longe da vida!)
A borboleta perdida
Da tua voz, pobre amor...

Mario Quintana

Lunário

O que nasce da terra
sou Eu.
O que a terra seca,
aterra e desterra.

Pelo vinco sagrado,
desenterro-me
sob o palácio estrelado,
aterrorizado.

Sou teu filho, Estrondo.
Sou teu filho, Espanto.
Sou teu filho, Luz.

Nasci do mistério
e estranho tudo.
Mas floresço
e sei.

Raiça Bomfim

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

Fragmentos de um discurso amoroso

Abraço


O gesto do abraço amoroso parece realizar por um momento, para o sujeito, o sonho de união total com o ser amado.




Adorável


Não conseguindo nomear a especialidade do seu desejo pelo ser amado, o sujeito apaixonado chega a essa palavra um pouco tola: adorável.



Afirmação



Ao contrário de tudo e contra tudo, o sujeito afirma o amor como valor.





Angústia

O sujeito apaixonado, do sabor de uma ou outra contingência, se
deixar levar pelo medo de um perigo, de uma mágoa, de um abandono, de uma reviravolta - sentimento que ele exprime sob o nome de angústia.




Ausência

Todo episódio de linguagem que põe em cena a ausência do objeto amado - quaisquer que sejam a causa e a duração - e tende a transformar essa ausência em prova de abandono.



Chorar


Propensão particular do sujeito apaixonado a chorar: modos de aparição e função das lágrimas do sujeito.





Compreender
Ao perceber repentinamente o episódio amoroso como um nó de razões inexplicáveis e de soluções bloqueadas, o sujeito exclama: "Quero compreender (o que me acontece)!"


Coração

Essa palavra vale por todas as espécies de movimentos e desejos, mas o que é constante, é que o coração se constitui um objeto de dom - seja ignorado, seja rejeitado.



Corpo


Todo pensamento, toda emoção, todo interesse suscitado no sujeito apaixonado pelo corpo amado.




Dedicatória


Episódio de linguagem que acompanha todo presente amoroso, real ou projetado, e, ainda, mais geralmente, todo gesto, afetivo ou interior, pelo qual o sujeito dedica alguma coisa ao ser amado.



Despelado


Sensibilidade especial do sujeito apaixonado, que o torna vulnerável, à mercê das mais leves feridas.





Desrealidade


Sentimento de ausência, fuga da realidade experimentada pelo sujeito apaixonado, diante do mundo.




Errância

Apesar de que todo amor é vivido como único e que o sujeito rejeite a ideia de repeti-lo mais tarde em outro lugar, às vezes ele surpreende em si mesmo uma espécie de difusão do desejo amoroso; ele compreende então que está destinado a errar até a morte, de amor em amor.





Esconder

Figura deliberativa: o sujeito apaixonado se pergunta, não se deve declarar ao ser amado que o ama (não é uma figura de confissão), mas até que ponto deve esconder dele suas "perturbações" (as turbulências) da sua paixão: seus desejos, suas aflições, enfim, seus excessos (na linguagem raciniana: seu furor).




Escrever

Enganos profundos, debates e impasses que provocam o desejo de "exprimir" o sentimento amoroso numa criação (notadamente de escritura).




Espera


Tumulto de angústia suscitado pela espera do ser amado, no decorrer de mínimos atrasos (encontros, telefonemas, cartas, voltas).




Eu-te-amo


A figura não se refere à declaração de amor, à confissão, mas ao repetido proferimento do grito do amor.




Festa


O sujeito apaixonado vive cada encontro com o ser amado como
uma festa.





Louco



O sujeito apaixonado é atravessado pela ideia de que ele está ou está ficando louco.




Magia


Consultas mágicas, pequenos ritos secretos e ações de graça não estão ausentes da vida do sujeito apaixonado, qualquer que seja sua cultura.





Ternura

Gozo, mas também avaliação inquietante dos gestos ternos do objeto amado, na medida em que o sujeito compreende que esse privilégio não é para ele.



União




Sonho de total união com o ser amado.







Roland Barthes, in: Fragmentos de Um Discurso Amoroso. Ed. Francisco Alves. Ilustrações de Alone Gut