segunda-feira, 30 de novembro de 2009
Homem comum
Sou um homem comum
de carne e de memória
de osso e esquecimento.
e a vida sopra dentro de mim
pânica
feito a chama de um maçarico
e pode
subitamente
cessar.
Sou como você
feito de coisas lembradas
e esquecidas
rostos e
mãos, o quarda-sol vermelho ao meio-dia
em Pastos-Bons
defuntas alegrias flores passarinhos
facho de tarde luminosa
nomes que já nem sei
bandejas bandeiras bananeiras
tudo
misturado
essa lenha perfumada
que se acende
e me faz caminhar
Sou um homem comum
brasileiro, maior, casado, reservista,
e não vejo na vida, amigo,
nenhum sentido, senão
lutarmos juntos por um mundo melhor.
Poeta fui de rápido destino.
Mas a poesia é rara e não comove
nem move o pau-de-arara.
Quero, por isso, falar com você,
de homem para homem,
apoiar-me em você
oferecer-lhe o meu braço
que o tempo é pouco
e o latifúndio está aí, matando.
Que o tempo é pouco
e aí estão o Chase Bank,
a IT & T, a Bond and Share,
a Wilson, a Hanna, a Anderson Clayton,
e sabe-se lá quantos outros
braços do polvo a nos sugar a vida
e a bolsa
Homem comum, igual
a você,
cruzo a Avenida sob a pressão do imperialismo.
A sombra do latifúndio
mancha a paisagem
turva as águas do mar
e a infância nos volta
à boca, amarga,
suja de lama e de fome.
Mas somos muitos milhões de homens
comuns
e podemos formar uma muralha
com nossos corpos de sonho e margaridas.
Ferreira Gullar, in: Dentro da Noite Veloz / Brasília, 1963. Ed. Civilização Brasileira
de carne e de memória
de osso e esquecimento.
e a vida sopra dentro de mim
pânica
feito a chama de um maçarico
e pode
subitamente
cessar.
Sou como você
feito de coisas lembradas
e esquecidas
rostos e
mãos, o quarda-sol vermelho ao meio-dia
em Pastos-Bons
defuntas alegrias flores passarinhos
facho de tarde luminosa
nomes que já nem sei
bandejas bandeiras bananeiras
tudo
misturado
essa lenha perfumada
que se acende
e me faz caminhar
Sou um homem comum
brasileiro, maior, casado, reservista,
e não vejo na vida, amigo,
nenhum sentido, senão
lutarmos juntos por um mundo melhor.
Poeta fui de rápido destino.
Mas a poesia é rara e não comove
nem move o pau-de-arara.
Quero, por isso, falar com você,
de homem para homem,
apoiar-me em você
oferecer-lhe o meu braço
que o tempo é pouco
e o latifúndio está aí, matando.
Que o tempo é pouco
e aí estão o Chase Bank,
a IT & T, a Bond and Share,
a Wilson, a Hanna, a Anderson Clayton,
e sabe-se lá quantos outros
braços do polvo a nos sugar a vida
e a bolsa
Homem comum, igual
a você,
cruzo a Avenida sob a pressão do imperialismo.
A sombra do latifúndio
mancha a paisagem
turva as águas do mar
e a infância nos volta
à boca, amarga,
suja de lama e de fome.
Mas somos muitos milhões de homens
comuns
e podemos formar uma muralha
com nossos corpos de sonho e margaridas.
Ferreira Gullar, in: Dentro da Noite Veloz / Brasília, 1963. Ed. Civilização Brasileira
sexta-feira, 27 de novembro de 2009
Não sentir
O hábito tem-lhe amortecido as quedas. Mas sentindo menos dor, perdeu a vantagem da dor como aviso e sintoma. Hoje em dia vive incomparavelmente mais sereno, porém em grande perigo de vida: pode estar a um passo de estar morrendo, a um passo de já ter morrido, e sem o benefício de seu próprio aviso prévio.
Clarice Lispector, in: A Descoberta do Mundo / Crônica de 16/10/1967. Ed. Rocco
Clarice Lispector, in: A Descoberta do Mundo / Crônica de 16/10/1967. Ed. Rocco
José
E agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
e agora, você?
você que é sem nome,
que zomba dos outros,
você que faz versos,
que ama, protesta?
e agora, José?
Está sem mulher,
está sem discurso,
está sem carinho,
já não pode beber,
já não pode fumar,
cuspir já não pode,
a noite esfriou,
o dia não veio,
o bonde não veio,
o riso não veio
não veio a utopia
e tudo acabou
e tudo fugiu
e tudo mofou,
e agora, José?
E agora, José?
Sua doce palavra,
seu instante de febre,
sua gula e jejum,
sua biblioteca,
sua lavra de ouro,
seu terno de vidro,
sua incoerência,
seu ódio - e agora?
Com a chave na mão
quer abrir a porta,
não existe porta;
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Minas,
Minas não há mais.
José, e agora?
Se você gritasse,
se você gemesse,
se você tocasse
a valsa vienense,
se você dormisse,
se você cansasse,
se você morresse...
Mas você não morre,
você é duro, José!
Sozinho no escuro
qual bicho-do-mato,
sem teogonia,
sem parede nua
para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja a galope,
você marcha, José!
José, para onde?
Carlos Drummond de Andrade, in: José. Ed. Record
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
e agora, você?
você que é sem nome,
que zomba dos outros,
você que faz versos,
que ama, protesta?
e agora, José?
Está sem mulher,
está sem discurso,
está sem carinho,
já não pode beber,
já não pode fumar,
cuspir já não pode,
a noite esfriou,
o dia não veio,
o bonde não veio,
o riso não veio
não veio a utopia
e tudo acabou
e tudo fugiu
e tudo mofou,
e agora, José?
E agora, José?
Sua doce palavra,
seu instante de febre,
sua gula e jejum,
sua biblioteca,
sua lavra de ouro,
seu terno de vidro,
sua incoerência,
seu ódio - e agora?
Com a chave na mão
quer abrir a porta,
não existe porta;
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Minas,
Minas não há mais.
José, e agora?
Se você gritasse,
se você gemesse,
se você tocasse
a valsa vienense,
se você dormisse,
se você cansasse,
se você morresse...
Mas você não morre,
você é duro, José!
Sozinho no escuro
qual bicho-do-mato,
sem teogonia,
sem parede nua
para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja a galope,
você marcha, José!
José, para onde?
Carlos Drummond de Andrade, in: José. Ed. Record
quinta-feira, 26 de novembro de 2009
Das pedras
Ajuntei todas as pedras
que vieram sobre mim.
Levantei uma escada muito alta
e no alto subi.
Teci um tapete floreado
e no sonho me perdi.
Uma estrada,
um leito,
uma casa,
um companheiro.
Tudo de pedra.
Entre pedras
cresceu a minha poesia.
Minha vida...
Quebrando pedras
e plantando flores.
Entre pedras que me esmagavam
levantei a pedra rude
dos meus versos.
Cora Coralina
que vieram sobre mim.
Levantei uma escada muito alta
e no alto subi.
Teci um tapete floreado
e no sonho me perdi.
Uma estrada,
um leito,
uma casa,
um companheiro.
Tudo de pedra.
Entre pedras
cresceu a minha poesia.
Minha vida...
Quebrando pedras
e plantando flores.
Entre pedras que me esmagavam
levantei a pedra rude
dos meus versos.
Cora Coralina
A Surpresa
Olhar-se no espero e dizer deslumbrada: Como sou misteriosa. Sou tão delicada e forte. E a curva dos lábios manteve a inôcencia.
Não há homem ou mulher que por acaso não se tenha olhado ao espelho e se surpreendido consigo próprio. Por uma fração de segundo a gente se vê como a um objeto a ser olhado. A isto se chamaria talvez de narcisismo, mas eu chamaria de: alegria de ser. Alegria de encontrar na figura exterior os ecos da figura interna: ah, então é verdade que eu não me imaginei, eu existo.
Clarice Lispector, in: A Descoberta do Mundo / Crônica de 19/08/1967. Ed. Rocco
Não há homem ou mulher que por acaso não se tenha olhado ao espelho e se surpreendido consigo próprio. Por uma fração de segundo a gente se vê como a um objeto a ser olhado. A isto se chamaria talvez de narcisismo, mas eu chamaria de: alegria de ser. Alegria de encontrar na figura exterior os ecos da figura interna: ah, então é verdade que eu não me imaginei, eu existo.
Clarice Lispector, in: A Descoberta do Mundo / Crônica de 19/08/1967. Ed. Rocco
domingo, 22 de novembro de 2009
Respingos
e quando a chuva caía
eu ia com a enxurrada
ia beirando a calçada
descia junto com a flor
e ria a risada d'água
aquela alegria d'água
brincava que era a flor
mas depois sentia frio
lembrava-me então do rio
da flor que o rio levou
e os meus olhos choviam
eu era como a enxurrada
fui ficando poça d'água
que o tempo choveu
chorou...
Líria Porto
eu ia com a enxurrada
ia beirando a calçada
descia junto com a flor
e ria a risada d'água
aquela alegria d'água
brincava que era a flor
mas depois sentia frio
lembrava-me então do rio
da flor que o rio levou
e os meus olhos choviam
eu era como a enxurrada
fui ficando poça d'água
que o tempo choveu
chorou...
Líria Porto
sábado, 21 de novembro de 2009
Simplesmente amor
Amor é a coisa mais triste
Amor é a coisa que mais quero
Por causa dele falo palavras como lanças.
Amor é a coisa mais alegre
Amor é a coisa mais triste
Amor é a coisa que mais quero
Por causa dele podem entalhar-me:
Sou de pedra sabão.
Alegre ou triste
Amor é a coisa que mais quero.
Adélia Prado, in: Bagagem. Ed. Record
Amor é a coisa que mais quero
Por causa dele falo palavras como lanças.
Amor é a coisa mais alegre
Amor é a coisa mais triste
Amor é a coisa que mais quero
Por causa dele podem entalhar-me:
Sou de pedra sabão.
Alegre ou triste
Amor é a coisa que mais quero.
Adélia Prado, in: Bagagem. Ed. Record
sexta-feira, 20 de novembro de 2009
Psicologia de um vencido
Amadeo de Souza Cardoso
Eu, filho do carbono e do amoníaco,
Monstro de escuridão e rutilância,
Sofro, desde a epigênesis da infância,
A influência má dos signos do zodíaco.
Profundíssimamente hipocondríaco,
Este ambiente me causa repugnância...
Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia
Que se escapa da boca de um cardíaco.
Já o verme — este operário das ruínas —
Que o sangue podre das carnificinas
Come, e à vida em geral declara guerra,
Anda a espreitar meus olhos para roê-los,
E há-de deixar-me apenas os cabelos,
Na frialdade inorgânica da terra!
Augusto dos Anjos
Monstro de escuridão e rutilância,
Sofro, desde a epigênesis da infância,
A influência má dos signos do zodíaco.
Profundíssimamente hipocondríaco,
Este ambiente me causa repugnância...
Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia
Que se escapa da boca de um cardíaco.
Já o verme — este operário das ruínas —
Que o sangue podre das carnificinas
Come, e à vida em geral declara guerra,
Anda a espreitar meus olhos para roê-los,
E há-de deixar-me apenas os cabelos,
Na frialdade inorgânica da terra!
Augusto dos Anjos
quinta-feira, 19 de novembro de 2009
Ana Cristina Cesar
[...] Ela viveu a radicalidade da fusão arte-vida no mesmo nível em que a viveram Hélio Oiticica, Torquato Neto, apenas foi mais discreta, mais "low profile", atuando na área de convivência humana difícil e acanhada que é a literatura, garota até certo ponto comum, aluna aplicada, professora responsável, loucura em fogo brando, mas persistente, escondida pelas lentes enganadoras de uma lucidez que de tão aguda dóia, nela e em quem dela se aproximasse. Louco giroscópio da lucidez. Te acalma, minha loucura!, assim diz o verso de Mário que ela utilizou num poema. Loucura, pássaro que alimentamos com carinho para suportar a melancolia e vencer o tédio infinito. Pão cotidiano. O problema é aprender a contorná-la, domesticá-la [...].
Italo Moriconi, in: Ana Cristina Cesar - O Sangue da Poeta. Ed. Relume Dumará
Italo Moriconi, in: Ana Cristina Cesar - O Sangue da Poeta. Ed. Relume Dumará
Itinerário:
Ana Cristina Cesar,
Italo Moriconi
Titikus
quarta-feira, 18 de novembro de 2009
Escritos extraídos do silêncio (I)
Man Ray, Silhouette of Lee Miller, 1930
Na calada da noite,
esboço um frágil exercício de recolher escritos.
Na calada de mim mesma,
escritos extraídos do silêncio.
Silêncio e mudez.
Fluxo que acontece à minha revelia,
enquanto pastoreio nuvens, deserta de mim,
ausente do concreto.
O chão, impossível sempre.
Ana Cecília de Sousa Bastos
Gruta
Alaya Gadeh
em meu peito há.
corpo sem rosto,
chama sem nome.
por ti, ninguém,
eu chamo.
só tu, ninguém,
respondes.
ninguém que bem
me ama.
ninguém em minha
cama.
se ao menos
na hora do gozo,
ulisses,
me desses teu gosto...
Raiça Bomfim
corpo sem rosto,
chama sem nome.
por ti, ninguém,
eu chamo.
só tu, ninguém,
respondes.
ninguém que bem
me ama.
ninguém em minha
cama.
se ao menos
na hora do gozo,
ulisses,
me desses teu gosto...
Raiça Bomfim
terça-feira, 17 de novembro de 2009
Filosofia
sexta-feira, 13 de novembro de 2009
I
Nonnetta
Um coração aberto recebe igualmente amores e dores. Segura o coração frente ao corpo, entre as mãos, para sentir intensamente o que vem de fora, ele tentará escapar, pulsando na vibração de um tambor nervoso, ele tentará escapar, liquefazendo-se em sangue a escorrer entre os dedos, segure-o firme e feche os olhos para que não haja o risco das imagens transformarem-se em lógica, o cérebro numa câmara escura dorme.
Camila Vardarac
Camila Vardarac
Adieu
Há muito tempo me despeço todos os dias.
Estou pronta para ir embora:
as malas já feitas à porta, o dinheiro no bolso,
o bilhete na mão e o destino a esperar.
Jurei que só voltaria quando me pedissem
e agora é por isso que não posso mais partir.
Ninguém vai me chamar de volta,
nem nunca vai dizer o quanto me quis.
Serei a única a esparramar na plataforma
a dor de um adeus solitário.
Posso ouvi-la fundida ao ferro dos trilhos,
gemendo por todo o caminho que é assim
que vamos ficar: nos hiatos paralelos repetidos
palmo a palmo até a gente adormecer em tormento.
Sem descanso. Nos vagões ela embala os pesadelos
e o medo de chegar para sempre carregando sozinha
esse peso morto que é o amor não correspondido.
Chris Ritchie
Estou pronta para ir embora:
as malas já feitas à porta, o dinheiro no bolso,
o bilhete na mão e o destino a esperar.
Jurei que só voltaria quando me pedissem
e agora é por isso que não posso mais partir.
Ninguém vai me chamar de volta,
nem nunca vai dizer o quanto me quis.
Serei a única a esparramar na plataforma
a dor de um adeus solitário.
Posso ouvi-la fundida ao ferro dos trilhos,
gemendo por todo o caminho que é assim
que vamos ficar: nos hiatos paralelos repetidos
palmo a palmo até a gente adormecer em tormento.
Sem descanso. Nos vagões ela embala os pesadelos
e o medo de chegar para sempre carregando sozinha
esse peso morto que é o amor não correspondido.
Chris Ritchie
segunda-feira, 9 de novembro de 2009
?
A Taylor van Horne, e em homenagem aos poetas do desassossego.
há uma parte da vida que me apavora
este desassossego entre árvores e águas
segredos, sinos, mistério.
um não sei o quê
calmaria e turbulência.
sair e ao voltar querer sair querendo ficar
para os braços ou para o ventre?
é noite, noite
o vento no rosto em alta velocidade
vento, nuvens:
o júbilo, o Nada, o sem nome, o Nunca Mais.
Cristiane Grando
este desassossego entre árvores e águas
segredos, sinos, mistério.
um não sei o quê
calmaria e turbulência.
sair e ao voltar querer sair querendo ficar
para os braços ou para o ventre?
é noite, noite
o vento no rosto em alta velocidade
vento, nuvens:
o júbilo, o Nada, o sem nome, o Nunca Mais.
Cristiane Grando
Pulmão de Deus
Separação
Desmontar a casa
e o amor. Despregar
os sentimentos das paredes e lençóis.
Recolher as cortinas
após a tempestade
das conversas.
O amor não resistiu
às balas, pragas, flores
e corpos de intermeio.
Empilhar livros, quadros,
discos e remorsos.
Esperar o infernal
juizo final do desamor.
Vizinhos se assustam de manhã
ante os destroços junto à porta:
- pareciam se amar tanto!
Houve um tempo:
uma casa de campo,
fotos em Veneza,
um tempo em que sorridente
o amor aglutinava festas e jantares.
Amou-se um certo modo de despir-se
de pentear-se.
Amou-se um sorriso e um certo
modo de botar a mesa. Amou-se
um certo modo de amar.
No entanto, o amor bate em retirada
com suas roupas amassadas, tropas de insultos
malas desesperadas, soluços embargados.
Faltou amor no amor?
Gastou-se o amor no amor?
Fartou-se o amor?
No quarto dos filhos
outra derrota à vista:
bonecos e brinquedos pendem
numa colagem de afetos natimortos.
O amor ruiu e tem pressa de ir embora
envergonhado.
Erguerá outra casa, o amor?
Escolherá objetos, morará na praia?
Viajará na neve e na neblina?
Tonto, perplexo, sem rumo
um corpo sai porta afora
com pedaços de passado na cabeça
e um impreciso futuro.
No peito o coração pesa
mais que uma mala de chumbo.
Affonso Romano de Sant'Anna
e o amor. Despregar
os sentimentos das paredes e lençóis.
Recolher as cortinas
após a tempestade
das conversas.
O amor não resistiu
às balas, pragas, flores
e corpos de intermeio.
Empilhar livros, quadros,
discos e remorsos.
Esperar o infernal
juizo final do desamor.
Vizinhos se assustam de manhã
ante os destroços junto à porta:
- pareciam se amar tanto!
Houve um tempo:
uma casa de campo,
fotos em Veneza,
um tempo em que sorridente
o amor aglutinava festas e jantares.
Amou-se um certo modo de despir-se
de pentear-se.
Amou-se um sorriso e um certo
modo de botar a mesa. Amou-se
um certo modo de amar.
No entanto, o amor bate em retirada
com suas roupas amassadas, tropas de insultos
malas desesperadas, soluços embargados.
Faltou amor no amor?
Gastou-se o amor no amor?
Fartou-se o amor?
No quarto dos filhos
outra derrota à vista:
bonecos e brinquedos pendem
numa colagem de afetos natimortos.
O amor ruiu e tem pressa de ir embora
envergonhado.
Erguerá outra casa, o amor?
Escolherá objetos, morará na praia?
Viajará na neve e na neblina?
Tonto, perplexo, sem rumo
um corpo sai porta afora
com pedaços de passado na cabeça
e um impreciso futuro.
No peito o coração pesa
mais que uma mala de chumbo.
Affonso Romano de Sant'Anna
quarta-feira, 4 de novembro de 2009
segunda-feira, 2 de novembro de 2009
domingo, 1 de novembro de 2009
Reverberação
O destino trama os dias
e desfaz o sonho: demarca
meus contornos, partes
disso que sou e serei.
Quem sabe desejei demais:
milagres não me bastaram,
mas quando eu quis ser rainha
fui simplesmente humana.
A voz da vida insiste,
chama para o que salva
ou desatina:
nem sempre a entendi.
Palavras buscam sentido
para o que fiz, falhei,
conquistei e perdi
- ou que me abandonou
nalguma esquina.
(Talvez eu precisasse é dos silêncios.)
Lya Luft, in: Para Não Dizer Adeus. Ed. Record
e desfaz o sonho: demarca
meus contornos, partes
disso que sou e serei.
Quem sabe desejei demais:
milagres não me bastaram,
mas quando eu quis ser rainha
fui simplesmente humana.
A voz da vida insiste,
chama para o que salva
ou desatina:
nem sempre a entendi.
Palavras buscam sentido
para o que fiz, falhei,
conquistei e perdi
- ou que me abandonou
nalguma esquina.
(Talvez eu precisasse é dos silêncios.)
Lya Luft, in: Para Não Dizer Adeus. Ed. Record
Revelação
Muszka
Quando chegaste,
redescobri em mim inocência e alegria.
Removi a máscara que sobrava:
nada havia a esconder de ti,
nem medo - a não se partires.
Supérfluas as palavras,
dispensada a aparência, fiquei eu,
sem prumo,
como antes da primeira dúvida
e do ultimo desencanto.
Quando chegaste,
escutei meu nome como num outro tempo.
o meu lado da sombra entregou
o que ninguém via:
as feridas sem cura e a esperança sem rumo.
Começa a crer, por mim, que o amor é possível,
e que a vida vale a pena e o pranto
de cada dia.
redescobri em mim inocência e alegria.
Removi a máscara que sobrava:
nada havia a esconder de ti,
nem medo - a não se partires.
Supérfluas as palavras,
dispensada a aparência, fiquei eu,
sem prumo,
como antes da primeira dúvida
e do ultimo desencanto.
Quando chegaste,
escutei meu nome como num outro tempo.
o meu lado da sombra entregou
o que ninguém via:
as feridas sem cura e a esperança sem rumo.
Começa a crer, por mim, que o amor é possível,
e que a vida vale a pena e o pranto
de cada dia.
Lya Luft, in: Para Não Dizer Adeus. Ed. Record
Dizendo adeus
Estou sempre dando adeus:
também ao desencontro e ao
desencanto.
Estou sempre me despedindo
do ponto de partida que me lança de si,
do ponto de chegada que nunca é
aqui.
Estou sempre dando adeus:
até a Deus,
para reencontrar em outra esquina
de adeuses.
Estarei sempre de partida,
até o momento de sermos deuses:
quando me fizeres dar adeus á solidão
e à sombra.
Lya Luft, in: Para Não Dizer Adeus. Ed. Record
também ao desencontro e ao
desencanto.
Estou sempre me despedindo
do ponto de partida que me lança de si,
do ponto de chegada que nunca é
aqui.
Estou sempre dando adeus:
até a Deus,
para reencontrar em outra esquina
de adeuses.
Estarei sempre de partida,
até o momento de sermos deuses:
quando me fizeres dar adeus á solidão
e à sombra.
Lya Luft, in: Para Não Dizer Adeus. Ed. Record
[...] Temos dificuldade em lidar com o silêncio: ele ressoa mal no vazio do nosso interior. Embora seja difícil de curtir (ah, a música ao vivo, a praia com alto-falantes, a ginástica dirigida, os brinquedos comandados, a diversão atordoante em casa, no clube, no mar...), é nele que nos humanizamos - pela palavra certa,
a palavra boa, a palavra respeitosa mas firme.
O medo de errar muitas vezes nos leva ao erro, e o desejo excessivo de acertar nos rouba a naturalidade: calamos quando seria melhor falar, falamos quando teria sido melhor dizer alguma coisa, qualquer coisa.
Mas nem sempre sabemos a hora, a palavra, a pessoa certa.
Assim como solidão não precisa significar isolamento, silêncio não precisa ser um corte: pode ser nossa melhor maneira de falar, naquele momento, com aquele interlocutor. Aí ele não compreende, e, mais uma vez, somos incomunicáveis.
Calar pode ser um bom exercício para nossa mente aflita de tantas informações, paralisada entre tantas escolhas, dilacerada em transformações vertiginosas como as deste tempo nosso.
Pensar sobre nós e nossa vida é um exercício: o que eu realmente desejaria ser, e o que posso fazer? Como chegar perto de mim, eu mesmo, esse que está sempre por ser descoberto?
Pode ser um bom começo ouvir a chuva no telhado, a pessoa amada vindo pelo corredor, e a consciência que fala ao nosso coração - quando ele está atento.
Lya Luft, in: Em Outras Palavras. Ed. Record
a palavra boa, a palavra respeitosa mas firme.
O medo de errar muitas vezes nos leva ao erro, e o desejo excessivo de acertar nos rouba a naturalidade: calamos quando seria melhor falar, falamos quando teria sido melhor dizer alguma coisa, qualquer coisa.
Mas nem sempre sabemos a hora, a palavra, a pessoa certa.
Assim como solidão não precisa significar isolamento, silêncio não precisa ser um corte: pode ser nossa melhor maneira de falar, naquele momento, com aquele interlocutor. Aí ele não compreende, e, mais uma vez, somos incomunicáveis.
Calar pode ser um bom exercício para nossa mente aflita de tantas informações, paralisada entre tantas escolhas, dilacerada em transformações vertiginosas como as deste tempo nosso.
Pensar sobre nós e nossa vida é um exercício: o que eu realmente desejaria ser, e o que posso fazer? Como chegar perto de mim, eu mesmo, esse que está sempre por ser descoberto?
Pode ser um bom começo ouvir a chuva no telhado, a pessoa amada vindo pelo corredor, e a consciência que fala ao nosso coração - quando ele está atento.
Lya Luft, in: Em Outras Palavras. Ed. Record
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